Mariana Serrano: Narrativa da desqualificação da vítima reflete no silenciamento do estupro

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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"Estou longe de dizer que o acusado de estupro não tem direito de defesa, mas isso não quer dizer que a mulher tem de ser desumanizada no processo", diz a advogada. Assista na TV GGN

Jornal GGN – A cena repercutiu nacionalmente no início de novembro de 2020. Uma blogueira que decidiu denunciar um empresário do futebol por estupro de vulnerável é estrondosamente humilhada numa audiência judicial pelo advogado do réu, sem reação enérgica da Defensoria Pública ou do próprio Juízo. Sem qualquer relação com o processo, fotos da jovem – com “poses ginecológicas”, nas palavras do advogado – são usadas para criar a imagem de uma mulher com comportamento indefensável. A estratégia é desqualificar a vítima porque, sem vítima, não tem crime.

Quem imagina que o tratamento “desumano” que marcou o caso Mari Ferrer é exceção à regra, está enganado. A “narrativa da desqualificação” é um expediente conhecido de quem atua no ramo e as mulheres precisam saber disso, justamente para que possam reunir forças para denunciar e se preparar adequadamente para o enfrentamento. É o que diz a advogada feminista Mariana Serrano, a convidada do 19º episódio do programa Cai Na Roda.

“Esses homens [violadores] não podem mais transitar como se nada houvesse. Não podem mais existir como se estivesse tudo bem fazer essas coisas que eles fazem. A gente vai continuar dando consequência [judiciais], sim. E não vamos admitir mais um Poder Judiciário, uma delegacia, um Ministério Público que re-violentem a gente. Isso vai mudar.”

Na visão de Serrano, a “narrativa da desqualificação” gera reflexos diretos sobre as subnotificações de casos de estupro e, não à toa, segundo ela, cerca de 90% das ocorrências do tipo não são reportadas às autoridades, pois as mulheres sentem medo, vergonha e não têm estrutura psicológica para lidar com a exposição e o calvário prometidos àquelas que denunciam.

“A gente precisa superar a narrativa da desqualificação, fazer o que chamo de tática da humanização”. “Estou longe de dizer que o acusado de estupro não tem direito de defesa, mas isso não quer dizer que a mulher tem de ser desumanizada no processo. Vamos falar do que o processo trata, do que aconteceu no dia, das provas, não de dados que não têm relação e desumanizam a vítima”, disse. Para Serrano, desqualificação como a sofrida por Mari Ferrer é “uma violência simbólica para todas as mulheres”.

ESTUPRO CULPOSO, NULIDADE, NOVA DENÚNCIA

Na entrevista às jornalista do GGN, Mariana Serrano também explicou a confusão acerca do “estupro culposo” relacionado ao caso Mari Ferrer, cuja denúncia foi especificamente por estupro de vulnerável. Não houve, segundo ela, a criação de um novo tipo penal – o “culposo”-, ao contrário do que alguns veículos de imprensa fizeram parecer.

O GGN teve acesso à sentença que aponta que o réu foi absolvido em primeira instância por falta de provas quanto à vulnerabilidade da vítima, já que, para o Juízo, os exames toxicológicos foram inconclusivos. A Defensoria Pública entendeu que o acusado tampouco tinha condições de saber se a vítima estava fora de si. A despeito da existência de sêmen e rompimento do hímen atestado por laudo médico e citados pelo Juízo na sentença, a defesa do réu negou sexo com penetração e sustentou que a troca de sexo oral foi consentida.

O processo está sob sigilo e não há como avaliar detalhadamente as provas apresentadas. Mas, na visão de Mariana Serrano, “o processo foi nulo desde a audiência”. “Aquilo é praticamente colher depoimento sob tortura. Para mim, tinha que voltar, fazer a audiência de novo de forma respeitosa com ela, e fazer outra sentença com base em provas que não estivessem viciada do jeito que o depoimento estava.”

