O envolvimento dos agentes da repressão com o jogo do bicho

Sugerido por silvio de sousa

Do O Globo

Bicho cresceu no Rio com ajuda de torturadores
 
Aliança militares e policiais migraram dos porões para a contravenção e levaram a guerra às ruas do Rio
 
CHICO OTAVIO E ALOY JUPIARA

RIO — Isolado na tropa, o capitão Aílton Guimarães Jorge pediu demissão do Exército no dia 9 de março de 1981. O gesto do oficial, ao trancar a farda no armário, selou uma aliança que mudaria o perfil do crime organizado no Brasil: a de agentes da ditadura com a contravenção. Capitão Guimarães é a face mais exposta desse processo, mas não a única. A partir dos anos 1970, um pequeno pelotão de agentes migrou dos porões da tortura para as fileiras do jogo do bicho, levando junto a brutalidade, a arapongagem e a disciplina da guerra suja contra as esquerdas. Bicheiros ajudaram a perseguir inimigos do regime, e a ditadura retribuiu com proteção e impunidade.

Pesquisas a documentos de dois arquivos públicos e da Biblioteca do Exército e depoimentos de agentes, policiais, vítimas da repressão e especialistas permitiram ao GLOBO revelar detalhes e personagens desse processo. Pelo menos dez agentes, entre militares e civis, atuaram na máfia da jogatina ou colaboraram com ela, chegando a ocupar cargos na hierarquia do bicho, principalmente a partir do desmonte gradual do aparelho repressivo no governo Geisel. Sob a influência da doutrina militar e ao custo de uma guerra nas ruas, o jogo do bicho — antes fracionado e informal — tornou-se centralizado e organizado.

Esvaziados pelo processo de distensão política ou excluídos por envolvimento em crimes comuns, agentes da repressão encontraram abrigo na máfia do jogo do bicho quando a guerra suja perdia a força na metade dos anos 1970. O coronel Freddie Perdigão Pereira, os capitães Ronald José Motta Baptista de Leão e Luiz Fernandes de Brito, o sargento Ariedisse Barbosa Torres, o cabo Marco Antônio Povoleri, os delegados Luiz Cláudio de Azeredo Vianna, Mauro Magalhães e Cláudio Guerra, e o detetive Fernando Gargaglione, além do Capitão Guimarães, todos com folha de serviços prestados à ditadura, são citados por essas fontes e documentos como integrantes desse pelotão arregimentado pelo bicho.

Com eles, a experiência de violência e espionagem adquirida nos porões somou-se às práticas da contravenção. Guimarães, que caíra em desgraça no Exército ao ser flagrado comandando uma quadrilha de contrabandistas fardados, encontrou na jogatina fora dos quartéis o caminho para o topo de uma nova hierarquia, à paisana. Aniz Abraão David, o Anísio da Beija-Flor, estabeleceu seu clã político na Baixada Fluminense e se blindou da ação da polícia sobre seus negócios. Castor Gonçalves de Andrade e Silva, o Castor da Mocidade Independente, íntimo de agentes da repressão, negociou com o regime, sendo beneficiado quando sua metalúrgica beirava a falência. Ângelo Maria Longas, o Tio Patinhas, expandiu seus negócios em Niterói com a ajuda de Guimarães.

Assassinatos do período misturaram interesses militares e civis, envolvendo bicheiros e ex-torturadores, desde o de pequenos contraventores, como Agostinho Lopes da Silva Júnior, o Guto (em junho de 1979), cujos pontos em Niterói, São Gonçalo e Itaboraí foram assumidos pelo Capitão Guimarães, a crimes famosos, como o de Misaque José Marques e Luiz Carlos Jatobá (em janeiro de 1981), acusados de invadir a casa de Anísio em Piratininga, Niterói, e do policial Mariel Maryscotte de Mattos (em outubro de 1981), depois de tentar comprar os pontos do bicheiro Jorge Romeu, o Jorge Elefante, em Niterói.

Repressão contra políticos da baixada

A guarnição da 1ª Companhia de Polícia do Exército (PE), da Vila Militar, em Deodoro, foi a gênese desse fenômeno. No final dos anos 60, a PE desencadeou uma repressão contra políticos da Baixada Fluminense, a maioria prefeitos e vereadores cassados pelo regime sob acusação de corrupção. Foi essa limpeza que abriu o terreno para que, em Nilópolis, o clã liderado por Anísio assumisse o controle político local e se apoderasse dos pontos de pequenos bicheiros. Nos anos 1970, Guimarães, Luiz Fernandes e Povoleri, todos da PE e integrantes de um grupo processado por extorquir contrabandistas, começaram seu movimento em direção à contravenção.

