Os presos da “lava jato”, o voyeurismo e a atriz global, por Lênio Luiz Streck

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Atores do filme da Lava Jato com procuradores da força-tarefa da operação

Enviado por hugo1

Do Conjur

Os presos da “lava jato”, os índios, o voyeurismo e a atriz global
 
por Lênio Luiz Streck

Subtese: “Voyerar” presos é o mesmo que fazer selfie em velório.
O colunista Mauricio Lima (revista Veja) conta — notícia não desmentida — que os atores Bruce Gomlevsky e Flávia Alessandra, que representam os delegados Marcio e Erika no filme sobre a “lava jato”, foram a Curitiba para filmar nas dependências da Polícia Federal. Feitas as tomadas — o local fora fechado para isso — o grupo da filmagem teve a “jenial” ideia de olhar alguns presos da “lava jato”. Foram levados pelos carcereiros a visitar as celas de Eduardo Cunha, Palocci etc., mas a maior atração querida pelos atores e membros da equipe de filmagem era Marcelo Odebrecht. Este, segundo a matéria, escondeu-se para não ser visto (ou filmado). Depois de alguns minutos, a atriz, à socapa e à sorrelfa (socapa e sorrelfa são por minha conta) conseguiu ver o troféu.

Incrível. Quer dizer, crível, porque em Pindorama tudo é possível. Os franceses faziam isso com nossos índios, certo? Os carcereiros da Polícia Federal, violando a privacidade dos presos, permitiram que os membros da equipe de filmagem vissem os “enjaulados”? Qual é o limite da humilhação? Vale tudo pela fama? Vale tudo para “mergulhar” no personagem?

No Rio de Janeiro, rasparam a cabeça de Eike Batista. Explicação da juíza: só raspamos as cabeças de presos homens porque as mulheres são mais asseadas (está escrito em uma decisão proposta pela Defensoria). E o que dizer dos episódios de Cabral e Garotinho?

E o que dizer, também, do tratamento dado aos presos “comuns”, não famosos? Humilhação cotidiana nas masmorras medievais (a expressão é do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal). Vida nua, diz Agambem. Simbolicamente o “papel” desempenhado pela atriz representa o olhar da sociedade sobre os presos. A sociedade observa como experimento. Um zoo (des)humano. Um misto de exotismo e vingança. E as conduções coercitivas? Cultura do espetáculo.

O que está acontecendo com o país? Autoridades cada vez mais truculentas e autoritárias. Em um estado da federação, desembargador mandou prender um policial que perturbara seu filho (o filho do desembargador). No Rio de Janeiro, agente que, cumprindo seu dever, exigiu documentos de magistrado, foi condenada por dizer que “juiz não é Deus”, em resposta a uma atitude própria daquilo que Faoro tão bem chamou de “sociedade estamental”. Em São Paulo, advogado foi algemado por “entrar no elevador errado” no Tribunal Regional do Trabalho. No Rio de Janeiro, juíza concede mandado de busca e apreensão coletivo em favela.

Todos os dias advogados e partes testemunham coisas tipo-estamentais. Já escrevi aqui que advogar virou exercício de humilhação cotidiana. No plano do imaginário social, tudo isso está interligado. No fundo, “os carcereiros” de Curitiba se sentem “proprietários” dos presos. Assim como os atores da Globo pensam que podem fazer voyeurismo dos detentos. Uns pensam que podem exibi-los; outros, que podem “espiá-los” (vejam a ambiguidade do “espiar”). Como se estivessem à venda. Como no século XIX, Flávia Alessandra queria examinar os dentes do preso, para ver se podia comprá-lo e, quem sabe, chicoteá-lo. Afinal, “somos” os outros — olhamos de fora. Não somos parte disso. Eis o paradoxo: pior é somos…

Consciente ou inconscientemente, é disso que se trata. Construímos esse imaginário, no interior do qual “cada um tem de saber o seu lugar”, porque alguns “eleitos” determinam as condições de ocupação desse lócus. Não é de admirar que continuamos com elevadores privativos, elevadores sociais e de serviço, estacionamentos privativíssimos, verbas especiais para tudo que é tipo de cargos. Como um dia disse a filósofa contemporânea Carolina Ferraz, justificando a separação entre elevadores sociais e de serviço, “as coisas estão muito misturadas, confusas, na sociedade moderna; algumas coisas, da tradição, devem ser preservadas”. Bingo. E que tradição, não? Ou o que disse a “promoter” Daniela Diniz: cada um deve ter o seu espaço; não é uma questão de discriminação, mas de respeito”. Como se aprende coisas com essa gente, não? É quase como olhar a GloboNews, com os filósofos Birnbaum, Kabina, Ontaime and Wolff. Nota: Promoter, até pela pronúncia (diz-se “promôôuuter), deve ser algo chique. Fazem festas para a burguesia cheirosa de Pindorama, que só usa perfumes oxítonos.

