Impressões sobre a China – 2

(Atenção: matéria de 2002)
‘China não tem mais nada de comunista’, diz historiador
 

Silvia Salek, enviada especial a Pequim

Depois de duas décadas de reformas econômicas, o comunismo na China é apenas de fachada; nem mesmo os integrantes do Partido Comunista acreditam na filosofia implantada no país após a revolução de 1949, liderada por Mao Tsé-tung.

A opinião é do historiador e pesquisador da Universidade de Pequim, Eric Vanden Bussche, um brasileiro que vive há cinco anos na China e, fluente em mandarim, sabe como poucos do que está falando.

Para ele, apesar de as reformas terem transformado a economia chinesa, o país ainda não está preparado para a democracia.

Nesta entrevista, ele diz ainda que, ao contrário da China, o Brasil será o eterno país do futuro por causa do conformismo da população com o subdesenvolvimento.

 BBC – A visão que se tem da China no Brasil reflete a realidade na sua opinião?
Eric Vanden Bussche –
 Não. O brasileiro tem uma visão muito maniqueísta da China. Por um lado, vêem a China como um país de cultura milenar e filosofia rica. Têm uma certa admiração pela cultura chinesa. Por outro lado, os meios de comunicação mostram a China como um país que reprime os direitos e as liberdades da população. As duas visões estão completamente distantes da realidade atual do país.

BBC – Não é um exagero dizer que a visão está completamente distante da realidade?
Eric Vanden Bussche –
 Em primeiro lugar, não podemos dizer que a China é um país totalitário. Ela vem se abrindo econômica e politicamente. Hoje, por exemplo, não há mais o culto à personalidade. Isso foi abolido por Deng Xiaoping . Muitas estátuas de Mao Tsé-tung foram retiradas das ruas por exemplo. Outra mudança significativa é que os líderes não podem mais se perpetuar no poder. Há na constituição um artigo que impede que os líderes sejam reeleitos por mais de dois mandatos para o mesmo posto. É por isso que o presidente Jiang Zemin vai deixar a presidência provavelmente no início do ano que vem.

BBC – Mas isso não é suficiente para dizer que o governo chinês não seja autoritário.
Eric Vanden Bussche –
 Obviamente, há um certo controle, mas temos que aprender a relativizar nossas críticas. Veja o exemplo dos Estados Unidos, que tanto criticam a China nesse quesito. O controle nos aeroportos e nos prédios públicos é enorme. Se você critica o governo americano, é acusado de ser antipatriota. Para falar a verdade, eu sinto ter mais liberdade de expressão aqui do que nos Estados Unidos atualmente.

BBC – Será que não é porque você está falando coisas positivas sobre a China?
Eric Vanden Bussche –
 De maneira nenhuma. Minha visão sobre a China é bem variada. Só é vista como positiva porque não é altamente negativa como nos países ocidentais. Nos Estados Unidos, a paranóia impera. Se você fizer alguma brincadeira, alguma piada com o tema do terrorismo, pode ser preso. Essa questão de liberdade de expressão é relativa. Acusam a China de controlar a imprensa. De fato, existe um controle claro do governo. Já nos países ocidentais, esse controle não é claro e serve aos interesses das classes dominantes.

BBC – O senhor acha que os Estados Unidos e os países ocidentais estão errados em exigir mais democracia da China?
Eric Vanden Bussche –
 A verdade é que a China ainda não está preparada para a democracia. Isso é um consenso entre as lideranças políticas e entre a população chinesa. A China nunca teve tradição democrática. As coisas sempre foram impostas de cima para baixo e o povo se acostumou a isso. Por exemplo: só na China é que foi possível um movimento como a Revolução Cultural, em que intelectuais eram mandados para campos de trabalho forçado, uns denunciavam os outros. Por que funcionou? Porque foi imposta pelo presidente Mao e a população acatou a ordem dele. Estava acostumada a isso.

BBC – O senhor está dizendo que por causa dessa falta de costume, é possível que os chineses nunca tenham uma democracia?
Eric Vanden Bussche –
 É possível, mas minha opinião é que esse processo de democratização vá ser lento. As mudanças gradativas foram a fórmula de sucesso da China. Por que mudar isso agora? Só para agradar os ocidentais? Deng Xiaoping, por exemplo, dizia que as instituições chinesas precisam ser reformadas e previu que a população chinesa estaria preparada para eleições presidenciais em 2049. É um prazo bem longo para os nossos padrões, mas já existem hoje eleições diretas para cargos administrativos de pequenas cidades por exemplo. Além disso, há um esforço maior do Partido Comunista em integrar membros que não são do partido na administração local.