Dois dos principais centros de tortura do Rio, o Destacamento de Operações de Informações (DOI) da Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, e a “Casa da Morte”, aparelho montado pelo Centro de Informações do Exército (CIE) em Petrópolis, também foram incubadoras de capangas da contravenção. Na Casa, por exemplo, atuou o então comissário e depois delegado da Polícia Civil Luiz Cláudio, codinome na repressão “Laurindo”, mais tarde braço-direito de Anísio. O sargento Torres, que teria feito parte da equipe de interrogadores do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido em 1971, é outro que migrou do DOI à contravenção. Ele se tornou segurança de Anísio e chefe de barracão da escola de samba Beija-Flor.

Os resultados dessa aliança, pouco depois, seriam vistos com a consolidação de uma nova cúpula do bicho — a verticalização do poder, a eliminação gradual de lideranças de pequeno e médio porte, a anexação de territórios antes fracionados e a organização de rotinas. São dessa época a adoção do sistema de atas nas reuniões e o mapeamento dos pontos, até então distribuídos de forma improvisada. Também foram os agentes da ditadura que ensinaram os bicheiros a grampear seus adversários.

Sistema de “acusações, apurações e punições”

Unidos pelos interesses da contravenção e por um projeto de poder, Castor, Anísio e Guimarães (que passara a controlar a Unidos da Vila Isabel) fundaram em 1984 a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). Castor foi o primeiro presidente, entre 1984 e 1985; Anísio, o segundo, entre 1986 e 1987; Guimarães reinou entre 1987 e 1993, e, depois, entre 2001 e 2007.

— O sistema discricionário de acusações, apurações e punições da ditadura militar deu poder excepcional a certos grupos ligados às polícias, ao SNI e ao sistema DOI-Codi. Deu-lhes, especialmente, tecnologia e know-how para conseguir ou fabricar informações que custavam vidas e rendiam muito dinheiro. Montou-se com a ajuda desses operadores da repressão e da tortura a quase inexpugnável rede mafiosa do jogo do bicho e empresas de arapongas. A Liga das Escolas de Samba é patrocinada e dirigida por contraventores. Ironicamente, no carnaval, nenhum político ou governante posa ao lado de seus organizadores, embora a Liesa seja financiada com dinheiro público — diz Maria Celina d’Araújo, cientista política da PUC-RJ.

Procurados pelo GLOBO, os agentes ou parentes não quiseram falar ou não foram encontrados. Os advogados de Guimarães e Anísio não retornaram as ligações.

Personagens do bicho:

Castor de Andrade

Filho do bicheiro Eusébio Andrade, herdou do pai territórios de jogo na Zona Oeste, mantendo o poder com mão de ferro. Foi presidente de honra do Bangu Futebol Clube e da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Íntimo de militares, manteve negócios com o Exército. Seu poder entrou em declínio em 1994, na Operação Mãos Limpas, quando o Ministério Público e a PM estouraram sua fortaleza e apreenderam livros-caixa. Na contabilidade, foram encontrados nomes de políticos e policiais suspeitos de dar proteção aos contraventores em troca de propinas. Morreu de infarto em 1997. Seu filho e sucessor, Paulo Andrade, foi assassinado em outubro de 1998, na guerra por seu espólio.

Capitão Guimarães

Oficial de Intendência, serviu na PE da Vila Militar-RJ e no DOI-Codi-RJ até 1974. Era conhecido nos porões pelo codinome “Doutor Roberto”. Recebeu a Medalha do Pacificador com Palma em 1969, depois de matar um integrante da VPR. Pouco depois, envolveu-se com o contrabando, cooptado por policiais corruptos, e se demitiu em 1981. Tornou-se banqueiro do bicho em Niterói, apadrinhado por Ângelo Maria Longa, o Tio Patinhas, e chegou à cúpula em quatro anos. Passou a controlar o jogo em Niterói, Região dos Lagos e no Espírito Santo, deixando um rastro de violência. Presidiu a Unidos de Vila Isabel e a Liesa. Foi preso na Operação Marselha, em 1989, no processo presidido pela juíza Denise Frossard, em 1993, e na Operação Furacão, em 2007.

Anísio Abraão David

Líder do clã que, com a ajuda dos militares, passou a controlar politicamente Nilópolis, na primeira metade dos anos 1970. A pretexto de combater a corrupção, agentes do regime perseguiram e cassaram os adversários da família. Fortalecido, Anísio dominou o jogo do bicho na Baixada Fluminense e na Região Serrana, chegando, no mesmo momento, à cúpula da contravenção. Patrono da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, tricampeã em 1976, 77 e 78. Em 1981, foi acusado de envolvimento no assassinato de Misaque José Marques e Luís Carlos Jatobá. Preso em 1993, por formação de quadrilha, e em 2007, por corrupção ativa e passiva.

Luiz Fernandes de Brito

Como capitão, foi acusado de integrar uma quadrilha de contrabandistas. Mais tarde, teria ajudado Mariel Maryscotte a fugir.