Sigo. A propósito, conto um episódio que ouvi no Rio de Janeiro há mais de 20 anos. Uma senhora, negra, fora impedida, pelo síndico, de usar o elevador social do prédio, porque empregada doméstica. Seu patrão entrou em juízo contra isso. E foi vencedor. A empregada ganhou uma espécie de “salvo conduto” para usar o elevador social. Dia seguinte à vitória, a senhora, com uma sacola das Casas da Banha a tiracolo, “embarcou” no elevador de serviço, ao que foi inquirida pelo seu patrão acerca do fato. Afinal, ganhara “permissão” para usar o elevador social. Ela respondeu: “— Doutor, eu sei o meu lugar”. Pronto. No fundo, é isso que as elites brasileiras, forjadas no patrimonialismo, conseguiram fazer. Na primeira metade do século XVI, Ettienne de La Bottie já escrevia o seu Discurso sobre a servidão voluntária. Ali ele já tentava explicar, antes da própria modernidade e dos direitos e garantias de igualdade que só exsurgiram séculos depois, as razões do “eu sei o meu lugar”.

Por isso não surpreende que tanta gente, aqui mesmo na ConJur, tenha dado razão ao juiz que disse que o advogado deveria prestar concurso para juiz, como se a profissão de advogado fosse inferior à profissão de magistrado (consciente ou inconscientemente, é isso que está por trás do discurso).Não surpreende que tanta gente tenha justificado a ação dos guardas que algemaram o advogado no TRT-2. Não surpreende que, atualmente, parcela considerável dos advogados consiga entrar no fórum mesmo quando as portas estão trancadas: sem espinha dorsal, passam por debaixo da porta. Mas, no fundo, não os culpo. Seu imaginário foi forjado desse modo. Sabem “o seu lugar”.

Não surpreende, portanto, a atitude da atriz global e dos carcereiros da polícia. Não que os carcereiros (não sei se tinha delegado na comitiva) e a própria atriz sejam elites no sentido estrito ou até que tenham consciência do que fizeram. Ocorre que, no plano do imaginário, é exatamente a incorporação desse corpus de representações que faz com que pensemos “como se fossemos”. Não esqueçamos que, com a ideologia, as coisas se invertem: por vezes quem tem mais medo da reforma agrária é quem só tem terra debaixo da unha, se me entendem a crítica à alienação (que é quando “alieno-a-minha-ação”; por isso, uma pessoa alienada “ali-é-nada”, com a permissão de minha LEER) e pedindo perdão pelo estagiário não levantar placa alguma.

E, afinal, não esqueçamos também que todos moram(os) em Pindorama. Que, como disse Millôr, tem como futuro um imenso passado pela frente. 

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

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Redação

23 Comentários

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  1. A Globo e o Moro fazem um filme. E o povo faz outro…

    A Globo e o Moro fazem um filme. E o povo faz outro…

    Ué, os puliça invadiram a casa do Lula, filmaram, fotografaram e deram tudo pra Globo colocar nesse filme “A Lei é Para Todos” menos para tucanos…

    Moro não saca de Direito, é rude.

    Lulapalooza: prende ele, Moro!

    Brito e a consagração do Lula no festival de coxinhas na capital das coxas [ e o Doria tava lá e ouviu tudo]
     

    https://www.conversaafiada.com.br/cultura/lulapalooza-prende-ele-moro

  2. Estamos, de fato, regredindo

    Estamos, de fato, regredindo como sociedade.

    Concordo com a mensagem do texto, mas acho apenas que faltou – ou pelo menos não li na minha leitura rápida – que esse tipo de coisa já acontecia a tempos atrás… com os presos pobres. E eu nunca vi ninguém reclamar. 