BBC – O que explica essa falta de preparo para a democracia do povo chinês?
Eric Vanden Bussche – 
A China é um país com uma diversidade inacreditável, embora, os ocidentais vejam a China como um país homogêneo. São 56 etnias, 93% da população pertence a maioria Han, mas o restante tem suas próprias culturas. E dentro da etnia Han, existem grandes diferenças no Norte, no Sul, no Leste e no Oeste do país. O elemento de coesão sempre foi a figura do imperador, a burocracia do império. Eu acredito que, por isso, a China sempre tenha sido um país hierarquizado.

Confúcio prega isso nas relações entre as pessoas, na família, na sociedade. Desde criança, o chinês aprende isso. Evidentemente, hoje, a China tem mais contato com o mundo e os jovens têm uma concepção mais aberta em relação à ordem social. Há um longo caminho a percorrer. Mas mesmo a democracia terá que ter características chinesas.

BBC – Da forma que o senhor fala, parece que existe um risco na democracia. Que risco seria esse para os chineses?
Eric Vanden Bussche –
 Se a democracia fosse instaurada hoje na China, o país viveria um caos ainda maior do que o vivido pela União Soviética. O país correria sério risco de desestruturação territorial. A minoria tibetana e a minoria muçulmana têm raízes culturais muito fortes e elevado grau de concentração em certas áreas. Uma vez que a China ficasse democrática, a separação seria quase inevitável neste momento. Além disso, o chinês não está maduro o suficiente, não tem a noção de cidadania que permeia as democracias ocidentais. Para que a democracia funcione, precisa haver consciência de deveres e direitos políticos. Isso não existe aqui.

BBC – O governo está preparando a população de alguma maneira para isso?
Eric Vanden Bussche –
 O governo está aos poucos criando um sistema jurídico mais estável. A melhor forma de preparar a população seria alicerçar as instituições político-jurídicas do país, criar mais transparência e eliminar a corrupção. Isso está sendo feito, mas a passos de tartaruga porque há várias facções rivais dentro do Partido Comunista que querem Chinas diferentes.

BBC – Que facções são essas?
Eric Vanden Bussche –
 O primeiro-ministro, Zhu Rondji, por exemplo, não cumprirá um segundo mandato porque foi um pouco longe demais no combate à corrupção. Alguns amigos pessoais de Jiang Zemin acabaram sendo envolvidos nessa caça aos corruptos e isso teria deixado o presidente insatisfeito. Não que Jiang Zemin seja corrupto, mas há grupos no governo que não querem mudanças drásticas.

BBC – O senhor está dizendo que não querem mudanças porque se beneficiam da corrupção?
Eric Vanden Bussche –
 Não há provas sobre ninguém, e quando há essa pessoa é punida. Mas há denúncias, por exemplo, contra o presidente do Congresso, Li Peng.

BBC – Será que se alguma coisa contra ele fosse comprovada, ele poderia ser punido mesmo sendo o segundo homem mais poderoso na política chinesa?
Eric Vanden Bussche –
 Sem sombra de dúvida. Um ex-prefeito de Pequim foi condenado à morte por exemplo. Ninguém está imune a isso. A corrupção é um problema endêmico do regime político chinês. Se não for controlada, pode acabar destruindo as instituições como um câncer. Freqüentemente, integrantes do governo são condenados à morte. Mesmo a corrupção passiva é punida severamente.

BBC – Falamos muito da visão do governo chinês como se não houvesse divisões, mas qual é a disputa de poder interna que existe na cúpula do governo?
Eric Vanden Bussche –
 Li Peng representa uma facção conservadora, mais atrelada à economia planificada, é a favor de obras faraônicas. Zhu Rondji representa o oposto, gostaria de acelerar as mudanças econômicas e de certa forma políticas. Já Jiang Zemin é um líder que subiu por sempre estar em cima do muro e sempre saber se aliar à facção vencedora. Ele deve continuar a ter uma enorme influência nos círculos militares mesmo após deixar o cargo de presidente.

