A eletroconvulsoterapia em pauta: o cérebro como fetiche, por Rita Almeida

A grande sacada da política não manicomial foi entender a doença mental como uma questão de responsabilidade coletiva, partilhada

A eletroconvulsoterapia em pauta: o cérebro como fetiche

por Rita Almeida

Dias atrás, no meu percurso cotidiano, passei em frente a uma banca de jornal e notei algo que não havia notado até então: uma fileira de 12 revistas expostas, todas se referindo ao tema cérebro e, quase todas, expunham na capa uma imagem do cérebro. Imediatamente me veio à memória o que aquela mesma banca expunha há cerca de 20 anos atrás: os corpos nus das mulheres. Reflito então: o que aconteceu nos últimos 20 anos que fez com que o cérebro fosse exibido nesse lugar de fetiche? 

Não é novidade a tentativa de encontrar uma relação direta entre nossa psique e a estrutura ou funcionamento do cérebro. O tema já aparecia nas discussões filosóficas de Platão e Hipócrates, mas é no século XIX que surge uma ciência do cérebro. O marco teria ocorrido em 1810, com o médico anatomista e fisiologista Franz-Josef Gall e sua cranioscopia: um método de investigação que concebia uma correspondência direta entre protuberâncias e depressões do crânio e do cérebro. Tal método abre o caminho para a frenologia, uma teoria que supunha ser possível analisar as faculdades mentais de um indivíduo por meio da inspeção do seu crânio. No auge desta teoria, o frenologista Alexandre David afirma ter descoberto no desenho da cabeça de Descartes todas as faculdades intelectuais, perceptivas e individuais responsáveis pela filosofia do pensador.

Temos assim, que a procura por compreender o cérebro e ser capaz de relacioná-lo com nosso componente psicológico não é nova, todavia, os aparatos tecnológicos capazes de tornar o cérebro vivo um objeto da ciência, só surgem nas últimas décadas. O termo neurocientista, por exemplo, se estabelece na década de 1990, que é, inclusive, chamada de “década do cérebro”, e se caracteriza por grande investimento em pesquisas nesse âmbito. O surgimento das tecnologias de exames por imagens alimentaram a fantasia de que observar o cérebro pensando, seria o mesmo que alcançar o pensamento em si, como se o pensamento fosse uma espécie de secreção do cérebro.

Chegamos assim ao sujeito contemporâneo, o “sujeito cerebral”, a figura antropológica que incorpora a ideia de que o ser humano é essencialmente reduzível a seu cérebro. Já o termo “neurocultura” é cunhado para explicar o impacto social que o desenvolvimento das neurociências provocou na ciência, na filosofia, na medicina, na educação, na mídia, nas políticas públicas, na arte, ou seja, em todos os campos da cultura, dando ao cérebro um lugar privilegiado.

Um bom exemplo da proporção que essa neurocultura alcançou é notado num programa vespertino de TV da Rede Globo – Encontro com Fátima Bernardes – no qual participa diariamente um médico neurocientista e neurocirurgião, que se dispõe a explicar ou abordar, qualquer tema ali tratado, sob a ótica das dinâmicas neuroquímicas e cerebrais. Numa delas, por exemplo, “o doutor” se dispõe a explicar as fases de um relacionamento amoroso e possíveis modos de fazê-lo “dar certo”, utilizando explicações neuroquímicas. Sob tal ótica, o cérebro não é um órgão objeto da ciência biológica, mas num ator, um agente social, o que torna possível tratar dos entraves das relações amorosas por meio de explicações do funcionamento cerebral. Em última análise, nossos cérebros é que amam ou não amam.

Assim, a cerebralidade parece ser um resultado natural do progresso da ciência e das tecnologias utilizadas para pesquisar o cérebro, no entanto, é preciso compreender o quanto ela pactua com uma ideologia individualista de saúde mental, muito própria da contemporaneidade, no qual tratar-se significa se tornar uma espécie de empreendedor de si mesmo. A popularização das terapêuticas comportamentais e das ferramentas coaching, por exemplo, seguem nessa direção. Apartados de uma noção de coletividade, mergulhados num individualismo narcisista e numa política econômica neoliberal, que defende e valoriza a meritocracia, adotar a ideia de que qualquer fracasso ou dificuldade que uma pessoa enfrente possa ser localizado em seu cérebro, cumpre duas funções ideológicas importantes: oferta respostas individuais para problemas que seriam do laço e do contexto social, e promete, com mais presteza, rapidez e eficiência, indicar os reparos necessários ao cérebro-sujeito. Obviamente, que essas duas concepções, quando associadas, abrem um mercado consumidor importante para as terapias do cérebro. A multiplicação de diagnósticos e medicamentos psiquiátricos se alimenta de tal lógica, mas há outras que também se dispõem a atuar na estrutura ou bioquímica cerebral, tal como a eletroconvulsoterapia, estratégia que tomou à cena nas últimas semanas depois de ser citada, numa nota técnica, como recurso terapêutico indicado dentro das novas diretrizes da política de saúde mental.

