Folha: desventuras de um jornal sem rumo

(Chico Villela) Os leitores estão perplexos: a Folha reconhece que há crise humanitária em Gaza e afirma que não há crise humanitária em Gaza. Na mesma matéria.

O editor da Folha sofre muito. Durante os dias da expansão das notícias e do horror dos crimes de guerra praticados contra o navio de bandeira turca Mavi Marmara em águas internacionais, a Folha contorceu-se sem sossego. De início, negou os crimes, deu voz ao embaixador israelense no Brasil (que repetiu a ladainha das suas forças armadas) e postou manchete de primeira página contrária à visão de todos os países do planeta.

Assim que BHObama foi forçado a recomendar ao seu aliado Israel o fim do criminoso bloqueio à Faixa de Gaza, o jornal amaciou suas posições, mas não conseguiu visão coerente. Assim, até agora não se conhece a posição da Folha sobre nenhum tema dos que ocupam a imprensa em todo o mundo. Mas sabe-se que a Folha repercute o pensamento da extrema-direita jornalística internacional, da qual apresentam-se algumas amostras neste link.

Houve crimes de guerra? O que significa em termos legais invadir um navio de bandeira turca em águas internacionais? Havia armas com os ativistas da paz? (Nenhum militar israelense foi ferido com tiros.) Os invasores do Mavi Marmara, como afirmaram,  atiraram nas pernas dos ativistas? (Houve tiros a menos de meio metro na face de alguns dos nove assassinados, todos turcos; seis ativistas desapareceram na operação; mais de sessenta ficaram feridos por balas.) Israel pretendia (sim, anunciou que iria) processar todos os mais de 600 ativistas presos? (Só foram libertados após ultimato da Turquia: ou são libertados, ou vamos libertá-los.) Etc.

A edição de domingo 6 trouxe matéria do jornalista enviado especial a Gaza Marcelo Ninio (seção Mundo, páginas A14 e A15: “Bloqueio faz de Gaza prisão ao ar livre”) que nada fica a dever à indefinição da Folha sobre as questões. A seguir reproduzimos trechos da matéria; dois deles estão comentados no final do texto da minha coluna nesta NovaE.

1  Box ‘A vida em Gaza’: “Embora não viva uma crise humanitária em si, território palestino materializa uma prisão a céu aberto”.

Mesmo sem poder-se recorrer ao filósofo Immanuel Kant para esclarecer o sentido da expressão “crise humanitária em si”, constata-se que o jornalista reconhece que não há crise humanitária, apenas uma população que vive numa prisão a céu aberto, o que, para o jornal, não configura crise humanitária.

2  O jornalista afirma que as prateleiras dos mercados estão cheias e as farmácias têm medicamentos. Mas que “três anos de bloqueio arrasaram a economia local, deixaram quase metade da população desempregada e tornaram inacessíveis para a maioria dos 1,5 milhão de palestinos os produtos que enchem as prateleiras”. Ou seja, mais de 50% da população não tem dinheiro para comprar remédios e comida, o que, em qualquer lugar do planeta, configura crise humanitária.

3. O jornalista descreve detalhes da prisão a céu aberto. Até mesmo para tratamento médico é preciso autorização israelense para sair de Gaza, e isso “após longo processo burocrático”. Os hospitais de Gaza que sobraram após os bombardeios são desprovidos de equipes, equipamentos e possibilidades de atendimento, mas isso, para o jornal, parece não configurar crise humanitária.

4. Existe um sistema de centenas de túneis clandestinos pelos quais entram mercadorias adquiridas em geral no vizinho Egito. Até mesmo carros inteiros passam pelos túneis. A matéria deixa claro que o sistema concorre (cita 90%) para o abastecimento de Gaza. Mesmo assim, há uma lista de produtos proibidos em Gaza, destacada pelo jornalista, entre eles: “sementes e castanhas / carnes frescas / gesso / madeira / cimento / ferro / tecidos / varas de pescar / tubos de sistemas de irrigação / aquecedores / notebooks / lâminas de barbear / cavalos, burros, caprinos, bovinos, frangos”. Israel alega razões de segurança: cimento, ferro e tubos de irrigação poderiam transformar-sem em bombas. Mas, bombas de carne fresca? Uso de animais na guerra? Burros-tanques? Notebooks terroristas?

5. Milhares de imóveis foram destruídos em 2009 pelos israelenses e não podem ser refeitos por carência de materiais. Entre esses imóveis há dezenas de escolas. Assim, há milhares de crianças sem escolas e milhares de famílias sem moradia. Mas tudo isso, aos olhos do jornal e do jornalista, não configura crise humanitária.

6. O porta-voz do Hamas afirma que ninguém passa fome em Gaza. Em governos muçulmanos e regiões da religião do islã, em geral não há miséria. A concepção islâmica é diversa das ocidentais: há ensino, atendimento médico, alimentação etc. para os desvalidos por iniciativa dos religiosos. Mas o porta-voz continua: “Mas a vida não é só comida. A pressão psicológica afeta a (sic) todos de forma profunda”. Numa população em que mais da metade não tem renda, com amigos e parentes assassinados em bombardeios, sem casa, assistência médica ou ensino adequado, o jornalista recusa-se a enxergar crise humanitária.

7. Aspas para o jornalista: “Segundo o Programa Alimentar Mundial – PAM, 7 em cada 10 habitantes de Gaza recebem ajuda humanitária. Só 2% das fábricas que existiam antes do cerco continuam operando”. O funcionário do PAM ouvido pelo jornalista afirma: “[…] se as organizações saírem, Gaza entra em colapso”. Ou seja, Gaza existe porque organizações e ONU mantêm a população viva. Se isso não se chama crise humanitária, o que será então esse ente para a Folha?

8. Até mesmo vozes externas são transformadas pela Folha em discursos dúbios. Mais aspas para o orwelliano jornalista citando o funcionário do PAM: “Pode ser que não haja crise humanitária no sentido estrito [em si?, pergunto eu]. Juntando o bloqueio de bens ao de pessoas, não dá para negar que haja crise humana”.

Em cima dessa contrafação jornalística, ainda se encontra espaço para citar a organização euamericana Human Rights Watch com sua afirmação modelo de negação da realidade: “Israel falha em promover os direitos humanos no território”. Como se houvesse sentido em falar ao mesmo tempo de Israel e direitos humanos após uma guerra genocida, décadas de assassinatos e assaltos às terras palestinas e um bloqueio indecente.

Razão tem o dirigente da IHH, entidade humanitária internacional, com sede na Turquia e presente em 112 países, que promoveu a ajuda de 10 mil toneladas de bens trazidos pela flotilha atacada: “O maior grupo terrorista do mundo é Israel, que roubou as terras dos palestinos e os mantém presos em Gaza”.

A Folha é ridícula. Em homenagem a sua estupidez, porque é disso que se trata, frases de George Orwell:

We have now sunk to a depth at which the restatement of the obvious is the first duty of intelligent men.

Political language. . . is designed to make lies sound truthful and murder respectable, and to give an appearance of solidity to pure wind.

The nationalist not only does not disapprove of atrocities committed by his own side, but he has a remarkable capacity for not even hearing about them.

http://novae.inf.br/blog/?p=659

Redação

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