    Quando morava no Ceará, sempre assistia a um programa – algum cearense aqui me corrija mas acho que chamava-se Patrulha Policial. Era um programa de rádio que fazia uma espécie de paródia, com atores, dos assassinatos e prisões. Uma forma de contar a história do crime do dia, com personagens com vozes engraçadas, como que “arremedando” as vítimas e os agressores. Tinha também um programa televisivo onde o repórter ia na cadeia e entrevistava, mesmo a contragosto, algum preso. “Por que tu fez isso, Macho??!!!” “Por que tu matou ele, rapaz???”. Muitas vezes era bem engraçado. Se o preso ficava com raiva aí era uma festa. Obviamente que naquela época não se via nenhum empresário milionário atrás daquelas grades.

    1. Reclamação contra programas

      Reclamação contra programas do Datena sempre há. Mas quem manda é o poder economico, a Globo, os donos dos meios de produção. Igualar a todos por baixo não leva a nada. A Globo está fazendo um filme e não poderia ser diferente. Os atos do Moro tem acontecido dentro dessa lógica do filme. A puliça do Sergio Moro Fleury chegou a casa ao alvorecer, revirou tudo enquanto filmava e fotografava e entregou ao filme da Globo. É tudo muito surrealista.

    2. O autor tratou do tema [maus

      O autor tratou do tema [maus tratos aos presos pobres]

      “E o que dizer, também, do tratamento dado aos presos “comuns”, não famosos? Humilhação cotidiana nas masmorras medievais (a expressão é do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal). Vida nua, diz Agambem. Simbolicamente o “papel” desempenhado pela atriz representa o olhar da sociedade sobre os presos. A sociedade observa como experimento. Um zoo (des)humano. Um misto de exotismo e vingança. E as conduções coercitivas? Cultura do espetáculo.

       

  3. Na foto, quem são os atores

    Na foto, quem são os atores profissionais? Todos ali estão atuando, mas uns ganham muito para isso, e não é a advogada Flávia que está nesse papel. Mas, na verdade, o que ela faz lembra outro, do mesmo naipe, Herr Boilesen. 

  4. Lei Rouanet?
    Quem patrocina

    Lei Rouanet?

    Quem patrocina talvez sejam o Itaú, ambev?

    A arte imita a vida…

    Não vou assistir quando lançarem, meu protesto será com ausência…

    Mas, terei imenso prazer em assistir daqui uns 15 anos!

    Muita água vai rolar debaixo desta fonte…

  5. direto e retro

    A Flávia é reincidente. Tempos atrás ela defendeu uniforme para as empregadas domésticas com a mesma justificativa ordenadora da Feraz, digo, Ferraz. Com a “Terceironização Escravista” estamos retornando à Terceira Divisão da Modernidade, rebaixados que fomos.

    1. Digo que o golpe está fazendo

      Digo que o golpe está fazendo Àgua quando ver a esquerda na presidência e a PEC dos gastos derrubada. 

      Até uma elição dE Lula sem a queda da PEC pode ser vista como consolidação do golpe.

      Política do PSDB está escrira a fogo na constituição ?? SIM

      Temer esta firme na cadeira ?? Mais ou menos

      Direita firme no poder ??? SE Temer cair, vai ser substituído por alguem de direita tb ?? SIM

      O golpe vai muito bem, obrigado.

       

  6. O uso da imagem de terceiro

    O uso da imagem de terceiro não é proibido com fins lucrativo ?

    Essa turma vai auferir lucro com a imagem dos envolvidos. 

    Não teria que ter uma autorização expressa dos envolvidos.

    Em caso de uma reportagem envvolvendo acidente, parece que essa autorização não é necessária.

    Acho que tem como os advogados cancelar as cenas dos envolvidos.

    Tem algo ai que não está bem explicado

  7. Isso é o fim da picada! Os

    Isso é o fim da picada! Os advogados dos presos tem que entrar com processo contra a PF, o MP de curitiba os atores e a equipe de filmagem. 

  8. É por aí, caro Lênio,

    É por aí, caro Lênio, estamos, deste lado do mundo, tão bestificados, tão entorpecidos, tão… esquizóides, pela chamada Sociedade do Espetáculo, que tomamos como normal e natural completos absurdos.

