Xadrez da marcha irresistível do militarismo, por Luis Nassif

Pelos dados que mostraremos na sequência, não interprete as últimas manifestações do Supremo - como a prisão do ex-PM Daniel Silveira, como um xeque no militarismo. Pelo contrário.

Peça 1 – para entender o Xadrez

Para entender o jogo atual, é necessário dividir o bolsonarismo em duas vertentes: a militar e os aloprados.

Os aloprados são os discípulos de Olavo de Carvalho, cujo pé de bode para entrar no poder são os filhos de Bolsonaro, Eduardo e Carlos. E também o próprio presidente, que os considera seus verdadeiros seguidores.

A banda militar é a que se associa a Bolsonaro através dos generais Augusto Heleno e Hamilton Mourão, trazendo depois outros ministros militares.

No período preparatório para a posse de Bolsonaro, os dois lados se digladiaram intensamente, disputando cada palmo de governo. Armados com dados da inteligência, os militares apareciam com dossiês sobre diversos candidatos a cargos no governo, visando desqualificá-los para ocupar espaço. Posteriormente, houve conflitos pesados entre militares e olavistas, por ocupação de espaço.

Pelos dados que mostraremos na sequência, não interprete as últimas manifestações do Supremo – como a prisão do ex-PM Daniel Silveira, como um xeque no militarismo. Pelo contrário, as medidas adotadas foram em defesa do Supremo. Mas foram precedidas por contatos com os militares.

Como revelou o presidente do STF, Luiz Fux, em entrevista à Folha, houve um contato anterior com o Ministro da Defesa Fernando Azevedo, que esclareceu partes do livro de Villas Boas. No livro, Villa Boas dizia que o Twitter publicado na véspera do julgamento de Lula pelo STF – e encarado como ameaça – havia sido preparado com o Alto Comando. Azevedo esclareceu que Villas Boas pretendia soltar um Twitter mais radical. Em função disso, generais do Alto Comando o procuraram e o convenceram a amenizar a mensagem.

Com o salvo conduto definido, Fux conversou com Alexandre Moraes que avançou com mão de ferro sobre o deputado Silveira. Obviamente, em defesa do Supremo. Mas, tendo como subproduto o fortalecimento da banda militar do governo, pelo enfraquecimento da banda olavista aloprada. 

Peça 2 – o falcão Alexandre de Moraes

Alexandre de Moraes recebeu a incumbência de assumir a tarefa e não apenas por seu estilo impetuoso, mas também por uma ligação umbilical com a militarização de governos.

Na Secretaria de Segurança de São Paulo, governo Geraldo Alckmin, foi figura central na radicalização da segurança, com uma série de medidas polêmicas, e na colocação de militares em cargos públicos.

Em sua gestão, houve aumento generalizado de violência policial. Segundo a explicação, “confrontos com a policia cresceram porque a criminalidade está mais violenta”. E também impôs sigilo em operações.

Em 2015, sob seu comando, uma tropa de choque da Polícia Militar invadiu o Centro Paula Souza, arrastando estudantes para fora.

Não tomou nenhuma medida contra chacina promovida por Policiais Militares para vingar a morte de um colega, o chamado massacre de Osasco. Resultou em 19 pessoas mortas e 5 feridas e nenhuma apuração conclusiva.  

Depois, como Ministro da Justiça de Temer,  paralisou a polícia nacional de Direitos Humanos por 90 dias. Aliás, mal assumiu, Temer extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, tornando-os secretarias sob o Ministério da Justiça.

No episódio das chacinas dos presídios em Manaus, que levou à morte 56 pessoas, montou rapidamente um plano de segurança liberando a violência policial, a ponto de provocar a demissão de 8 diretores do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

Com ele teve início a militarização do governo federal. Indicou um coronel da Polícia Militar, Roberto Alegretti, para dirigir a Secretaria Nacional de Política Sobre Drogas (SENAD). E também o aumento da repressão contra crianças e adolescentes.

Para fortalecer o governo Temer, e conquistar a adesão militar,  lançou a Operação Hashtag, contra um grupo de radicais que atuava em redes sociais, às vésperas dos Jogos Olímpicos de 2016. Era um grupo sem acesso a armas e o máximo que foi identificado foi a comemoração  dos atentados de Nice por mensagem privada. 