BBC – A sucessão de Jiang Zemin é cercada de mistério, mas quem deve substituí-lo no posto de presidente na sua opinião?
Eric Vanden Bussche –
 O vice-presidente Hu Jintao é o mais cotado. Ele é uma das figuras do governo que tem maior carisma. Ele não mudará o curso das reformas, mas talvez possa haver uma maior abertura política com o Hu Jintao. Ele não é tão burocrático quanto o Jiang Zemin, é muito mais jovem e representa uma nova geração de líderes. Ele é uma figura que age nos bastidores, tem muito mais consciência da necessidade de reformas e tem muito mais iniciativa. Enquanto Jiang Zemin é uma figura mais passiva, o Hu Jintao é oposto, toma iniciativa muito maior. Ele não cresceu durante o período pré-revolucionário, não está atrelado àquela ideologia política.

BBC – Os chineses discutem muito o legado que será deixado pelos atuais líderes. Na sua opinião, que legado deixa Jiang Zemin?
Eric Vanden Bussche –
 O grande objetivo dele era reunificar a China. Hong Kong voltou às mãos da China em 1997, Macau, em 1999. O problema é Taiwan. Jiang Zemin não vai conseguir reincorporar Taiwan, e isso certamente impede que ele deixe um legado que possa ser comparado ao de seus antecessores, da primeira e da segunda geração. Ele é visto como alguém que simplesmente continuou a obra de Deng Xiaoping.

BBC – O senhor vê alguma possibilidade de Taiwan voltar para a China?
Eric Vanden Bussche –
 Eu acredito que eventualmente haverá uma reunificação. A maior parte da população de Taiwan não quer porque, neste momento, a situação atual é mais vantajosa para eles. Não precisam se submeter ao regime de Pequim, e isso não atrapalha em nada a integração econômica dos dois. As duas economias se completam, têm relação simbiótica.

BBC – Mas o senhor acha então que essa reunificação será pacífica? 
Eric Vanden Bussche –
 Eu acredito que continuará havendo fricções entre os dois, que serão causadas, em grande parte, pelos Estados Unidos, que usam Taiwan como forma de pressionar a China e de conseguir certas concessões. Mas as duas economias estão criando uma dependência tão grande que será inevitável uma reunificação no futuro. Não acho que será necessário esperar a democratização, mas o povo de Taiwan terá que se sentir seguro. É muito possível que uma guerra não seja necessária.

BBC – O senhor citou a influência dos Estados Unidos na questão de Taiwan. Antes, o problema era o comunismo. Qual o problema agora?
Eric Vanden Bussche –
 Os americanos vêem a China como ameaça à sua hegemonia no Pacífico, isso é óbvio. Entretanto, a postura varia de governo para governo. Os democratas tendem a enxergar essa relação como uma parceria estratégica. A era Clinton pensava que, para harmonizar as diferenças, era preciso integrar os países nas instituições internacionais. A entrada da China para a Organização Mundial do Comércio era um dos grandes objetivos da administração Clinton.

A China teria que jogar conforme as regras do jogo e isso acabaria beneficiando os Estados Unidos. Agora, com a mudança de governo, a fricção entre a China e os Estados Unidos tende a aumentar. A política de Bush é oposta à da era Clinton. Querem excluir os países que não têm os mesmos princípios democráticos e de livre comércio, embora os Estados Unidos sejam protecionistas. A China deixa de ser um parceiro e passa ser um competidor.

BBC– O senhor diz que a entrada da China para a OMC beneficia os Estados Unidos. Está beneficiando a China?
Eric Vanden Bussche –
 No curto prazo, acho que não será benéfica. Toda mudança produz um certo desgaste inicial. Mas no longo prazo, tenderá a ganhar muito com isso. Mas tudo vai depender de como a China vai preparar as instituições para isso. Se a China começar a modernizar a agricultura, melhorar as instituições jurídicas e melhorar o gerenciamento das estatais, só tende a ganhar.

BBC – Falando em estatais, o governo está tendo sucesso nos processos de privatização parcial que tem feito?
Eric Vanden Bussche –
 Desde de 1996, o governo chinês vem tentando melhorar as estatais. Muita gente tem sido demitida, estão fechando as portas de empresas que não são produtivas, estão limitando empréstimos que são usados para maquiar contabilidades, estão exigindo mais transparência na divulgação dos dados publicados por empresas. Muita coisa está sendo feita, mas a China é um país enorme, é difícil saber se esse processo está sendo feito de forma ampla e profunda. Se essas mudanças forem apenas vitrine, só poderemos descobrir daqui a dois ou três anos.

BBC – Qual está sendo o impacto dessas demissões em massa sobre a sociedade?
Eric Vanden Bussche –
 O desemprego está aumentando muito. As diferenças sociais estão aumentando. O governo chinês vai ter que criar mecanismos para absorver essa mão-de-obra que é extremamente desqualificada e que não sobrevive à competição para evitar problemas sociais.

