Os militares apresentam suas armas, por Edson Teles

Violência, ameaça, desrespeito à lei, imposição de interesses particulares por meio do fantasma do golpe têm sido as armas das instituições militares em nossa história, desde o nascimento da República até as bravatas do governo Bolsonaro

Imagem: Fábio Dias

do Blog da Boitempo

Por Edson Teles*

Vivemos em um país com altos níveis de violência. Para piorar, as dezenas de milhares de homicídios e de desaparecimentos de pessoas por ano convivem agora com meio milhão de óbitos causados pelo desgoverno e pelo genocídio provenientes da forma como se gesta a pandemia no país. Esse triste quadro tem herança, genealogia e estratégias que garantem a sua permanência. Desde o surgimento da República o país conviveu com décadas de ditaduras (o Estado Novo e a Ditadura Militar) e, mesmo em momentos de democracia ou de estabilidade política, sempre manteve um regime policial para lidar com a grave estrutura de desigualdade social.

Dessa forma, um modo de se contar a história do Brasil seria pela narrativa sobre o processo de militarização da política e do cotidiano de nossas vidas. A militarização não se refere apenas às intervenções de forças armadas ou policiais, pois envolve também regimes de produção subjetiva dos inimigos sociais. As figuras resultantes dessa fabricação se configuram como os alvos das ações de “combate” ou de justificativa para a desumanização de corpos. Falamos de corpos negros, pobres, não binários, adictos, revoltosos, indignados; qualquer um que fuja aos limites do corpo branco, heteronormativo, masculino, proprietário.

O que propomos neste texto é refletir sobre como a sociedade, ou parcela dela, autoriza e legitima ações de violência por parte do Estado contra corpos fora da norma? Ou, dito de outro modo, qual a estrutura social que garante, em alguns territórios ou esferas da sociabilidade, as práticas autoritárias e violentas, enquanto que em outros espaços as mesmas ações seriam condenadas energicamente? Por que, na política das grandes estruturas, um general pode impunemente ameaçar a nação com um golpe de Estado, ao mesmo tempo em que um militante de movimento popular em luta por moradia é tratado como criminoso? Por que é que um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos em territórios periféricos e um morador de bairros de classe média ou alta passa a vida sem sofrer sequer uma revista policial?

São questões que exigem respostas complexas. Contudo, podemos colaborar resgatando hipóteses de como teria se consolidado a lógica de que existe no país trabalhadores e vagabundos, brancos e negros, civilizados e indígenas, cidadão de bem e bandido, homem-mulher e sexualidades patologizadas. Essas e outras lógicas binárias têm participado de ideologias disparadoras de violências. Uma das mais perversas formas de produção do sujeito inimigo, foco da militarização, foi a doutrina de segurança nacional institucionalizada no Brasil durante a Ditadura.

Destacaria, na linha de argumentação do texto e sem propor esgotar a questão, que a tomada do governo pelos militares, em 1964, colocou em marcha uma operação de guerra cujo propósito foi o de atingir, preventivamente, qualquer tentativa de modificação da matriz colonial e patriarcal da sociabilidade brasileira. Trata-se da estatização da ideia de “democracia racial”.

A “democracia racial” surgiu como uma leitura sociológica, a partir dos anos 1930 e 1940 do século XX, para se referir às relações entre negros e brancos. Sintetizava ideias de que o país experimentava a construção de uma sociedade multirracial e de relações étnicas harmônicas. Ganhou o reforço de seu aspecto de ideologia nacional após o fim da Segunda Guerra que, no Brasil, foi acompanhada pelo fim da ditadura Vargas. Momento em que a ideia de democracia se elevou nos termos da política institucional e nas ruas efervescentes dos anos 1950 e início dos 1960. Isso ocorreu concomitante às astúcias do racismo estrutural à brasileira, que soube manter invisibilizada a violência contra os negros para o restante da sociedade, apresentando as diferenças raciais como desigualdades sociais efêmeras advindas do período da escravidão e em vias de ser ultrapassada, desde que sem rupturas.

Apesar de movimentos e pensadoras e pensadores negros denunciarem a inexistência dessa forma de relação étnica e racial, a democracia antecessora da Ditadura não rompeu com aquela lógica. O regime militar soube se aproveitar do que até então era uma forma difusa, ainda que eficiente, de sociabilidade, para transformar a “democracia racial” em política de Estado. Tomando parte do programa de governo dos militares, insuflada pela doutrina de segurança nacional e pela produção do inimigo interno comunista e subversivo, o racismo estrutural autorizou a intensificação da política da inimizade como estratégia estatal de militarização.