No entanto, foi classificado como célula do grupo terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante Brasil.  E denunciado de acordo com a Lei 13.260, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, tipificando crimes de terrorismo

Foi o primeiro trabalho juntando ABIN, PF e Forças Armadas e agências internacionais.

15 pessoas foram presas temporariamente por 60 dias. Na fase inicial, 8 foram denunciados. Em junho de 2017, mais 6 pessoas.

Na fase inicial, houve interrogatórios policiais sob total incomunicabilidade, veto ao acesso de um defensor público, negação de audiência de custódia e de ciência dos reais motivos da prisão.

Houve plena repercussão do “jornalismo investigativo”, mais uma vez comendo nas mãos das autoriodades e – a exemplo do caso Bar Bodega – testemunhando atentados óbvios a direitos individuais. No dia 21 de julho de 2016, a frase de abertura do Jornal Nacional foi taxativa: “Dez suspeitos de terrorismo na cadeia”. E endossava acriticamente a versão do governo, de que os dez suspeitos “planejavam ataques durante as Olimpíadas”.

 Na entrevista coletiva, Moraes tergiversou. Admitiu que era “uma célula amadora, sem nenhum preparo”. Segundo ele, a operação precipitou-se porque “os suspeitos teriam começado os preparativos para uma ação”. A prova seria a tentativa de comprar uma arma AK-47, pela Internet, por um deles, Alisson Luan de Oliveira, 19 anos. Depois, descobriu-se que era um e-mail de 2015, e não nas vésperas das Olimpíadas. 

Com a imprudência dos apressados, Moraes apontou como líder da suposta célula Levi Fernandes de Jesus, de 21 anos. O inquérito da PF não comprovou a liderança. A acusação foi feita pelo notório Ministério Público Federal do Paraná e aceita pelo juiz Marcos Josegrei da Silva,

No final do inquérito não havia nada, nem risco de atentado, nem planos de atentado e não era célula terrorista, apenas um grupo de pirados de rede social.

O clima de paroxismo criado levou ao linchamento de outro detido, Valdir Pereira da Rocha, na cadeia pública de Várzea Grande próximo a Cuiabá. Ele não foi denunciado pelo MPF, por considerar sua participação secundária. Mas, em função do alarde teve uma prisão preventiva (por outro crime) revogada e foi  colocado na prisão com outros detentos. Foi linchado por ser “terrorista”.

A exposição do caso na TV certamente contribuiu para esta morte. Depois que foi divulgado que não havia provas contra Valdir, o próprio Comando Vermelho pediu a cabeça dos líderes da chacina, mostrando um senso de justiça superior ao de Moraes no episódio do massacre de Osasco.

Os abusos foram evidentes. A defensoria apontou as falhas principais do inquérito:

* nenhum dos acusados adquiriu artefatos terroristas, traçou planos de atentado, adquiriu passagens rodoviárias ou aéreas, ou detinham documentos com efetivo intento migratório e de engajamento terrorista.”

* estavam geograficamente distantes;

* parte das provas foi colhida de forma irregular nos grupos de conversa do Telegram, “agente infiltrado não-policial” e “sem autorização judicial”, provavelmente um jornalista do Fantástico recolhendo material para uma reportagem.

A denúncia do MPF-PR é curiosa. Informava que os acusados usavam aplicativos criptografados para trocar informações sensíveis, “mas continuavam utilizando os meios de publicações públicos para promover, também abertamente, o Estado Islâmico e atrair novos membros”. Como se um grupo terrorista profissional fosse fazer apologia de crime em redes sociais abertas.

Peça 3 – a militarização com Temer

A militarização em São Paulo prosseguiu no governo Temer.

Mal assumiu, em maio de 2016, Temer retirou o GSI (Gabinete de Segurança Institucional) com controle sobre a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e entregou ao comando do general Sérgio Etchgoyen.

Temer criou o Ministério Extraordinário de Segurança Pública, transferiu para lá Raul Jungman e colocou em seu lugar, no Ministério da Defesa, o general Joaquim Luna e Silva.

Um dos primeiros atos de Moraes foi entregar a um militar, Roberto Allegretti, coronel da PM, a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas.  No dia 1o de março de 2016, Allegretti criou polêmica ao defender o uso de fardas por crianças, para ajudar a construir, na sua identidade, um “militar que participa de algum ato heróico”. 

Entregou também a Funai (Fundação Nacional do índio) ao general Franklimberg Ribeiro de Freitas, indicado pelo Partido Social Cristão (PSC), partido que sempre procurou criminalizar as demarcações de terras indígenas. A reação de diversos setores o fez recuar na indicação.

