Pepe Mujica sobre Brasil, manifestações, maconha, casamento homossexual, trabalho e poder

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Do Diário do Centro do Mundo

“Eu não sou nada”: o que se esconde sob a humildade de Pepe Mujica
 

No início da “Divina Comédia”, Dante encontra Virgílio, seu guia no inferno, e lhe diz: “Mestre, para mim, são tão certos e me impõem tanta confiança os teus arrazoados, que os demais me parecem carvões apagados.”

Pepe Mujica, o presidente do Uruguai, erra muito pouco. Em sua última entrevista, ao jornal “O Globo”, explicou como pretende lidar com as visitas de turistas a seu país para fumar maconha (como se sabe, o Uruguai legalizou o comércio da erva). Falou muito mais. E, como costuma acontecer, transcende as questões comezinhas e dá a qualquer conversa um tom filosófico. Nas palavras de Vargas Llosa, é um velhinho estadista que fala com sinceridade insólita para um governante.

“Queremos tirar o mercado do narcotráfico, queremos tirar-lhes o motivo econômico, queremos que o narcotráfico tenha um competidor forte e não seja o monopolista do mercado. Ao mesmo tempo, tentamos incitar as pessoas a atuarem do ponto de vista médico”, disse ele. “Mas temos que ter muito cuidado, porque não é uma legalização como as pessoas supõem no exterior, não vai ter um comércio, os estrangeiros não poderão vir aqui ao Uruguai para comprar maconha. Não vai existir o turismo da maconha. A decisão tomada não tem nada que ver com esse mundo boêmio. É uma ferramenta de combate a um delito grave, o narcotráfico, é para proteger a sociedade. É muito sério”.

Sobre seu exemplo como líder: “Pretende ser um mini-ato de protesto. As repúblicas não vieram ao mundo para estabelecer novas cortes, as repúblicas nasceram para dizer que todos somos iguais. E entre os iguais estão os governantes. Têm uma responsabilidade implícita e penso que devem viver de forma bastante similar à maneira de viver da maioria do seu povo. Ninguém é mais que ninguém, começando pelo governante.”

Sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo: “O casamento homossexual, por favor, é mais velho que o mundo. Tivemos Julio Cesar, Alexandre, O Grande, por favor. Dizer que é moderno, por favor, é mais antigo do que nós todos. É um dado de realidade objetiva, existe. Para nós, não legalizar seria torturar as pessoas inutilmente”.

Sobre trabalho: “Temos que lutar para que todos trabalhem, mas trabalhem menos, todos devemos ter tempo livre. Para quê? Para viver, para fazer o que gostam. Isto é a liberdade. Agora, se temos de consumir tanta coisa, não temos tempo por que precisamos ganhar dinheiro para pagar todas essas coisas. Aí vamos até que pluff, apagamos.”

Sobre manifestações: “Eu simpatizo com os protestos, mas não levam a lugar nenhum. Não construíram nada. Para construir, há de se criar uma mente política, coletiva, de longo prazo, com ideias, disciplina, e com método. E isso é antigo, ou parece antigo. Mas sem interesses coletivos, é difícil mudar. Não são os grandes homens que mudam as sociedades, mudam quando os protestos se organizam, disciplinam, têm métodos de longo prazo. Estes movimentos de protesto têm a vantagem do novo, e tentam alguma coisa nova porque desconfiam de todos os velhos, especialmente os partidos, por que perderam a confiança neles. Mas as primaveras têm se transformado em inverno por que não sabem onde ir.”

Sobre política: “Temos de revalorizar o papel da política. Mas no mundo real, muita gente se mete na política por que gosta de dinheiro, estes devem ser expulsos porque prostituem a política. A política tem de ser feita com carinho, a política tem a ver com a harmonia das contradições que há na sociedade, tem de lutar para harmonizar este mundo frágil e cheio de contradições que estamos vivendo.”

Sobre seu reconhecimento: “Não é que me achem tão excepcional, me usam como uma maneira de criticar os outros. A última vez que estive na ONU escutei discursos de um presidente de um país europeu [Hollande, da França] pelo qual temos um respeito enorme pela cultura, por suas tradições, pelo que significou no mundo. Fiquei assustado, porque parecia um discurso neo-colonialista. Eu não sou nada, sou um camponês com senso comum. Sem dúvida, estou vivendo uma peripécia. Talvez, se não tivesse passado tantos anos presos com tempo para pensar, fosse diferente.”

Sobre o Brasil e a América Latina: “Brasil vai fazer um campeonato do mundo lindo. Brasil deve apreciar o melhor que tem, não é a Amazônia nem o petróleo, é o experimento social de ser o país mais mestiço do mundo. E tem uma grande alegria de viver, mesmo com as dificuldades e isso deve à África. Por isso, a luta é que brasileiros sejam mais latino-americanos.”

A admiração de Llosa é genuína, mas há algo de condescendente em sua consideração. Mujica é também mais que um camponês com senso comum. É alguém em quem sempre vale a pena prestar atenção. Um mestre. Como disse Dante: “Com aquela medida que o homem usa para medir a si mesmo, mede as suas coisas”.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

3 Comentários

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  1. O mais assustador é ver gente

    O mais assustador é ver gente de “esquerda” do Brasil, inclusive líderes partidários, celebrarem a “revolução popular”  dos ucrânianos contra o “urso malvado russo”.  Até judeu entrou nessa….

    E em mais um capricho da história, os russos estão de novo no caminho dos nazistas.  A diferença é que agora a gente sabe exatamente quem apóia quem, desde o ínicio.

     

  2. O Alfaville de América do Sul

    Uruguai converte-se num Miami do Sul, com direito a maconha, cassinos, praias chiques, casamento gay, paraíso fiscal e Green Card liberado. A construção do MERCOSUL já começou e, antes de concluir as fundações, Uruguai pegou a única cobertura duplex do prédio, com piscina. América já encontrou o lugar de weekend da sua elite, o repouso do guerreiro endinheirado, agora, é deixar ao restante dos países continuarem com a parte suja, de educar gente, construir indústrias e infra-instrutora, alimentar ao povo, defender a Amazônia e tomar as responsabilidades próprias de quem assume o destino de milhões de americanos pobres e necessitados. As elites já garantiram o seu Alfaville.

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