O novo plano quinquenal da China

A China, o conceito e o Plano

Elias Jabbour

Encerrou-se,há algumas semanas atrás, a reunião anual da Assembleia Popular Nacional, o órgão-máximo legislador da República Popular da China. Porém, esta sessão guardou carácteres especiais. Foi nela que se discutiu e aprovou as metas a serem alcançadas pelo país para o próximo quinquênio que se inicia este ano e fim previsto para 2015.

O informe apresentado pelo primeiro-ministro Wen Jiabbao pôs a nu as dificuldades de uma conjuntura de retração externa e uma alta nos índices de preços internosque por si são alarmantes para um governo que luta a todo custo pela manutenção da ordem social. Por outro lado, o caráter “externo” da inflação mais a imposição de uma “guerra cambial” pelos EUA demonstra que o mundo coloca a governança chinesa diante de duros desafios. Essa indicação é perceptível na ambição exposta nas metas a serem alcançadas, entre elas a de: índices médios de crescimento que podem variar de 7% a 8% ao ano, portanto mais baixa que a média de quase 10% dos últimos 30 anos. O que antes de indicar um “pouco suave”, demonstra busca de um equilíbrio econômico difícil de ser alcançado por uma economia de tal dinamismo e com altíssima liquidez.

Além da questão que envolve o crescimento econômico, a busca por índices de inflação anuais que não passe dos 4,5%, criação de 50 milhões de empregos urbanos e construção de 36 milhões de casas para população de baixa renda são números que indicam a continuidade do processo de transição interna da estrutura econômica e social do país. Outro exemplo está no implícito recado à base rural do regime no objetivo de subsidiar a agricultura com a injeção de US$ 300 bilhões nos próximos cinco anos, significando em aumento de 23% com relação aos anos compreendidos entre 2006 a 2010 (1). Mas, a realidade deve ser apreendida no processo. E é isso que tentaremos demonstrar.

 

Continuidade de um processo

A imprensa internacional tem dado conta de um giro de 180° na orientação política e econômica chinesa a partir da execução deste 12° Plano. Trata-se de uma meia-verdade. A elaboração, nos estertores da subida ao poder da dupla Hu Jintao e Wen Jiabbao em 2002, de ideias-força como o “Conceito Científico de Desenvolvimento” e o de “Sociedade Socialista Harmoniosa” são expressões políticas deste processo nada novo.

O que existe é uma transição de prioridades iniciada já no final da década de 1990, nos albores da crise financeira asiática de 1997, entre eles cabendo destaque ao lançamento do “Programa de Desenvolvimento do Oeste”. Plano este que desde então já consumiu US$ 3 trilhões. Na verdade, as opções chinesas de inserção na economia internacional, aliada a liberalização do comércio de excedentes agrícolas em 1978 trouxeram duas grandes conseqüências. A primeira traduzida na grande diferença entre interior e litoral e a segunda que nasce no bojo da formação de uma divisão social do trabalho e conseqüente diferenciação social e que desembocou em lapidares diferenças de renda sociais e entre indústria e agricultura. Bom notar que o Programa de Desenvolvimento do Oeste é o atual carro-chefe do regime e tem-se constituído na maior transferência territorial de renda da história contemporânea sob a forma de transferências de recursos financeiros do litoral ao interior, que por sua vez, remete às manufaturas litorâneas matérias-primas essenciais como o gás natural do Xinjiang e da Mongólia Interior. Anexo a esta empreitada está a formação – a partir de 1999 – de 149 conglomerados empresariais estatais, formando a espinha dorsal da base estatal que serve tanto como ponta-de-lança da estratégia internacional chinesa quanto como base objetiva interna, núcleo pelo qual se assenta o enfrentamento de crises externas e por onde gravita as demais formas de propriedade do país.

Nesta mesma esteira de transformações pós-1999 estão as ocorridas no âmbito rural. Com a entrada da China na OMC em 2001 e a conseqüente queda da taxa de importação de grãos, o que se esperava era uma degringolada na produção agrícola e uma consequentemente (dado o peso político dos camponeses no país) situação de deriva do próprio regime. O resultado foi inverso, inclusive com o aumento do nível de especialização da agricultura e das exportações de hortaliças. Em 2004 foram abolidas todas as taxas que incidiam sobre a renda camponesa. Desde então soma-se sete recordes seguidos – apesar da queda anual da área agricultável – na produção de grãos: em 2010 foi de 545,4 milhões de toneladas (superior 2,9% em relação a 2009). Ainda no quesito agricultura, sublinho que o grande desafio chinês de contenção e equação dos gritantes níveis de desigualdade entre campo e cidade encontra-se justamente na velocidade em que se dá a atual transição de uma agricultura de tipo pequena produção mercantil para outra marcada pela grande propriedade cooperativizada, altamente especializada e com elevada composição orgânica do capital. É neste processo de largo alcance, que ocorre essencialmente no interior chinês, que se devem concentrar os estudiosos das desigualdades sociais e regionais na China e seus desdobramentos futuros.