O eletrochoque no Brasil – o nome originário dessa terapêutica – se tornou um método historicamente condenado, com o advento dos movimentos para garantia de direitos dos doentes mentais e o fim dos manicômios, atrelados ao movimento da reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial. No entanto, tais procedimentos, animados pelo avanço das neurociências, ressurgem com novas denominações, uma roupagem mais humanizada e critérios de indicação mais rigorosos. A promessa é intervir diretamente no cérebro, a fim de tratar sintomas psiquiátricos graves, persistentes e refratários a outros recursos terapêuticos.

Sem entrar da discussão da eficiência ou não de tal ferramenta em alguns casos pontuais e específicos, onde o risco seja menor que o dano, o mais importante é perguntar: em se tratando de política pública, qual o real impacto que uma tecnologia tão restrita dessas trará para o campo da política de saúde mental? Quem compreende a lógica do SUS e da medicina sanitária que lhe respalda, sabe que investir em tecnologias mais básicas e de maior amplitude de alcance, são muito mais eficazes do que investir nas tecnologias mais complexas e especializadas, além de serem muito mais baratas e de produzirem efeito em cadeia e de longo prazo, pela mudança de cultura e pela formação de compromisso com o coletivo. Nessa lógica, investir em grupos de orientação e em programas de atividade física para hipertensos, por exemplo, é muito mais eficaz do que equipar hospitais para realizar cirurgias cardíacas, e ainda, quanto mais investimos no trabalho de atenção comunitária, tanto menos unidades especializadas em emergência cardíaca serão necessárias.

Sendo assim, resgatar a eletroconvulsoterapia dentro da política pública de saúde mental sem uma discussão ampla – um método historicamente comprometido com as atrocidades de um passado manicomial que ainda tem feridas abertas – já seria controverso apenas por um motivo: por desrespeito ao movimento de luta antimanicomial, um movimento de trabalhadores, usuários e familiares de saúde mental que desconstruiu o modelo desumano dos manicômios, abrindo outro modo de olhar para a doença mental. Além disso, trata-se de uma tecnologia muito especializada que não trará nenhum impacto realmente importante para o campo da saúde mental, nenhum efeito de saúde coletiva, nem de mudança de cultura, ou de aprendizagem social. A eletroconvulsoterapia é apenas resultado desse nosso fetiche pelo cérebro, que produz um tipo de política de saúde mental que não se interessa pela promoção de saúde comunitária, pelo cuidado psicossocial, pela inserção social, pela a redução de estigmas ou pelo apoio as famílias.

A grande sacada da política não manicomial – e isso não significou apenas desconstruir o manicômio – foi entender a doença mental como uma questão de responsabilidade coletiva, partilhada, como algo que se instala no laço entre as pessoas e não dentro delas. Tanto é assim, que uma característica peculiar da doença mental é que ela precisa do outro pra existir. Sem o outro, o sintoma do doente mental não seria identificado, por isso, a recusa social e o isolamento é sempre uma constante nesses casos, especialmente nos mais graves. Sob a ótica psicossocial, a doença mental é uma ferida do laço que nos une aos outros, é um desencontro de linguagem, é uma deficiência de afeto. Nesse caso, as terapêuticas que atuam na organicidade dos sujeitos são apenas coadjuvantes no processo de tratamento, o mais importante será restaurar o laço e a comunicação do sujeito com aquilo que ele ama ou deseja. Uma política de saúde mental não manicomial é aquela que compreende que uma pessoa adoecida não tem um cérebro doente, ela está com seus laços e vínculos doentes; seu cérebro pode sofrer os efeitos disso, mas não é o local onde se atua terapeuticamente.

Rita Almeida

Redação

17 Comentários

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  1. Neste governo, o grande fetiche é a privatização do lucro e estatização do prejuízo, o menosprezo por todos que não comungam do mesmo ideário, dentro desta ótica faz sentido o eletrochoque, vão disponibilizá-lo para as famosas “os” que de sociais não têm nada, que contratarão um monte de gente não especializada para usar as maquininhas de eletrochoque fabricadas por uma multinacional qualquer, que não tendo mais onde vendê-las, venderão aqui. Também fará a alegria de todos aqueles que pensam que lugar de louco é no manicômio e o do Lula na cadeia. Rita Almeida, gosto muito de seus artigos, claros, concisos e inteligentes sem serem pedantes. E fiquei com ciumes do outro leitor que te teceu elogios, ele tem toda razão!

