O papel do jornal Última Hora durante o golpe

Sugerido por jns

Do Vermelho

Jornal Última Hora: Um Ponto de Luz na Escuridão de 64

Ana Flávia Marx

Na data em que é marcada por um dos episódios mais tristes da história brasileira, 50 anos do golpe militar, é inegável o papel da grande e velha imprensa neste ato. Contudo, há uma luz no fatídico episódio: o papel do jornal Última Hora, único grande jornal contrário ao golpe e o único que defendeu Jango.

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Samuel Wainer observa a impressão de seu jornal

O jornal do chamado ‘Profeta’ Samuel Wainer, criado em 1953, a partir da negação da tese da “imparcialidade” e com o apoio do então presidente Getúlio Vargas, foi o primeiro alvo dos militares junto com a sede da União Nacional dos Estudantes. Com grande circulação nas camadas populares, os golpistas precisaram agir rápido para que o veículo não fosse pilar de alguma reação.
Diferente dos outros jornais que articularam junto com os militares e empresários o golpe, desde o seu início, Última Hora imprimia em suas páginas claro posicionamento político.

Em seus editoriais defendia incisivamente os trabalhadores, a democracia, o desenvolvimento e a soberania nacional. Portanto, sabia que em pleno período da guerra fria, as incertezas com a renúncia de Jânio Quadros trariam conflitos com forte influência da mão pesada dos Estados Unidos.

As evidências vinham da própria boca das lideranças, principalmente de esquerda, que Wainer tinha relações e mantinha constantes diálogos.

Menos de um mês antes do golpe, o dono do Última Hora reuniu se em sua casa com Miguel Arraes, que junto com Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes, dialogava com amplos setores da esquerda. Depois de tomar algumas doses de uísque, Arraes disse à Wainer:

– “No dia 13, teu amigo Jango cai, acaba…”, disse estendendo uma das mãos com o polegar para baixo.

As forças de esquerda queriam mais de Jango. Julgavam-no muito conciliador, moderado demais para aqueles tempos de extrema polarização no cenário mundial, em que a economia brasileira sentia os efeitos da luta internacional. Na última viagem aos Estados Unidos, Lyndon B. Johnson mostrou o poderio bélico norte-americano ao presidente Jango em uma contundente forma de intimidação.

Última Hora era um agitador da reformas de base, programa de Jango, e buscava esclarecer com matérias e reportagens especiais sobre as principais reformas. Naquela época, a reforma agrária tinha 74% de apoio, segundo pesquisa Ibope feita em 1964, porém não divulgada.

O próprio presidente Jango tinha uma relação muito próxima com o jornal Última Hora. Uma prova disso é o diálogo, do começo de 1964, em que o presidente comunicou a Samuel Wainer que prenderia Humberto de Alencar Castello Branco, então chefe do Estado Maior do Exército.

A resposta do jornalista é que daria a manchete na primeira página, desde que o cárcere fosse efetivado, senão ficaria desmoralizado. E escutou do presidente:

– “Vou mandar prender o general Castello Branco. Quem está dizendo isso é o presidente da República.”

Depois de dar a grande manchete, quando o jornal não havia nem esquentado nas bancas, João Goulart recebia em audiência o chefe das forças armadas, que já encabeçava as articulações do golpe.

Mesmo com a barriga imposta pelo presidente, o editor do Última Hora manteve contato com o dirigente brasileiro, pelo menos até aquele momento.

No dia 31 de março, por telefone, Jango fez o convite para que Wainer fosse com ele para Brasília, que respondeu:

– ‘Não, Jango, não vou. Tu vais defender a tua presidência, eu vou defender o meu jornal.’

Sentindo o “azedume” do golpe, Wainer foi naquele mesmo dia pedir asilo na embaixada do Chile. Como a maioria das pessoas, o jornalista acreditava que o golpe não duraria muito tempo e que seu jornal sobreviveria àqueles tempos atormentadores. Mas as sucursais do Última Hora viveram, de acordo com a realidade política de cada estado, situações diferentes.

O primeiro ato dos correligionários de Carlos Lacerda foi acabar com toda a infraestrutura do jornal. Com o empastelamento, o jornal voltou a circular no dia três de abril, somente com duas páginas, mas com os traços críticos da charge de Jaguar.

Em São Paulo, o jornal retomou a sua rotina depois de 21 dias. ‘Quando voltou às bancas, perdera definitivamente a força de outros tempos, vergando-se à anemia que precipitaria sua venda e, mais tarde, a sua morte’, escreveu o jornalista em suas memórias.

O jornal chegou a escrever que defendia ‘o futuro contra a cobiça dos interesses monopolistas internacionais – o que de resto constitui o centro de toda essa onda conspirativa contra as nossas instituições democráticas’.

