Moby Dick e a reeleição de Obama

Por Marco Antonio L.

Do O Cafezinho

Obama, Moby Dick e a coragem política

Miguel do Rosário

Gregory Peck é o capitão Ahab, em Moby Dick, filme de Jonh Huston; a seu lado, seu primeiro imediato, Starbuck

“I will have no man in my boat,” said Starbuck, “who is not afraid of a whale.”

Grande tolice considerar Moby Dick apenas um romance de aventura. As aventuras perfazem uma parte pequena do livro. Considerações de ordem filosófica, em linguagem viva e popular, ocupam a maior parte da obra de Melville. Muitos críticos o consideram o pai de toda a moderna literatura norte-americana.

No capítulo XXVI, o autor nos apresenta Starbuck, primeiro imediato do navio, a segunda autoridade mais importante, depois do capitão, o soturno e misterioso Ahab. A declaração de Starbuck, citada acima, não é, obviamente, uma glorificação da covardia. O próprio autor a explica, na frase seguinte:

Com isso ele parecia dar a entender não apenas que a coragem mais útil e digna de confiança é a que nasce da justa avaliação do perigo que se enfrenta, mas também que um homem inteiramente desprovido de medo é um companheiro muito mais perigoso do que um covarde.

Ao longo do romance, ficará mais claro como a prudência e cautela de Starbuck, ao mesmo tempo em que flertam com a covardia, representam um contraponto inevitável à coragem insana e suicida de Ahab, que, tomado por um espírito irresistível de vingança, põe de lado todos os escrúpulos referentes à sobrevivência de sua tripulação.

Os personagens de Melville simbolizam os terríveis dilemas da nossa existência. Todos temos, dentro do peito, um Starbuck sério e cauteloso, que é a nossa legítima preocupação com a sobrevivência, nossa e de nossos familiares. Mas também somos guiados, muitas vezes, por um instinto cheio de fúria, o nosso Ahab interior.

O capitão Ahab, todavia, não simboliza apenas o aspecto negativo da ira, mas também a determinação inquebrantável dos heróis, gênios e santos, capazes de pôr o objetivo, os ideais, o sonho, acima da própria vida, acima de qualquer outra preocupação.

Haverá momentos em que a prudência de Starbuck nos parecerá degradante. A loucura de Ahab, ao cabo, contaminará toda a tripulação, que se lançará, junto com ele, no abismo sem volta de uma vingança insensata contra a baleia branca, arquétipo da ferocidade invencível dos elementos naturais.

Barack Obama, reeleito esta semana para um segundo mandato como presidente da mais poderosa nação do globo, é mais um Starbuck, lutando contra os anseios suicidas (mas contagiantes) de alguns dos setores mais dinâmicos dos EUA. A determinação, a coragem, o mais absoluto egoísmo, com que boa parte da sociedade americana deseja lançar os dados de seu destino; a temeridade com que está sempre disposta a apostar tudo que conquistou, em troca de uma nova aventura bélica, política ou econômica; esta é a grande loucura da América, este é seu lado Ahab, que mescla uma ousadia incrível com a mais negra insanidade. É o país capaz de se reinventar numa década, aposentando indústrias e investindo em serviços e tecnologia. Mas é também o país que aposta todas as suas economias numa guerra idiota, genocida e condenada ao fracasso como foi a do Iraque.

O capitão Ahab é a indústria bélica, todo este sinistro cartel da guerra, englobando finanças, informação, indústrias e política, que tem o comando real do navio. Obama é apenas o primeiro imediato, o princípio da moderação, o esforço de trazer um pouco de lucidez e humanismo a um país que parece, por vezes, governado por um capitalismo sem qualquer escrúpulo. Um capitalismo tão vingativo e sinistro quanto Ahab, que não hesita em apoiar golpes de Estado, matanças e destruição econômica, apenas para saciar seu desejo de poder.

A vitória de Obama, por mais que posemos de “decepcionados” com o que ele deixou de fazer, ou que finjamos, para nós mesmos, que tanto fazia um ou outro, proporcionou um alívio de proporções bíblicas ao mundo. As diferenças entre as políticas de Obama e a de Rommey são tênues? Talvez, mas vivemos uma época onde os gestos mais tênues jamais foram tão perigosos. É tênue, por exemplo, a pressão do dedo humano sobre uma tecla de computador. Tão tênue que às vezes nem é preciso tocar. O calor da mão basta para acionar um mecanismo.