  2. Cerebro como fetiche, objeto de uma tara que envolve exibicionismos e voyer.
    Mas como todo gozo perverso se encerra em si.
    Cérebro fetiche X cerebro para relação

  3. Sra. Rita de Almeida,
    muito obrigada por nos expor sua lucidez. Seu texto é impecável!
    Denota-se: dignidade, altruísmo, compaixão e habilidade inata no trato
    médico -paciente.
    Todo paciente não é só um número de carteirinha do plano de saúde ou do SUS.
    Todo paciente tem um histórico de família, de vida.
    Todo paciente tem o mesmo direito de ser tratado como um membro da família de seu pp médico.
    Portanto, médicos e todos que lidam com doentes deveriam considerar um paciente como uma pessoa da própria família.
    Pronto:
    – eletrochoque e manicômio estão descartados.

  4. E se um parente teu precisasse. Te perdoarias se ele cometesse suicídio por não haver tal opção terapêutica ou por considerar que todo o profissional tem o potencial de usá-lo como tortura? Algo paranóico nisto .

  5. Totalmente oportuno o artigo de Rita de Almeida. Afinal, nesta onda de retrocesso, o risco para o campo da saúde mental é grande demais. Será um sofrimento muito grande para mim presenciar, a luta anti-manicomial, lembrada pela própria autora, ser desrespeitada.

  6. O uso indiscriminado e incorreto de choque elétrico no passado deixou traumas e repulsa ao tema.
    No entanto, a eletroterapia é indicada em casos específicos, nos quais os tratamentos convencionais não surtem efeito, como a depressão profunda e insistente, que não responde aos medicamentos e tratamentos convencionais.
    Não vejo problema algum em utilizar tal método no SUS, desde que de forma restrita e muito bem fiscalizada, para alcançar apenas o paciente alvo. Talvez, restringir a autorização de uso do equipamento ao diretor da unidade de saúde.
    Não podemos restringir o uso desta importante ferramenta apenas para os mais ricos.

  7. Belo texto para exemplificar como se forma opiniões distorcidas. De forma clara e concisa, lançando mão de bons exemplos que ilustram nossa contemporaneidade, a autora fez uso de seu próprio instrumento cerebral para demonstrar exatamente o contrário do que supostamente pretendia defender, prejudicando, portanto milhares de pessoas que necessitam de um recurso terapêutico específico para salvas suas vidas. Um texto com palavras coerentes, contextualizaçoes históricas e pensamento supostamente voltado ao bem coletivo, esqueceu-se apenas do principal: a verdade. Perfeito exemplo de texto falacioso, em que se tem cuidado com a forma, não com o conteúdo. Mais grave ainda é divulgar este anticientificismo anárquico, com potencial risco de prejudicar pessoas. A Eletroconvulsoterapia tem 80 anos de respaldo científico, com benefícios comprovados, salvando vidas em casos de doença mental extremamente grave, em que não há mais NENHUM recurso médico que possa ser utilizado. Saúde não se politiza. Vidas humanas não têm partido. Lendo este texto, remeteu-me a imagem do político pomposo, engravatado, falando bonito e enganando toda a população. Prefiro gente simples que fala a verdade. Repito, o que importa é o conteúdo, não a forma! É muita ingenuidade, pra não dizer persecutoriedade, imaginar que se está tramando uma política em prol do retrocesso na saúde mental, com o intuito de desrespeitar o movimento antimanicomial. Vale ressaltar que tal procedimento é utilizado no mundo todo. Imaginar que um aparelho em específico é muito caro para investir nas pessoas, me remete à quele sujeito que só anda de bicicleta e deixa de comer carne, achando que assim está salvando o mundo. Prefiro imaginar que querer negar a existência da doença mental seja uma dificuldade de olhar para si próprio do que oligofrenia pura e simples, num mais autêntico ato de preconceito, ignorância e egoísmo. Tal pensamento se sustentaria se tal autora vivenciasse um transtorno mental grave em alguem de sua família? Se quer pensar no coletivo, tem que pensar na necessidade de cada um de forma personalizada, conceito utilizado pelo próprio SUS, já que a autora quis mencioná-lo sem saber verdadeiramente suas diretrizes. Graças a investimentos caríssimos, temos possibilidade, por exemplo, de realizar um transplante hepático pelo sus. Vidas estao sendo salvas! Pq tal autora não se incomoda com vultosos gastos para este fim? Seria o portador de doença mental menos importante do que uma pessoa com insuficiência hepática? Da mesma forma, trata-se de técnica especifica com gente especializada. Nem todo procedimento médico pode ser feito de forma coletiva para economizar e pensar no bem geral da população. Não existe cirurgia coletiva. Vamos então fazer o SUS economizar na compra de aparelhos de cardioversão, afinal, só podemos reanimar um coração por vez. Desta forma não estamos pensando no bem coletivo, nao é mesmo? Na minha opinião, um dos atos mais vis que existem nos dias de hoje, é usar da saúde pública para demonstrar posicionamento político. Triste ver alguém falando tanto de cérebro, dos avanços tecnológicos que propiciam tantas descobertas e benefícios para as pessoas, mas usar o próprio cérebro de forma rasa e enviesada. Esta é a verdadeira face contra a qual o movimento antimanicomial deveria lutar, pois são os que praticam o desservico e obscurantismo na saúde mental, contribuindo para a perpetuação do estigma e desincentivo ao correto tratamento e busca de qualidade de vida, como em qualquer doença com a qual lidamos ao longo da vida.