Viver em uma ditadura militar era uma missão impossível, como um peixe fora d’água. Sem democracia, que era seu leito e justamente a brecha que havia utilizado para fundar o jornal, sem poder dialogar com os trabalhadores que há mais de duas décadas saiam da área rural em direção às grandes cidades, o jornal que desafiava a ditadura com manchetes como ‘Eleições, só de Miss’,foi vendido no dia 21 de abril de 1972.

Redação

4 Comentários

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  1. O Sbt mostrou esta semana

    O Sbt mostrou esta semana algumas reportagens sobre a ditadura militar. O vídeo abaixo, exibido em uma das reportagens, fala sobre a tortura e o extermínio de tribos indígenas na ditadura, em vários estados do Brasil. Fato que, segundo entrevistada, era desconhecido até pelos historiadores. Os índios foram torturados e assassinados. Os detalhes relatados mostram o nível de loucura a que chegaram os agentes de repressão da ditadura. A reportagem foi exibida no jornal do Sbt, mas nenhum jornal, nem sites, falou sobre o assunto.  É muito estranho que a imprensa brasileira e os meios de comunicação se autocensurem e não queiram falar sobre esses crimes, cometidos contra pessoas que nem sabiam por que estavam sendo atacadas e ainda mais considerando o grau de violência e sadismo que houve. Parece que a censura da ditadura continua.

    http://tvuol.uol.com.br/video/indios-lembram-torturas-e-mortes-promovidas-por-militares-em-aldeia-de-mg-04028C9A3970DCC94326?types=A&

  2. Pensamento do Dia

    Intervention & Revolution

     

    “Os Estados Unidos apoiam ditadores de direita na América Latina, no Sudeste da Ásia e do Oriente Médio, porque estes são os governantes que têm o seu destino político pessoal amarrado às fortunas das corporações americanas em seus países. Revolucionários ou líderes nacionalistas têm grupos diferentes e interesses políticos  radicalmente opostos. Para eles, criar ‘um bom clima de investimentos’ para os Estados Unidos e desenvolver os próprios paises são metas fundamentalmente conflitantes. Portanto, os Estados Unidos tem um forte interesse econômico em manter tais homens no poder ou organizar a remoção se eles fizerem oposição.”

    Richard Barnet, Intervention and Revolution, p15

  3. Com  tristeza testemunhei de

    Com  tristeza testemunhei de dentro da redação da Ultima Hora o dia golpe de 64.

    Era o repórter mais jovem daquela equipe de gigantes do jornalismo.

    Foi um dos dias mais amargos de minha vida, como, ao mesmo tempo, de maior orgulho, por constatar a coragem e a dignidade de meus colegas de trabalho, dos verdadeiros jornalistas .

    Vi de perto o momento exato em que o sonho da nação de se tornar melhor se transformou num pesadelo.

    O prédio da UH estava protegido por fuzileiros navais, depois das ameaças de Lacerda de empastelar o jornal.

    Sentimos na pele o perigo quando eles abandonaram a guarda.

    Ficamos totalmente desprotegidos.

    Pela televisão o sinistro Flavio Cavalcanti fazia a “cobertura” da ridícula “tomada” do Forte de Copacabana.

    Terminada aquela “heroica” ação, começou o fomento televisivo para a invasão e destruição “daquele jornal de comunistas”.

    O meu chefe era o Pinheiro Junior, um dos maiores repórteres de todos os tempos.

    Voltara de Juiz de Fora acompanhando os tanques do general Mourão, a primeira tropa a se rebelar contra o governo.

    Jamais esquecerei a imagem daquele jornalista impassível, escrevendo sua triste reportagem, enquanto o mundo desabava la fora .

    Poucos abandonaram o jornal apesar do risco iminente.

    Não havia nenhum preparo para qualquer ação numa situação como aquela.

    Mesmo assim os fotógrafos desmontaram os laboratórios fotograficos e levaram todos os equipamentos para seus automoveis, a fim de protege-los.

    A vizinhança, que ja avistava os grupos paramilitares de direita fortemente armados se aproximando, nos telefonava pedindo desesperadamente que abandonássemos o prédio, pois seriamos esmagados.

    So saímos no ultimo minuto.

    Da esquina assistimos um grupo de jovens de direita armados de metralhadoras incendiarem os veículos do jornal e quebrarem a redação.

    Poucas horas depois, ainda no meio a fumaça, retornamos para lançar uma edição extra, uma das peças mais relevantes da historia do jornalismo brasileiro.

    Nada do que aconteceu, nos anos 60, de positivo na politica, na cultura, na educação, no esporte e em varias outras atividades, teria ocorrido sem a participação direta da Ultima Hora.

    Pena que os atuais governos não entenderam  a importância de apoiar a existência de um veiculo de informação como aquele, como fez Getulio Vargas.

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