Outra decisão que afrontava a Constituição foi entregar o comando da intervenção do Rio de Janeiro a um general, contrariando o que dispunha a Constituição, que determinava claramente que qualquer operação de GLO (Garantia de Lei e Ordem) fosse conduzida por um comando civil. Ao mesmo tempo, alterou a legislação para que crimes praticados por militares, nas operações de rua, fossem julgados pela Justiça Militar.

Culminou com a transferência do Ministro Raul Jungmann para o recém-criado Ministério Extraordinário de Segurança Pública, colocando no Ministério da Defesa o general Joaquim Luna e Silva – o mesmo que assumiu, agora, a presidência da Petrobras.

Colocou na chefia do gabinete da Casa Civil o general Roberto Severo Ramos.

A militarização obedecia a uma lógica natural, depois que a Lava Jato, com a anuência do STF, destruiu o sistema político brasileiro e permitiu a ascensão ao comando do país do mais suspeito grupo político pós-redemocratização – o Centrão. Sabendo que seria um governo fraco, com vários integrantes na mira da Justiça, Temer e Alexandre Moraes trataram de cooptar o segmento militar.

No governo Temer consolidou-se o pacto mercado-militarismo-centrão-pauta moral que prosseguiria com Bolsonaro. O ponto fora da curva foi justamente o terraplanismo alucinante do próprio Bolsonaro, expresso na banda olavista do governo.

Peça 4 – o pensamento militar

A eleição de Bolsonaro foi o coroamento dessa volta gradativa dos militares ao jogo político.

Recentemente, em entrevista ao Deutsch Welle, o antropólogo Piero Leirner, sintetizou os pontos básicos da construção do pensamento militar brasileiro contemporâneo.

Com o fim da ditadura militar, a partir do pacto da anistia, na qual Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim, ministros do STF, julgaram falar em nome do povo,  não houve nenhuma apuração de crimes contra a humanidade. Criou-se um respeito obsequioso que foi foi abrindo espaço cada vez maior para a volta do protagonismo militar. 

Na opinião de Leirner, a politização do Exército renasceu  em 2007, com a reação à homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Em abril de 2008, o comandante militar da Amazônia, o notório general Augusto Heleno, reuniu-se com o comandante do Exército, Enzo Peri, para explicar as críticas à reserva em palestra no Clube Militar sob o título significativo de “Brasil, Ameaças à Sua Soberania”.  E sofreu punição.

A politização atingiu o paroxismo quando o general Villas Boas assumiu o comando do Exército, com um falso discurso legalista para fora, e estimulando a politização da força para dentro, refletindo a adesão das famílias militares às manifestações de rua pelo impeachment. Segundo Leirner, “tais assuntos eram intensamente discutidos com o alto-comando, para mantê-los informados e garantir o alinhamento até os escalões mais baixos e o pessoal da reserva.”

A partir de 2014, a politização ganhou novos ares, inclusive com a permissão para campanha dentro de uma Academia Militar. O que foi feito por Bolsonaro entre 2014-2018, obviamente com pleno conhecimento e autorização do Alto Comando.

Para legitimar sua atuação, o Exército criou sua versão de “inimigo externo”. O tema preferencial passou a ser a Amazônia, a vulnerabilidade das fronteiras, a ação contra o crime organizado, elementos centrais do que foi definido como a nova doutrina de segurança, a “guerra híbrida”.

Em cima desse novo padrão, cria-se o Programa Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON), que passa a exigir do Exército contatos frequentes com o Judiciário, Ministério Público Federal, Polícia Federal e ação política no Congresso, disputando verbas.

Paralelamente, foi sendo criada uma nova narrativa, de acordo com os cânones da  “guerra híbrida”, como a versão interna de que setores do PT eram os próprios agentes produtores de ameaças híbridas. Nesse quadro, o novo pensamento militar inseriu as ONGs que atuavam na Amazônia e que seriam agentes para a criação de territórios estrangeiros no país. No livro, aliás, Villas Boas endossa outras teses obscurantistas, tratando o “politicamente correto” como uma bandeira petista para levar o país ao caos. 