 

Aprofundamento de rumo

Uma política de valorização dos salários foi instituída com reajustes médios anuais com variação determinada pelo crescimento do PIB. Interessante notar que no quesito salário, os aumentos médios – o que inclui – de todas as categorias em 2010 foram da ordem de 20%. A prioridade ao encaminhamento de uma dita “questão social” no país está claro nas prioridades do orçamento nacional para 2011. Com o crescimento da arrecadação da ordem de 8% com relação a 2009, o governo central deve manobrar US$ 1,36 trilhão sob forma de investimentos. Deste montante 75% devem ser direcionados a projetos de melhoria das condições de vida do povo e concentrados nas áreas de educação, saúde, previdência social, emprego e cultura, além de grandes projetos de infraestruturas rurais (2).

Algumas anotações sobre a amplificação de um sistema nacional de saúde. A reforma fiscal promulgada em 1994 ao mesmo tempo em que fortaleceu o governo central debilitou em demasia as finanças ao nível provincial. O resultado mais visível deste processo foi o colapso do sistema de saúde e a utilização deste serviço como forma de arrecadação fiscal. A reversão deste quadro inicia-se em 2004 com a criação do Sistema de Medicina Cooperativa (SMC) e financiado por um fundo entre contribuintes, governo nacional, províncias e cidades. Entre 2004 e 2010, o número de cidades e/ou vilas participantes subiu de 233 para 2999. No mesmo período, os cidadãos sob cobertura deste plano saltou de 76 para 585 milhões (3). Até 2011 a expectativa é que aumente a cobertura total para 90% das localidades nacionais. Para 2015, a cobertura (via Estado) deverá sair do atual patamar de US$ 18,29 por pessoa para US$ 61,20.

A transição iniciada no 11° Plano Quinquenal (2006-2010) de um tipo de crescimento quantitativo para outro qualitativo é muito evidente nas metas de redução do consumo de combustíveis fósseis e emissão de poluentes expostas no 12º Plano. Caminhará em paralelo ao plano qüinqüenal anunciado um chamado “plano qüinqüenal verde” que estima investimentos na reestruturação produtiva e conservação ambiental da ordem de US$ 222,5 bilhões e objetivando a queda de 17% na intensidade de carvão por unidade do PIB (4). Não são somente em políticas setorializadas e sob pressões externas que se mede a opção pela proteção ambiental. E sim no próprio caminhar do processo histórico expressada em uma política industrial em plena concordância com metas estratégicas sob o patrocínio de políticas monetárias expansionistas. Daí o déficit orçamentário para 2011 estar calculado em cerca de 2% do PIB (US$ 137 bilhões). Os chineses, definitivamente, não têm medo de si mesmos.

São sete os setores industriais-chave prioritários a investimentos para os próximos cinco anos, a saber: geração de energia via fontes não fósseis, indústrias relacionadas a setores de alta tecnologia, novas matérias-primas, biotecnologia, indústria farmacêutica, tecnologia da informação e o de carros elétricos. Uma política industrial deste porte depende de mais esforços em matéria de ciência e tecnologia e maior interação entre os 149 conglomerados estatais e o sistema financeiro. Objetiva-se subir do atual patamar de 1,8%– em investimentos no setor de C&T – para uma média de 2,2% com relação ao PIB. Ao lado disto, a concentração dos investimentos no ensino secundário é muito clara com a intenção de aumentar os investimentos médios em 87% com relação ao verificado nos últimos cinco anos (5). Uma verdadeira revolução educacional em curso e à vista.

Neste sentido, outra relação de continuidade com o 11° Plano deve ser destacada, pois desde o ano de 2010 a China já é a maior produtora mundial de células solares e turbinas eólicas, inclusive mudando uma situação de importadora deste tipo de tecnologia para exportadora ao mercado norte-americano. Essa ênfase – também – na reestruturação produtiva demonstra que a questão ambiental, antes de ser uma questão a ser tratada no campo da moral, transformou-se – aos chineses – em mais uma larga fronteira de acumulação e de alcance estratégico. Em outras palavras, isso significa que a questão ambiental e sua solução terão cabo na medida em que esta empreitada suscitar lucros no horizonte. Uma grande fronteira entre a 2ª Revolução e a 3ª Revolução Industrial e por onde se travará mais um capítulo na novela da concorrência e cooperação entre China e Estados Unidos.

 

A China em um outro patamar

Os dados e informações apontam que na China além da questão ambiental (inserindo nessa questão a reestruturação produtiva), a urbanização e a elevação da produtividade do trabalho na agricultura estão no topo da agenda do país. Agenda esta concentrada na desarticulação das imensas contradições sociais e territoriais surgidas no bojo de um processo ininterrupto de crescimento que já dura três décadas. Mas existem diferenças essenciais a serem destacadas para uma exata e científica noção do processo. Uma delas e ser apontada – no que cerne a urbanização – está no fato de ao contrário de países como o Brasil cujo processo de urbanização levou ao pé da letra as (não) lições da anarquia da produção, na China as reformas rurais iniciadas por Deng Xiaoping de estímulo a produção familiar de gêneros alimentícios, da própria concessão da posse da terra e da flexibilização planificada do sistema hukou de residência e migração interna criou um verdadeiro colchão para a não-favelização das metrópoles do país. Isso explica em grande medida a não presença em metrópoles como Xangai e Pequim de um numeroso exército industrial de reserva: esta reserva de mão-de-obra está concentrada no âmbito do vilarejo, indo e vindo para as grandes cidades dependendo da conjuntura.