Embora caiba recurso à sentença, na opinião de Serrano, Mari Ferrer tem direito a apresentar uma nova denúncia contra o empresário, agora focando apenas no estupro, removendo o tipo penal “vulnerável”.

Essa alteração na denúncia, aliás, poderia ter sido feita antes, caso a influencer tivesse tido o direito a uma defesa particular atuando como assistente de acusação, algo negado pelo Juízo depois que o Ministério Público, titular da ação, ter se manifestado contra. “Não é ilegítimo que o Ministério Público se manifeste contrário, mas entendo que as vítimas têm direito de ter assistente de acusação”, comentou Serrano.

Segundo a advogada, o caso Mari Ferrer tem potencial de abrir um debate de repercussão geral sobre o estado alcóolico da vítima que acusa o estupro de vulnerável. “É uma questão que está por vir: qual é o limite de álcool para o consentimento?”

Na experiência de Serrano, o “ideal” é a mulher que sofreu estupro procurar imediatamente um hospital – se possível, de referência – para colher material genético; depois, procurar a delegacia para prestar queixa e, se tiver condições financeiras, constituir uma defesa feminista e realizar exame toxicológico particular em caso de ter ingerido substância que alterou seu poder de discernimento. “A gente pega um pouco de descrença dessas instituições [públicas responsáveis pelo processamento de exames que servirão de prova]”, confidenciou Serrano.

A advogada também criticou o fato de as delegacias não terem profissionais especializados no atendimento às vítimas de violência de gênero. Ao contrário disso, há uma “cultura” de transferir delegados indisciplinados para esse departamento, como forma de punição. “São poucas as pessoas que de fato têm interesse e querem ficar nas delegacias das mulheres. É um problema porque todos deveriam saber atender mulheres, é um trabalho que requer uma qualificação a mais” e, para Serrano, mereceria até uma remuneração extra.

Serrano também avaliou que o Estado precisa “fortalecer e melhorar” muito as casas de abrigo para mulheres vítimas de agressões e outras políticas públicas.

O EFEITO BOLSONARO

Questionada se, como advogada feminista, verificou algum aumento nos casos de violência de gênero, Serrano respondeu que identificou um crescimento de casos de agressão direcionados à população LGBT e a violência doméstica, em virtude da pandemia.

Para ela, o fato de o presidente da República, Jair Bolsonaro, discursar recorrentemente contra os direitos das minorias também serve de chancela para toda sorte de agressão. “Essas violências que Bolsonaro fala sem freio, sem ser censurado pela mídia, pelo Judiciário, sem consequência para ele, ele fala o que quer e nada acontece com ele, isso serve de exemplo. Os LGBTfóbicos se sentem intocáveis.”

 

 

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

1 Comentário

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  1. A questão da mulher também pode ser pensada dentro de um contesto ampliado. Elas não são as únicas vítimas desumanizadas estruturalmente pela sociedade brasileira. Índios, negros, mestiços e pobres de todas as cores são tratados como se fossem lixo social pelos órgãos estatais. Quando são réus, eles são presumivelmente culpados. Quando são vítimas de abusos cometidos por agentes estatais ou por pessoas ricas humanidade deles também é desprezada. Se compararmos a situação das mulheres às dos índios, negros, mestiços e pobres de todas as cores nós perceberemos um detalhe importante: elas estão mais bem representadas nos poderes públicos e ocupam posições de destaque em todas as carreiras profissionais valorizadas. A situação das mulheres que pertencem aos grupos mencionados (índios, negros, mestiços e pobres de todas as cores) é duplamente vulnerável. Mas as lutas delas não são necessariamente objeto de preocupação de todas mulheres que ocupam posição de prestígio, pois algumas delas preferem legitimar os preconceitos que estruturam a sociedade brasileira. O recorte de sexo é importante, mas nunca será mais importante do que o recorte de classe.

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