BBC – Mas quando a gente olha os números da economia chinesa, o crescimento é tão grande que dá a impressão de que essas pessoas vão acabar sendo absorvidas, ainda que em trabalhos de mais baixo nível.
Eric Vanden Bussche –
 As estatísticas chinesas não são muito confiáveis, principalmente, por culpa do governo local. O governo federal estabelece certas metas. Cada província tem que plantar 10 toneladas de um produto por exemplo. As prefeituras muitas vezes distorcem os números para não terem problemas em atingir as metas do governo central. O índice de crescimento é inflado. Mas o fato é que continua crescendo, talvez não a 7% ao ano, mas a 4%. Ainda assim é um número constante e superior ao da maioria dos países.

BBC – Como os chineses vêem os países ocidentais?
Eric Vanden Bussche –
 Os chineses têm uma grande curiosidade, mas a mentalidade hoje já não é a mesma de 10 anos atrás. Até 1989, por exemplo, muitos jovens eram partidários da democracia e acreditavam que os Estados Unidos eram uma espécie de paraíso onde o nível de vida era mais alto, havia liberdade de expressão. Isso mudou porque a mentalidade dos jovens também mudou. A maioria dos chineses não enxergam mais os Estados Unidos como o modelo ideal. Embora muitos queiram ir se especializar nesses países, a maioria volta.

A China cresceu, eles acreditam que podem ter mais oportunidades de trabalho aqui do que lá. Além disso, existe um certo sentimento antiamericano. Acham que os Estados Unidos sempre tentam interferir na política interna do país. Esse sentimento começou a ganhar espaço em 1989 quando a embaixada chinesa na Iugoslávia foi atingida em um bombardeio da OTAN.

BBC – O que ainda há de comunista na China?
Eric Vanden Bussche –
 Não há mais nada de comunista na China. A China diz que seu regime é um socialismo com características chinesas. Entretanto, as relações de trabalho – e a economia como um todo– abandonaram os dogmas socialistas e hoje a economia chinesa se aproxima muito mais de uma economia capitalista do que de uma economia planificada. Obviamente, ainda há certas diretrizes formuladas pelo governo central, mas não têm o impacto que tinham há 20, 30 anos.

Além disso, hoje nem mesmo os próprios integrantes do Partido Comunista acreditam no comunismo, embora passem por treinamento ideológico, tenham que assistir a cursos de teoria marxista, socialismo científico, estão lá porque é uma obrigação. Os próprios professores que lecionam não acreditam mais nisso, chegam a falar abertamente que não acreditam nos ideais comunistas.

BBC – Qual a grande preocupação do chinês hoje?
Eric Vanden Bussche –
 A grande preocupação da população é econômica e não política. O nível de vida está aumentando, mas há pessoas que serão excluídas desse processo. O medo do desemprego preocupa muito mais do que a liberdade de expressão. E acredite se quiser, há grande liberdade de expressão na China. Na universidade de Pequim, assim que cheguei, um professor entrou na sala de aula e a primeira coisa que disse foi que toda aquela história de teoria marxista era uma besteira. É verdade que, em certos assuntos, não se pode criticar o governo como Taiwan , os movimentos separatistas, a alta cúpula do partido, e o Falun Gong. Fora isso, o chinês pode falar sobre qualquer coisa.

BBC – De alguma forma sua compreensão maior da China ajudou o senhor a compreender melhor o Brasil?
Eric Vanden Bussche –
 Sem sombra de dúvida. A China é o exemplo do país subdesenvolvido que está caminhando para frente. O Brasil é a antítese da China. Tem riquezas naturais, mas caminha para trás. Hoje, o Brasil ainda é mais desenvolvido do que a China, apesar de ter uma economia menor. Daqui a 10 anos, será o contrário. Grande parte desse fenômeno se deve à mentalidade do povo brasileiro em relação ao subdesenvolvimento.

Eu acredito que o brasileiro é conformado com o subdesenvolvimento, não se esforça para superá-lo. Os chineses não se conformam, se esforçam muito mais, acreditam que podem melhorar. Qualquer universidade da China, num sábado à noite, está repleta de estudantes nas aulas de aula estudando. No Brasil, sexta-feira à tarde já tem pouca gente. Está todo mundo nos bailes. Há um abismo entre as mentalidades. O Brasil será o eterno país do futuro enquanto a população não mudar sua mentalidade.

http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2002/021103_ericbuschefinal.shtml

Luis Nassif

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