O “politicamente correto” seria, na visão dele, o “disfarce” que as ações imperialistas tomariam para consolidar toda essa arquitetura de ameaças às Forças Armadas e ao Brasil”, explica Leirner. Por esses caminhos tortuosos, foi sendo criada a coesão ideológica entre os militares, transformando a resistência do PT, aos ambientalistas, aos grupos de direitos humanos, em questão militar.

A guerra híbrida

Um dos pontos centrais da “guerra híbrida” consiste a manipulação de informações através de redes sociais. Lembra Leirner que em 2019, o general Rego Barros admitiu que coube ao Exército “mergulhar de cabeça no submundo das mídias sociais, e se tornar o órgão público com maior influência no mundo digital do Brasil”. Obviamente, não se referia apenas a trabalhos de relações públicas das forças nas redes sociais.

Desde 2018, Leirner já defendia a tese de que a campanha de fake news de Bolsonaro teve participação direta de militares. Mostrava que a cúpula bolsonarista contava com a participação de diversos membros das Forças Armadas com conhecimento dos princípios da “guerra híbrida”. Além do fato de Bolsonaro ser o candidato favorito da maioria dos 17 generais de quatro estrelas.

Em 14/10/2018, Leiner já antecipava o uso de tática militar de ponta na campanha de Bolsonaro. E o tema das fake news ainda não tinha entrado na agenda pública.

Segundo ele, “a comunicação de Bolsonaro se valia de “métodos e procedimentos bastante avançados de estratégias militares, manejados de maneira muito inteligente, precisa, pensada. Não se trata exatamente de uma campanha de propaganda; é muito mais uma estratégia de criptografia e controle de categorias, através de um conjunto de informações dissonantes”, explicava ele.

O princípio básico consistia em “um conjunto de ataques informacionais que usa instrumentos não convencionais, como as redes sociais, para fabricar operações psicológicas com grande poder ofensivo, capazes de ‘dobrar a partir de baixo’ a assimetria existente em relação ao poder constituído”.

Em que consiste exatamente isso?

As características principais da guerra híbrida eram as fake news e as contradições entre as principais figuras da campanha, disputando opiniões, divulgando informações desencontradas que “criam um ambiente de dissonância cognitiva”, desnorteando as pessoas, as instituições e a imprensa”.  Nos ambientes de dissonância, diz ele, a troca de informações passa a ser filtrada por critérios de confiança, atuando como “estações de repetição”, liberando Bolsonaro para produzir conteúdo.

Bolsonaro só aparecia depois que os fake news estavam assimiladas, dando nos seguidores a ideia de empoderamento, de confirmação de suas teorias e de relacionamento horizontal. Ao contrário dos “poderosos”, que transmitem suas informações de maneira vertical, como políticos, imprensa e instituições.

Para Leirner, por fim, a proliferação de notícias falsas colabora para o deslocamento de poder dentro de instituições centrais à democracia, como a Justiça e as Forças Armadas. “Hoje vemos  setores do Estado, especialmente do judiciário, entrando em modo invasivo, cada um se autorizando a tentar estabelecer uma espécie de hegemonia própria”, diz.

Peça 5 – “antes que um aventureiro lance mão

Sábias palavras de Dom João VI para Dom Pedro I, aconselhando a colocar a coroa na cabeça, antes que algum aventureiro lançasse mão.

Períodos de vácuo de poder abrem espaço para toda sorte de ambições.

No STF,  o amadorismo político e marqueteiro do Ministro Luís Roberto Barroso julgou que poderia estimular um ativismo político do Judiciário, em parceria com o mercado, para acelerar a entrada do Brasil na era iluminista.

Cabeças com maior compreensão sobre as estruturas de poder, como Gilmar Mendes, trataram de se aproximar do Exército, visando pactos de não-agressão. Culminou com o presidente da corte, Dias Toffoli, convocando um militar como assessor especial.

Mesmo tendo mais racionalidade que o bolsonarismo raiz, o pensamento militar não elaborou projetos ambiciosos de construção nacional – como ocorreu nos anos 30 e 64 como agentes da industrialização do país. Hoje em dia, seu pensamento político restringe-se a temas morais e visões conspiratórias sobre a Amazônia e total ignorância sobre temas de segurança nacional – como identificação de setores estratégicos a serem preservados .

Por tudo isso, seja qual for o desfecho do governo Bolsonaro, a militarização do poder ganhou uma dinâmica que, se não for revertida a tempo, mais cedo ou mais tarde, se tornará irreversível, mesmo com desastres épicos, como a participação do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde.

Luis Nassif

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