A pandemia hoje pelos olhos de uma médica na linha de frente

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Com o Brasil atravessando sua pior semana desde o início do surto de Covid, Flávia Machado, intensivista, fala sobre os aprendizados e temores das equipes que assistem pacientes graves

Jornal GGN – Flávia Machado é médica intensivista, leciona a disciplina e comanda a UTI da Escola Paulista de Medicina da Unifesp. Faz parte ainda do núcleo de pesquisadores do grupo “Coalizão Covid-19 Brasil”, além de atuar na linha de frente da pandemia assistindo aos pacientes mais graves internados com coronavírus.

A médica falou à equipe do GGN na última quinta (4/3/2021), um dia após o Brasil atingir o maior número de mortes por Covid em 24 horas registrado até agora: 1,9 mil. Um ano após o início do surto local começar, o Brasil soma mais de 260 mil óbitos e mais de 10 milhões de casos confirmados. O cenário é de colapso do sistema de saúde iminente, enquanto outros médicos cogitam a possibilidade de o País chegar a 3 mil mortes por dia.

Flávia contou sobre sua experiência na linha de frente no momento em que as UTIs em todo o País se aproximam da superlotação. Ela comentou sobre o temor de faltar medicamentos e recursos financeiros para comprar outros insumos. Abordou a mudança no perfil dos pacientes que chegam hoje nas UTIs e colocou o aparecimento de novas variantes da Covid em perspectiva científica.

Entre outros temas, a doutora Flávia também falou sobre o novo estudo com quatro anti-virais e outros resultados obtidos pela Coalizão. Citou o uso de corticoides no tratamento de pacientes graves como um dos avanços em relação ao início da pandemia. Comentou sobre a realidade da reinfecção e alertou para a síndrome pós-Covid, que tem sido pouco explorada na imprensa.

Participaram desta edição as jornalistas Lourdes Nassif, Patricia Faermann, Cintia Alves, Tatiane Correia e Ana Gabriela Salis.

Confira alguns trechos da entrevista:

APARECER NOVAS CEPAS É O CAMINHO NATURAL

O surgimento de novas cepas é o caminhar natural de qualquer vírus. Não entendo que o atraso na vacina tenha impacto no surgimento de novas cepas, mas uma coisa leva à outra.

Vírus não são fáceis. Novas variantes surgem o tempo todo. Nós teremos de nos acostumar com novas variantes de toda forma. A covid veio para ficar. É uma nova H1N1. O que temos de fazer é ter a pandemia sob nosso controle, e não ela controlando a gente como está acontecendo.

O QUE MUDOU DESDE O COMEÇO DA PANDEMIA

A primeira coisa que mudou foi o medo. No começo nós todos tínhamos muito medo. Eu tenho 30 anos de medicina intensiva e nunca tinha visto nada igual. Agora, um ano depois, nós estamos mais seguros, firmes, conhecemos melhor e sabemos da nossa capacidade de lutar contra o vírus. Então a questão emocional está melhor. Por outro lado, também estamos mais cansados.

Infelizmente ainda não temos nenhum tratamento direto para o vírus, ou seja, um anti-viral que nos ajude a matar o vírus e impedir que ele se multiplique. Por outro lado, a gente tem comprovadamente os corticóides que ajudam a controlar o efeito que o vírus faz. Sabemos que se dermos corticóides para os pacientes que estão hospitalizados, precisando de oxigênio dentro das UTIs, vamos melhorar as chances desse paciente evoluir bem.

Infelizmente não temos outras grandes opções terapêuticas nesse momento.

Outra coisa que melhorou foi nossa capacidade de lidar com as disfunções orgânicas. O vírus provoca mau funcionamento de diversos órgãos, rins, coração, circulação do sangue… Cuidar de disfunção orgânica é algo que nós intensivistas estamos treinados a fazer, mas hoje a gente lida melhor com isso. E acho que estamos mais acostumados com a gravidade desses pacientes também.

Então, de maneira geral, acho que nossa comunidade está mais segura no atendimento.

MEDICAMENTOS EM ESTUDO

Estudos mostram que, em pacientes hospitalizados, a hidroxicloroquina não funciona. Recentemente a OMS também mostrou que para prevenir riscos, também não funciona. Ainda existem estudos em andamento. A ciência é dinâmica. Mas o princípio básico de qualquer tratamento é que, na ausência de benefícios, não devemos usar a medicação, principalmente se tiver sérios efeitos colaterais.