    Quando o ator chega a ser mais importante do que o personagem, tem alguma coisa errada na obra. Fora a mania do cinemão de esconder o óbvio, tão denunciado por Orson Welles, mas que ainda confunde o espectador desavisado: mesmo documentários são ficção, nunca realidade. O cinema indiano, talvez como forma consciente ou inconsciente de buscar se vacinar contra essa doideira adota comumente danças e cantorias no meio ou no fim do filme, em que bailam juntos vilões e mocinhos, como a dizer: “Olha, isso é um filme, viu? Não é a vda real.”

    Trágico…

     

    “Queria querer cantar afinado com eles, silenciar em respeito ao seus transes num êxtase, ser indecente mas tudo é muito mal”…

    (Caetano, Podres Poderes)

  9. Nassif
    Se a atriz

    Nassif

    Se a atriz raciocinasse um pouco, poderia ver que seus patrões poderiam estar presos ali, mas não vem ao caso !

    1. Raciocínio?

      Se ela raciocinasse, sequer teria aceito o papel!

      Bem, não estou considerando a hipótese de ela ter sido “obrigada” por contrato – porque aí saberíamos quem é o financiador desta “obra-prima da sétima arte”…

  10. Onde foi parar a razão?…

    Que embates / mazelas jurídicas já tenham servido em muito ao cinema é algo que sabemos. No entanto, como uma teórica “investigação” em curso e com tantas trapalhadas em seus caminhos pode não só abandonar qualquer sinônimo do tal “segredo” de justiça, mas mais que isso, virar cinenovela ainda em andamento?

    Discuto isso por até o momento não ter visto nem mesmo os chamados blogs “sujos” questionarem essa “piada” (conosco, claro). Resta saber quanta plateia coxinha resistirá até o fim da produção…

    Apenas um braZil cada vez mais com Z e apagando perspectivas factíveis de qualquer “evolução”…

    Obs.: Quem mesmo está produzindo (pagando) a “piadinha”? Finjamos não imaginar…

     

    Ats,
    Vinícius…
    “mas eu queria somente lembrar
    que milhões de crianças sem lar
    são frutos do mal que floriu
    num país que jamais repartiu (pátria amada Brasil)
    esse é o futuro do país”
                                            Autores Criminalizados

  11. Os presos da “lava jato”, o voyeurismo e a atriz global

    Este texto me lembra uma história…

    Uma conhecida, socialista legítima, foi transferida temporariamente para outro estado. Ela tinha em casa uma ajudante a quem tratava com muito respeito, inclusive fazendo as refeições  com ela e o marido. Pediu a uma amiga se queria os serviços da senhora, para não perder o emprego. Quando voltou foi solicitar de volta a pessoa. Essa se recusou a voltar. Disse: “Prefiro ficar aqui, tenho uniforme, como na cozinha, tenho o meu lugar…” A minha conhecida ficou estarrecida, acreditava que tratava da melhor maneira possível sua ajudante…

    O que isto nos mostra: Baixa auto estima, processo evolutivo, senso de privacidade, respeito ao espaço do outro, respeito?
    E assim caminha a humanidade…

  12. Os presos da “lava jato”, o voyeurismo e a atriz global

    Este texto me lembra uma história…

    Uma conhecida, socialista legítima, foi transferida temporariamente para outro estado. Ela tinha em casa uma ajudante a quem tratava com muito respeito, inclusive fazendo as refeições  com ela e o marido. Pediu a uma amiga se queria os serviços da senhora, para não perder o emprego. Quando voltou foi solicitar de volta a pessoa. Essa se recusou a voltar. Disse: “Prefiro ficar aqui, tenho uniforme, como na cozinha, tenho o meu lugar…” A minha conhecida ficou estarrecida, acreditava que tratava da melhor maneira possível sua ajudante…

    O que isto nos mostra: Baixa auto estima, processo evolutivo, senso de privacidade, respeito ao espaço do outro, respeito?
    E assim caminha a humanidade…

  13. DAS EXCELÊNCIAS

    Maravilhoso artigo de Lênio Streck! Congratulações!

     

    Atores globais sempre me surpreendem negativamente, por que será? ! A Globo deve escolher a dedo (ou melhor, examinando os dentes) os seus profissionais, haja vista a equipe de jornalismo. 

     

    Abraços a todos!!

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