Obama decepcionou o mundo, mas Obama também pode ter salvo o mundo. Quem conhecerá os obscuros bastidores do Pentágono, do serviço secreto, dos lobbies sinistramente poderosos de uma indústria bélica que fatura centenas de bilhões de dólares por ano, comandada por homens velhos que não se importariam se o mundo se acabasse em dez ou vinte anos, porque eles mesmos já não estariam por aqui?

Enfim, o primeiro presidente negro dos EUA tem de seguir ordens, ou pelo menos fingir fazê-lo, de forças mais poderosas que ele, forças governadas por um ódio cego e uma ambição insana. Ele não conseguiu fechar Guantánamo, como havia prometido, mas encerrou a guerra no Iraque, a qual sempre se posicionou contra, e criou uma espécie de plano de saúde público, visando atender as famílias pobres americanas.

Enquanto Mitt Rommey escrevia um artigo para o New York Times conclamando o governo a deixar Detroit ir à falência, Obama resgatou as indústrias da cidade, garantindo milhões de empregos numa região que, anos depois, seria estratégica para sua vitória.

As eleições presidenciais nos EUA também nos proporcionaram uma instrutiva lição. A estratégia do preconceito, por exemplo, perdeu no país mais conservador do Ocidente. O pleito foi ganho por um negro filho de muçulmano estrangeiro, a favor do casamento gay, e identificado com todas as causas liberais (mesmo que seu governo não tenha avançado muito neste sentido), como liberação da maconha e aborto.

Aliás, a maconha foi liberada em mais dois estados americanos, Washington (não confundir com a capital, Washington DC, que fica no Distrito de Columbia; o estado de Washington fica na costa oeste, norte, fronteira com Canadá) e Colorado. Com isso, agora temos dezenove estados americanos que permitem o uso da maconha.

Pensando bem, está na hora do mundo rever o que se chama de “conservadorismo” americano. Sobretudo o Brasil. Na prática, somos infinitamente mais conservadores que os americanos: criminalizamos a maconha em todo o território nacional; criminalizamos o aborto de maneira desumana, permitindo inclusive que milhares de mulheres morram nos hospitais porque os médicos são proibidos de tratá-las; e temos um dos piores índices do ocidente de violência homofóbica. Sem contar que os EUA, onde os negros correspondem a menos de 20% da população, e até então era considerado o país mais racista das Américas, elegeu, pela segunda vez, um presidente 100% negão, enquanto o Brasil, onde os negros correspondem a mais da metade das gentes, jamais realizou tal proeza.

Entretanto não vamos atiçar o fogo que incendeia nossos corações vira-latas. Os leitores deste blog sabem como me esforço em fazer um contraponto à tentativa diária de nossa mídia em baixar a nossa auto-estima. Ás vezes tenho até a impressão que a nossa imprensa parece dar mais atenção à eleição americana que à do Brasil. Se alguém acompanhasse a coluna de Merval ao longo do segundo semestre de 2012, por exemplo, talvez nem se desse conta que experimentamos eleições no período, já que o foco de sua coluna, o principal espaço de opinião política na empresa que mais recebe recursos publicitários do governo federal, era exclusivamente o julgamento da Ação Penal 470.

Temos, ao menos, uma superioridade elementar em nosso sistema democrático: um cidadão, um voto. O sufrágio brasileiro é universal e direto. O sistema norte-americano ainda traz vestígios de uma era onde a democracia era um princípio tido como fundamentalmente subversivo, e por isso tinha que ser calibrado com mecanismos de contra-peso para reduzir o poder do voto popular.

Bem, talvez, aqui no Brasil, onde felizmente não há indústrias bélicas com poder de devastar o mundo, precisemos valorizar não apenas a prudência de Starbuck. Para matarmos o leviatã que nos atormenta, esse conservadorismo eternamente golpista, reacionário, que se fortalece no preconceito e na covardia, para aniquilarmos este dragão branco que, sistematicamente, tenta impor seu poder à revelia dos anseios do povo, precisamos de um pouco da loucura, intrepidez e brilhantismo de um capitão Ahab!

Luis Nassif

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