Como dissemos em oportunidades anteriores existe a diferença essencial a ser destacada no fato da transformação da China em uma potência financeira e na margem deste lastro financeiro executar o que chamamos de novas e superiores formas de planejamento. Formais estas de planejamento capazes, a partir do dispêndio financeiro estatal em grandes empreendimentos, de orientar o próprio mercado em concordância com os objetivos estratégicos do regime. Este planejamento de nível superior se diferencia das praticadas pela própria China e URSS – também e principalmente – pela existência de uma solidez financeira jamais sonhada e mesmo concebida pelos chamados “teóricos da programação”. Daí a capacidade do país em “girar o compasso” de seu próprio modelo combinando estratégias mercantilistas externas agressivas com a gestão de centenas de bilhões de dólares em projetos como o já citado go west e os anexos à reestruturação produtiva em prol da menor utilização de combustíveis fósseis.

Os desdobramentos das reformas econômicas chinesas desembocaram na necessidade da fusão da “grande empresa” com o “grande banco”. E a fusão entre estes dois setores da economia é a própria essência moderna deste nada paradoxal “socialismo de mercado” e “com características chinesas”. É fulcral ao elaborarmos os caminhos de um novo salto civilizacional como moldura da transição socialista no Brasil a apreensão deste processo de fusão da indústria com o sistema financeiro. A China demonstra que se esta grande empresa baseada num sólido sistema financeiro foi a base da arrancada norte-americana, o mesmo processo de dá no socialismo, cuja superioridade diante do capitalismo está na própria capacidade de gerir este processo em meio a um mundo ainda amplamente hegemonizado social, política, ideológica e militarmente pelo imperialismo. Além deste fator existe o próprio desafio de gerir este processo de dimensões gigantescas numa formação social complexa e eivada de desequilíbrios como a verificada na China. Estudar o socialismo e seus desafios neste presente século passa – obrigatória e necessariamente – pelo estudo destas complexidades em volta do processo em andamento no gigante asiático.

Retornando, se num primeiro estágio o acúmulo de reservas cambiais foi amparo à execução de uma política de juros atraente ao crédito, num outro momento a construção de um complexo e sofisticado sistema financeiro controlado pelo Estado e em consonância com as normas da moderna economia monetária tornara-se essencial. Foi-se o tempo da existência de um único banco de depósitos e retiradas. O caminho passou pela criação de quatro bancos estatais de investimentos. Atualmente já chegam a 20 o número destes bancos, incluindo os de estímulo ao desenvolvimento urbano de cidades como Pequim, Xangai e Shenzen. Esse desdobramento financeiro das reformas se espraia tambémnas zonas rurais. Está em execução o processo de fusão das 35.000 cooperativas de crédito rural e sua transformação num amplo sistema financeiro agrícola formado por sete bancos de investimento (6). Trata-se da necessária base financeira ao já colocado processo de transição entre a pequena produção mercantil para outra marcada pela “grande propriedade cooperativizada, altamente especializada e com elevada composição orgânica do capital”.

Enfim, tanto a análise dos fatos quanto do processo per si demonstram que se colocar de diante de espelho e prática cíclica de boa governança na China. Lições para o Brasil? Que a história demonstre tanto as acertadas opções chinesas quanto as nossas equivocadas. Lá e cá ainda ecoam, para o bem e para o mal, as opções feitas na década de 1990.

 

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*Doutor em Geografia Humana pela FFLCH-USP com a tese “Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado na China de Hoje”, membro do Conselho Editorial de Princípios e autor de “China: infra-estruturas e crescimento econômico” (Anita Garibaldi, 2006, 256 p.).

 

Notas:

(1) Setting Out Strategies for the Future Economy. In, Beijing Review. No.11 March 17, 2011. Acessível em: http://www.bjreview.com.cn/Cover_Stories_Series_2011/2011-03/14/content_343719.htm

(2) A Budget for the People. In, Beijing Review.No. 12 March 24, 2011. Acessível em:http://www.bjreview.com.cn/business/txt/2011-03/20/content_345843.htm

(3) China Statistical Yearbook para todos os anos.

(4) China Economic Watch: New 5-Year Plan and Budget Set to Support China’s growth. In, BBVA Research. Hong-Kong, March 25, 2001. Acessível em: http://www.bbvaresearch.com/KETD/ketd/bin/ing/publi/asiayotros/novedades/detalle/348_252120.jsp?id=tcm:348-183555-64

(5) Idém.

(6) Sobre isto ler: “O crédito e as múltiplas formas de financiamento como o motor primário do desenvolvimento chinês”. In, JABBOUR, Elias Marco Khalil: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado na China de Hoje. Tese de Doutorado defendida ao Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH-USP. Dezembro de 2010. p. 256-278.

 

Luis Nassif

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