Aldo Fornazieri
Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.
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Os limites estratégicos da esquerda na América Latina, por Aldo Fornazieri

Os limites estratégicos da esquerda na América Latina, por Aldo Fornazieri

As atuais crises dos governos de esquerda e neopopulistas na América Latina permitem várias abordagens. Embora a análise acurada dessas crises remeta para a necessidade de um exame detalhado e particular de cada governo e de cada país, é possível estabelecer algumas generalizações, ciente dos ricos que estas sempre promovem, seja porque são simplificadoras, seja porque se distanciam da realidade particular de cada caso.

Ressalve-se que aqui o termo “neopopulista” não é usado no sentido pejorativo que normalmente carrega, mas na conotação definida por Ernesto Laclau expressando as situações em que o povo se reúne em torno de um líder, em confronto ou em paralelo ao sistema institucional formal, para reivindicar demandas não atendidas. O sistema institucional formal, capturados pelas elites, é impermeável às demandas populares e, nesse contexto, governos populistas ou neopopulistas representam avanços democráticos ao incorporarem as massas deserdadas semiempregadas ao sistema de direitos.

No limite deste artigo abordam-se duas questões da estratégia dos governos de esquerda que vigoram ou vigoraram nos últimos tempos: 1) o tema do projeto de desenvolvimento; 2) o tema da sustentação política. Não resta dúvida de que, após uma primeira fase de sucesso, os governos de esquerda ou neopopulistas vivem uma crise. A derrota do peronismo na Argentina, a situação da Venezuela à beira de uma conflagração geral, os impasses dos governos do Equador e do Peru, a impopularidade do segundo governo Bachelet no Chile e a situação crítica do governo Dilma evidenciam uma conjunção de crises. Evo Morales na Bolívia e os governos da Frente Ampla no Uruguai parecem ser a exceção nesse processo.

Alguns analistas sugerem uma aborgagem cíclica para entender a sucessão de crises na relação esquerda e direita-liberalismo na América Latina. Nos anos de 1930 a 1960, a esquerda, pela via dos projetos de nacional-desenvolvimentismo, populismo e programas de substituição de importações teria sido relativamente exitosa no incremento de uma indústria nascente, no crescimento econômico e na formalização do trabalho. Mas suscitou poucos avanços na distribuição da renda e da riqueza, na execução de reformas modernizantes e efetivação de um padrão elevado de direitos sociais e civis.

Esse processo foi derrotado com a acessão de um padrão de governos autoritários e conservadores. A rigor, o projeto desses governos, restritivo e repressivo do ponto de vista dos direitos políticos, manteve-se atrelado à perspectiva nacional-desenvolvimentista tendo o Estado como protagonista fundamental das escolhas estratégicas do desenvolvimento. Nem a direita e nem a esquerda perceberam as mudanças que ocorriam na economia mundial a partir dos anos de 1970 e o novo padrão de desenvolvimento implicado no tripé “revolução tecnológica,  importância do conhecimento e globalização”. Crises fiscais e endividamento externo foram heranças deixadas pela esquerda e pela direita naqueles dois ciclos.

Na sequência surgiu um novo ciclo, denominado neoliberal, um ciclo curto de 10 a 15 anos, cujo núcleo estratégico consistiu em promover reformas macroeconômicas orientadas para o mercado, com a abertura econômica e comercial e com as privatizações. O neoliberalismo enfatizará as ideias da eficiência do mercado, da competitividade e do Estado Mínimo, desconsiderando a necessidade da justiça social num continente extremamente desigual.

Durante este ciclo a esquerda amargava sua crise conjugada em três frentes – colapso do comunismo estatista, crise da socialdemocracias europeia e esgotamento do modelo nacional-desenvolvimentista. Na América Latina surgiram novas formações de esquerda, sendo que a mais notória foi o PT, que buscavam formular uma crítica dos modelos de programas antigos e a formulação de uma nova estratégia de desenvolvimento.

Desse processo todo surgiu uma miscelânea, uma mistura de elementos de ortodoxia comunista, veias socialdemocratas, sobrevivência de teses nacional-desenvolvimentistas, neopopulismo, políticas públicas de integração social, formalização do trabalho, crescimento da renda e de incorporação de massas populares ao consumo. Com o não cumprimento das promessas neoliberais, partidos de esquerda ascenderam ao poder em vários países no início do século XXI.