  8. Muito bom texto, com resgate histórico da luta antimanicomial. A única observação seria que a técnica em si não se opõe à democracia, pelo contrário, é uma ferramenta a mais, por sinal muito eficaz, a libertar da opressão da doença mental.

  9. A frenologia teve seus conceitos desconstituídos ainda no século XIX, por falta de comprovação empírica. Na verdade o século XIX foi muito profícuo para o entendimento clínico de diversas funções cerebrais. E para o desenvolvimento da propedêutica clinica médica, de uma maneira geral. Qualquer livro didático básico espelha tal avanço. Muitas doenças puderam ser diagnosticadas, inclusive com sintomas exclusivamente comportamentais. Muita gente pode ser curada ou ter seus males amenizados. De uma maneira geral se impôs a história e exame clínico como decisivos na propedêutica médica. Que até hoje prevalecem, apesar de todo arsenal tecnológico desenvolvido desde então. A revisão sistemática de conceitos e métodos faz parte da ciência. Para confirmar, desfazer e corrigir As conclusões do grande investimento na neurociência na década de 1990, foram tímidas e realistas. No sentido de que ainda temos muito a aprender. Há uma cautela muito grande na interpretação dos fenômenos mentais e possíveis bases biológicas nos artigos científicos. Isto nem sempre é espelhado em outros meios de comunicação. Infelizmente análises e revisões históricas apressadas, selecionadas para demonstrar aquilo que já acreditamos parecem ainda ter seu glamour baseado no impacto. Mas não combatem os eventuais arranjos em busca de notoriedade. (Não estou aqui me reportando a nenhum caso concreto. Mas à prática, que é frequente)) Não se tem respostas para muita coisa. Restringir o uso de métodos considerados agressivos de tratamento quando se encontra outros mais amenos é um imperativo. Mas tal é diferente de dispensá-los para aquilo que não temos ainda uma resposta melhor. De outra feita o acesso a fontes de informação científica hoje está universalizada. Não há como deixar de consultá-las antes de formarmos uma opinião a respeito de qualquer assunto. Claro que dá muito trabalho.

  10. Infelizmente, a maioria dos comentários acima parece de gente que nunca usou o SUS, apenas filosofam a seu respeito, ou numa lidaram com uma situação de emergência psiquiátrica pela rede pública, onde muitas vezes, maus tratos são justificados pela superlotação e excasses de funcionários. Se os antipsicóticos são frequentemente usados como forma de contenção, imagine o poder opressivo de um aparelho de eletroconvulsoterapia numa rede de saúde adoecia, como se encontra a nossa. O texto é muito oportuno sim e me pareceu que a defesa feita pelos comentaristasé que soou partidária.

  11. Guilherme Abdo, parece que é você quem tenta defender um sofisma. Se tiver um mínimo de familiaridade com o método cientifico, saberá que não há verdade absoluta, por mais palavras bonitas fora de contexto que se use.

    Além do mais, saúde pública é uma questão política, ponto, tentar negar isso é uma posição política facilmente refutavel.

    Por fim, o senhor decidiria pela eletroconvulsioterapia para tratamento de um ente querido? E se o fizesse, não buscaria antes uma segunda, terceira, quarta opinião? E confiaria no SUS para isso? Posso afirmar que para todas essas perguntas minha resposta é dificilmente.

    Mas talvez o senhor seja daqueles profissionais de saúde que, pela sua formação limitada e pressa de ganhar dinheiro, responda aos questionamentos dos leigos como eu com o argumento de autoridade que o diploma lhe confere.

    Pois bem, eu sou daqueles pacientes que recusam esses profissionais e procuram outro que saiba o que está fazendo.

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