Está faltando falarmos a verdade sobre as “instituições”, por Gustavo Roberto Costa

Desde meados de 2013 passou a ter protagonismo um movimento de extrema-direita, agressivo, odioso, belicoso, furioso, sombrio, obscuro.

Está faltando falarmos a verdade sobre as “instituições”

por Gustavo Roberto Costa

2020 foi um ano muito diferente. Não só pela pandemia. Mas pela série de acontecimentos iniciados algum tempo antes. Parece que a pandemia foi o desfecho. O desfecho trágico que marcou a entrada no tempo atual – e no que se avizinha (prometendo ser dramático).

A facilidade com que se deram golpes de Estado em alguns países da América Latina – com destaque especial (sem descurar de outros) para Brasil, Equador e Bolívia –, com que se rasgaram constituições, com que se manipularam ordenamentos jurídicos, com que se inventaram motivos “nada jurídicos” para perseguir e prender inimigos políticos, com que se jogou no lixo o chamado “Estado de Direito”, tão propalado no período anterior, parece-me, faz com que somente alguém totalmente fora da realidade possa falar em “defesa da democracia” confiando nas atuais instituições que representam os Estados nacionais.

Nem falar das instâncias internacionais, que cuidam das democracias com o mesmo zelo que uma raposa cuidaria de um galinheiro. Que poder tem o Conselho de Segurança da ONU perto do poderio militar da maior potência do mundo, os EUA, por exemplo? Absolutamente nenhum.

Desde meados de 2013 passou a ter protagonismo um movimento de extrema-direita, agressivo, odioso, belicoso, furioso, sombrio, obscuro. Teve seu ápice na eleição de Donald Trump nos EUA. Filipinas, Israel, Reino Unido, Itália, Colômbia e Brasil (dentre muitos outros) tiveram – a maioria ainda tem – sua própria versão. Tornou-se normal ver presidentes e primeiros-ministros negando direitos dos mais fundamentais (o caso dos imigrantes de países em guerra é emblemático).

Por falar em guerra, ela “come-solta” pelo mundo. Síria, Palestina, Iraque e Iêmen são pouquíssimos exemplos de países em conflitos armados sangrentos, que massacram seus povos, com quase nenhum destaque na mídia internacional. O problema, para os grandes conglomerados de mídia, é só no Iran, na Coreia do Norte, em Cuba, na Venezuela e no inimigo da vez. Nunca nos países centrais, que se apresentam como os “defensores da democracia e da liberdade”.

De volta ao Brasil, embora alguns tenham a ilusão de que já houve, nos trinta anos da Constituição vigente, algum resquício de democracia, o fato é que a população pobre e excluída nunca conheceu o mínimo Estado de Direito. O número de presos passa dos 700 mil (chutando bem baixo) e o número de mortos por forças do Estado é extraordinário. Pesquisa recente mostrou que as polícias do Brasil mataram, só nos últimos de três anos, mas de 2.250 crianças. Crianças!

É preciso uma dose extrema de otimismo para não perceber que o Estado brasileiro declarou guerra contra seu povo faz tempo.

E essa guerra conta com a mais completa complacência das instituições políticas. São as instituições que dão forma jurídica à política de extermínio da população negra e pobre (Orlando Zaccone). Nem sempre porque assim querem. Mas porque não têm a mínima força para defender nenhum Estado de Direito. Quando a pressão sobe, são as armas que mandam, e não as leis e as sentenças judiciais.

Essas instituições não foram capazes de fazer absolutamente nada de efetivo para enfrentar a pandemia do coronavírus. Falam do negacionismo e da incúria do presidente, mas governadores, prefeitos, deputados, promotores e juízes, ao contrário do que (ingenuamente) se acredita, muito pouco fizeram para proteger a população da doença. Apostaram em medidas ditatoriais de limitação de direitos (como a liberdade), mas deixaram a população à míngua, perdendo postos de emprego e renda, passando fome e morrendo em decorrência do vírus.

Uma pergunta que me intriga é: há notícias de governadores e prefeitos que instituíram programas de recomposição de renda para seus cidadãos? Houve ações e decisões judiciais nesse sentido? Cobra-se (corretamente) do governo federal, mas as demais instâncias de poder nada fazem, a não ser promover jogo de cena na imprensa e – como sempre – colocar a culpa no povo (que não se mantém em isolamento).

Não deveria ser segredo para ninguém que se diz preocupado com o povo que nas favelas e periferias simplesmente “não existe” pandemia. Lá a vida segue normalmente. Ninguém está protegido de nada. “Ficar em casa” representa a mais absoluta miséria. E ainda se ouve que o vírus não vê classe social, atinge igualmente ricos e pobres etc. Nem uma criança acreditaria.

Nos estabelecimentos prisionais, as práticas são típicas de campos de concentração. Não há segurança sanitária para os presos, não há atendimento médico, as famílias não têm acesso aos seus. O caos e o sofrimento imperam. Não há audiências de custódia, não há apresentação de adolescentes apreendidos. O controle sobre abusos, agressões e torturas é uma nulidade total.

Todas as catástrofes brevemente citadas acima não encontram qualquer resistência no sistema político. Pelo contrário, as instituições do Estado atuam para legitimar e, não raro, fomentar políticas de restrição de direitos, de cortes de investimentos na área social, de abandono dos mais necessitados; políticas excludentes, insensíveis, assassinas.

A contemporização com as práticas genocidas do Estado, com minúsculas e honradas exceções, é a regra nas “instituições” públicas. A guerra às drogas – como se já não houvesse guerra o suficiente – é o instrumento mais eficaz de extermínio da população negra. Sem o fim da guerra às drogas não há luta antirracismo possível. E tudo com o olhar concordante do grosso das “autoridades”. O controle da atividade policial praticamente não existe.

Como, então, propalar que a “defesa das instituições” é necessária para manter o regime democrático? Como acreditar que a atividade parlamentar (e a recente disputa pela presidência das casas demonstrou isso de maneira contundente) pode trazer algum benefício concreto para a população, além das migalhas que, de vez em quando, aparecem? Em tempos de ultraliberalismo, nem isso.

Cedo ou tarde, o povo vai perceber que confiou em instituições que traíram sua missão. Que viraram as costas para os vulneráveis. Que se embrenharam em conchavos políticos e ficaram a uma distância infinita dos destinatários dos seus serviços. E todos aqueles que se esforçaram para defendê-las estarão incluídos.

Necessário que se repense o exercício do poder. As instâncias de decisão devem, paulatinamente, sair da esfera das “instituições”, absolutamente falidas, e passar para as mãos das verdadeiras representações populares. As entidades da sociedade civil e os movimentos sociais devem participar da instituição e manutenção de políticas públicas. As discussões sobre a “segurança pública” devem ter a massiva participação das comunidades, principalmente as mais pobres. As carreiras jurídicas devem ser providas pelo voto popular, com mandatos limitados no tempo.

Uma ruptura total com o atual modelo, incapaz de satisfazer os anseios do povo, é mais que urgente. É uma questão de vida ou morte, literalmente.

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.

Redação

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