Esses governos, de modo geral, têm duas fases distintas: uma primeira fase de sucesso, de crescimento econômico, de crescimento da renda e do emprego, da formalização do trabalho e do estímulo ao consumo e de programas sociais de combate à pobreza. Esta fase coincide com o boom das commodities e da transformação da China em primeiro ou segundo parceiro comercial. Este êxito não é exclusivo da esquerda: ele ocorre no Peru de Alan Garcia, na Colômbia de Uribe e de Manuel Santos, no Chile de Sebastian Piñera etc. Claro que há especificidades e diferenças nesses êxitos.

Em termos dos governos de esquerda, o êxito traz também fatos desagradáveis: ocorre uma acomodação, uma falta de prudência fiscal, os partidos no poder se corrompem e não há a formulação de uma estratégia de desenvolvimento que leve em conta a globalização, a revolução tecnológica e a necessidade de uma revolução educacional. Na medida em que não há uma estratégia que combine o consumo interno com as exportações, a infraestrutura e negligenciada. As políticas de câmbio valorizado implementadas no ciclo neoliberal e continuadas pelos governos de esquerda contribuíram para acentuar a desindustrialização dos últimos 30 anos. Reformas estruturais que removam as condições da desigualdade não são implementadas. O ciclo curto de 16 anos de governos de esquerda parece estar se esgotando. Os inúmeros impasses em várias frentes indicam que o ciclo neoliberal e o ciclo de esquerda contribuíram para que a América Latina perdesse o bonde da história.

Os impasses da sustentação política

A rigor, se instituíram dois modelos de sustentação política dos governos de esquerda dos últimos tempos: o modelo petista e o modelo bolivariano. Os governos petistas estruturam sua sustentação, fundamentalmente, pela via institucional em aliança com as elites políticas tradicionais. Os setores sociais e sindicais que orbitavam em torno do PT foram cooptados pelo governo com cargos, verbas e políticas sociais.

Esse modelo garantiu estabilidade e governabilidade enquanto durou o jogo do ganha-ganha proporcionado pelo boom das commodities. Findo o jogo, ainda no primeiro mandado do governo Dilma, a base de sustentação deteriorou-se e vieram as defecções. A Lava-Jato e  a soma das crises econômica e política levaram ao atual estado de coisas marcado pela dificuldade de governar. O governo e o PT não apostaram na organização popular e na formação política dos movimentos populares e sociais. Sequer os setores que são beneficiários dos programas sociais do governo permanecem fieis ao mesmo e ao PT. A necessidade de apoio na crise do impeachment revela o limite dessa estratégia de sustentação política de um governo de esquerda.

O modelo bolivariano, mais acentuadamente neopopulista, dada a necessidade de confrontar a institucionalidade elitista com as massas que viviam à margem das instituições, buscou adotar sua principal base de sustentação política na organização e mobilização dos movimentos sociais e populares. Se é verdade que essa estratégia gera mais autonomia ao governo de esquerda em relação às elites tradicionais, também revela limites: 1) tendência ao isolamento interno e internacional; 2) perda de fidelidade nos momentos de crise econômica e social, como o que ocorre atualmente na Venezuela. A crise econômica e social e o isolamento do governo venezuelano o deixam num beco sem saídas: ou o confronto ou a derrota.

Diante de seus vários impasses e dos limites evidenciados pelas experiências recentes das esquerdas latino-americanas será necessário que as estratégias sejam repensadas. Aparentemente, não se pode definir o modelo de desenvolvimento econômico e social de forma separada à definição das forças políticas e sociais que lhe darão sustentação.

As experiências dos governos e seus limites mostraram também que o processo democrático e de construção da igualdade e da justiça requer uma combinação da sustentação institucional e da sustentação popular. Até porque não há governabilidade democrática sem a participação social e popular. A democracia precisa ser desprivatizada e despartidarizada. Ela não pode ser algo privativo das elites e dos partidos. A participação e o controle social do poder são requisitos indispensáveis para evitar tanto os muitos males presentes das atuais democracias quanto para torna-las mais republicanas e justas.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Aldo Fornazieri

Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.

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