Mauro Magalhães

Delegado de Petrópolis em 1971, apoiava a Casa da Morte. Mais tarde, apareceu na lista da propina de Castor de Andrade.

Marco antônio Povo Leri

Braço-direito de Capitão Guimarães na repressão, foi expulso do Exército e atuou depois como segurança do bicheiro.

Luiz Cláudio de Azeredo Vianna

Policial civil, apontado como torturador em Petrópolis, ajudou Anísio a dominar o jogo do bicho na Baixada Fluminense.

Cláudio Guerra

Delegado no Espírito Santo, serviu à repressão. Mais tarde, aliou-se ao Capitão Guimarães, ajudando-o a expandir os domínios.

Ariedisse Barbosa Torres

Um dos acusados do desaparecimento de Rubens Paiva, virou segurança de Anísio e chefe de barracão da Beija-Flor.

 

Redação

4 Comentários

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  1. Pobre Maria Celina…

    Titia está e-s-t-a-r-r-e-c-i-d-a…Só falta a opinião do Magnoli, e um programa “na moral”…

    Descobriram a pólvora: Ora, santo deus, todas as formas ilícitas de acumulação capitalista, que por sua vez são esferas híbridas dos sistemas legais econômicos, encontram nas forças estatais uma correspondência para sua implementação, estratificação, ampliação e poderio…

    O problema é o “tom” da matéria…

    O bicho cresceu por causa de sua aliança com policiais associados ou egressos da ditadura…que tolice…O bicho cresceu porque é um fenômeno econômico e social legitimado como prática cultural desde o início do século passado, colocado à margem da legalidade por razões (?) moralistas, acendendo e inflamando a promiscuidade que advém da incapacidade (ou pouca capacidade) do Estado em regrar os costumes na esfera individual de escolhas do cidadão.

    Não há dúvidas que atividades marginais, e com uso de esquemas violentos, tendem a crescer exponencialmente, ao contráio daquelas que pagam impostos e cumprem(ao menos em parte) normas e regulamentos.

    Todos já devem saber que desde tempos imemoriais o jogo é usado para muito além do simples jogar, e não foram os “prêmios” da Loteria da CEF que ajudaram os anões do Orçamento? Pois é…

    Então, esta reportagem cheira a ataque a imagem da Polícia, que aliás, merece levar todas as cipoadas, mas por favor, com inteligência e propriedade, e não com estes salamaleques pseudo-intelectuais…

    Os esquemas de poder das atuais novas oligarquias do jogo são tão violentas quanto antes, muito mais intricadas, com alcance extra-territorial que Castor nunca imaginou existir (vide a chegada dos espanhóis com as maquininhas caça-níqueis), e vivemos em um espaço onde as garantias democráticas estão cada vez mais presentes, na mesma proporção que aumentou o controle sobre a violência policial…inclusive pelas possibilidades tecnológicas (todo mundo filma todo mundo)…

    A questão é simples: se não fossem os policiais, seriam outros, mercenários pagos a soldo, porque as atividades marginais experimentam fluxos e influxos de violência e ajustes de suas disputas territoriais e de poder…A década de “ouro” de Castor e Cia foi o momento da transição de uma atividade disseminada, mas precária e desorganizada, para um atividade de escala, centralizada e organizada, como mandam as regras do bom capitalismo…

    O uso da polícia foi circunstancial, e não causa do evento…

  2. O que a matéria esqueceu de nos dizer!

    Nassif, 

    O redator “esqueceu” uma retranca na matéria: O envolvimento da Globo com agentes da repressão e o jogo do bicho!

    Quem dos mais velhos pode esquecer dos bicheiros na telinha da Globo durante os vários carnavais da vida?

     

  3. Fio da meada

    Pois é, fica faltando a parte do envolvimento da repressão com o tráfico de drogas. Para isolar os grupos de esquerda, a maioria formada por jovens de classe média, as drogas e o tráfico foram ‘tolerados’ . Aliás tecnologia desenvolvida durante a repressão aos grupos negros radicais nos EUA nos anos 60, liberaram as drogas e eles rapidamente perderam força. Exportamos esta tecnologia para a Itália vencer os grupos radicais de esquerda, as Brigate Rosse foram as mais famosas do período.

    Mas deu no que deu, virou uma pandemia. Bolívia, Peru, Colômbia, México pagam um alto preço por um problema que não criaram e que não é deles.

    Mas esta história não está sendo contada. A verticalização e centralização do ‘jogo do bicho’ parece estar associada ao financiamento do tráfico, afinal chefe de tráfico do morro não controla o tráfico internacional, lavagem de dinheiro, políticos e policiais. Falta alguma coisa para entender a história da indústria da droga no Brasil.

    Horacio V. Duarte

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