A OMS recomenda, sim, uso de corticóides para pacientes hospitalizados que necessitam de oxigênio. E existe também recomendação para o Remdesivir, que não está liberado no Brasil, mas é usado nos Estados Unidos.

NEGACIONISMO E VACINA

Enquanto representante da Coalizão Covid-19 Brasil, nós não nos envolvemos em assuntos que têm conotação política. Queremos nos envolver apenas em assuntos que vai nos trazer resultados, proteção, benefícios para a população. A coalizão não tem estudos sobre vacinas. Minha opinião pessoal é de uma pessoa vacinada. Me vacinei como voluntária. Tenho muito orgulho de ter sido objeto de pesquisa. Descobri após a abertura do estudo que tomei placebo e, mais ou menos um mês atrás, fui vacinada.  

REINFECÇÃO POR COVID

Reinfecção é fato. Tivemos na nossa UTI diversos profissionais que tiveram Covid mais de uma vez. Portanto, mesmo com a vacina, todos os cuidados de prevenção devem continuar acontecendo.

FALTA DE LEITOS DE UTI

Estamos em um momento muito delicado da pandemia. Os dados de superlotação estão na imprensa e são verdadeiros. As UTIs estão cheias e não há profissionais de saúde suficientes para abertura de novos leitos. A população precisa entender que nossa capacidade de reação será limitada se não houver cooperação. A solução básica para resolver isso é o que tem sido decretado pelos governadores: fechar as cidades onde está se aproximando do limite de lotação de UTIs, associado, claro, à vacinação. O que fazer quando as UTIs estiverem lotadas? Recrutar locais que possam ser transformados em hospitais de Covid.

FALTA DE MEDICAMENTOS NA SEGUNDA ONDA

No começo da pandemia havia uma carência de produtos no mercado. Nós superamos essa primeira fase porque a indústria brasileira respondeu bem. Depois entramos numa fase muito ruim de falta de medicamentos. Novamente, nada a ver com recursos, mas com a falta de produtos no mercado, você não conseguia comprar. Nós tivemos de contingenciar e substituir muitas vezes. Nós vivenciamos um stress muito grande de ficar sem.

Hoje eu não acho que vai faltar EPI. Não vai faltar EPI porque a indústria brasileira respondeu bem. Vivemos recentemente a falta de luva por causa da matéria prima. Mas o que está acontecendo agora é o preço. Se antes se comprava uma luva por centavos, hoje ela custa até 2 reais. O valor dessas coisas subiram tanto que hoje faltará dinheiro aos hospitais públicos para comprar. A crise econômica é um fato e isso dificulta tudo. Estamos vivendo um misto entre dificuldade de ter recursos, dificuldade de fornecimento de alguns medicamentos e insumos que traz para nós, profissionais, um certo temor do que vem por aí. Se a onda vier para valer, temos a impressão de que, sim, poderá faltar. Não digo EPI. EPI acho que está razoável, mas o medicamento pode de novo faltar.

Hoje a sobrecarga nos hospitais está em cima dos hospitais privados. Nós vamos segui-los em breve, e temos o problema do recurso financeiro, que é muito grave para nós.

PERFIL DOS PACIENTES NA UTI HOJE

O perfil tem mudado sim. Eu não diria que é preferencialmente os mais jovens [que estão chegando mais nas UTIs nesta segunda onda], mas temos visto com mais frequência os pacientes mais jovens, que a gente via muito raramente antes, principalmente nós médicos intensivistas.

SÍNDROME PÓS-COVID

Estudo da Coalizão Covid Brasil tratá dado inédito. Entre 1 mil doentes acompanhados, entre aqueles que estiveram na UTI com ventilação mecânica e sobreviveram à Covid, 24% deles morreram após saírem do hospital. Isso traz para nós a responsabilidade do seguimento pós alta. Os sobreviventes desenvolvem várias debilidades.

ESTUDO COM ANTI-VIRAIS

São quatro anti-virais que serão usados em pacientes com sintomas mais leves. Começou mês passado, focado em pacientes hospitalizados mas pouco graves. Deve durar de meses a ano para ter resultados. Com relação ao spray nasal, nada a dizer.

SPRAY NASAL DE ISRAEL

Nada a declarar. Não acho que tenha nenhuma evidência, nem conheço o suficiente para dar opinião.

PRESSÃO SOBRE OS PROFISSIONAIS DE SAÚDE

A grande maioria de nós tenta lidar com isso olhando para o reverso. É a gente olhar não as vidas que a gente perdeu, mas as que a gente ganhou.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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