Lemos sobre o uso da ideia de que o país vivia sob uma pacificação racial, por exemplo, no Informe 437/1974, da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça da Ditadura: “Existe no Brasil, já há alguns anos, embora com certa raridade, a intenção velada do movimento subversivo em suscitar o problema da discriminação racial, com o apoio dos órgãos de comunicação social. […] O assunto se presta à ideia-força do movimento subversivo-terrorista, por ser sensível à nossa população e contrário à formação brasileira. É explosivo e aglutinador, capaz de gerar conflitos e antagonismos, colocando em risco a segurança nacional”. No discurso da doutrina de segurança nacional o racismo surge como uma invenção da subversão e do comunismo.

“Ame-o ou deixe-o” foi a frase síntese do “combate ao inimigo interno”, discursivamente definido como um militante político e opositor ao regime ditatorial. Porém, na prática incluía também toda a população negra e pobre, grupo potencialmente subversivo, pois era a própria corporificação da revolta e da resistência ao status colonial da sociedade brasileira.

Foi assim que se tornou possível, na transição para a democracia atual, ainda nos anos 1980, manter todo o aparato repressivo e militarizado das polícias e da política. O inimigo ainda permanecia entre nós e a criminalização da pobreza, manteve a ideia do combate e da guerra presente nas instituições e nos afetos dos brasileiros. Índice material da doutrina do combate ao inimigo em democracia foi a manutenção da mesma lógica na Constituição promulgada pelo Congresso Constituinte em 1988. No que se refere à segurança pública e à nacional, todas as formas criadas ou consolidadas na Ditadura foram mantidas intactas. O novo regime político, nascido sob a promessa de pacificar as violências do passado, se somou ao discurso de humanização e modernização das polícias, do sistema carcerário e da segurança pública, investindo ainda mais nas máquinas de produção da violência de Estado.

Talvez devêssemos lançar a hipótese de que os pactos que garantiram uma transição sem rupturas não foram os acordos políticos palacianos, mas a renovação do velho pacto racial colonialista. O racismo estrutural foi a sociabilidade que permitiu aos ditadores montarem senzalas com pelourinhos em cada delegacia, presídio, Febem, e fazer da militarização a atualização do capitão do mato. Essa mesma estrutura racial garantiu a impunidade aos agentes de Estado e a manutenção de um Estado empenhado em eliminar preventivamente as resistências ao modelo por meio da ilegalidade e da violência.

Dessa forma, o fato de o alto comando das Forças Armadas interferir em trâmites do Legislativo não nos provoca surpresas. Durante mais de duas décadas nos cargos de governo, entre os anos 1960 e 1980, os militares fecharam o Congresso Nacional, rasgaram a Constituição eleita pela população em 1946, prenderam, torturaram e desapareceram com milhares de pessoas. Como, então, poderíamos nos surpreender com a interferência de militares na política?

As instituições que cometeram graves violações de direitos permanecem as mesmas. As instituições que promoveram o golpe de Estado em 1964 permanecem as mesmas. O racismo colonizador e o privilégio dos corpos brancos continuam a promover a violência de Estado contra os corpos negros, pobres e periféricos.

Violência, ameaça, desrespeito à lei, imposição de interesses particulares por meio do fantasma do golpe têm sido as armas das instituições militares em nossa história, desde o nascimento da República até as bravatas do governo Bolsonaro.

Mudar a chave da violência e do autoritarismo parece demandar profundas mudanças nos regimes do ver, do modo como olhamos (e agimos com) o outro, o diferente, a cultura diversa. Será revolucionário o dia em que não falarmos mais da nação, do país, do Brasil, mas das nações, das culturas, das línguas, das religiões, dos corpos, das sexualidades, sempre no plural e com respeito à dignidade e à humanidade de todes, todas e todos.

***

Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Também assina um dos artigos do dossiê dedicado à Comissão da Verdade do n. 19 da revista Margem Esquerda. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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1 Comentário

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  1. “… Falamos de corpos negros, pobres, não binários, adictos, revoltosos, indignados; qualquer um que fuja aos limites do corpo branco, heteronormativo, masculino, proprietário. ….” Dr, de fato, esta sempre foi a definição de subversivo, mas permita-me sem ser insolente a te escrever, é muito, mas muito pior para aquele que sendo de corpo branco, heteronormativo, masculino, proprietário e destoa dos demais… o sentimento de vingança é reciproco e não perdoa os “traidores”, esta não é a verdadeira intenção das guerras de classes?

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