Chile: de exemplo de vacinação a erros para enfrentar a Covid-19

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Entenda como o país referência em vacinação e testagem atinge hoje o seu pior patamar da pandemia de Covid-19

Entenda como o país referência em vacinação e testagem atinge hoje o seu pior patamar da pandemia de Covid-19

De Santiago, Chile

Jornal GGN – O Chile é um dos países que tiveram melhor desempenho do mundo na vacinação contra a Covid-19. Com fronteiras fechadas, quarentena decretada em mais de 80% de seu território e mais de 40% de toda a sua população já imunizada, o GGN explica porque, contraditoriamente, o país atravessa seu pior momento, com os maiores índices de contágios de coronavírus.

Ficando atrás somente de Israel, Emirados Árabes, Reino Unido e Estados Unidos, o Chile é sem dúvida o país latino-americano que mais avançou na campanha de vacinação.

Segundo o último censo, o Chile tem 19.107.216 habitantes. Até esta terça (20), foram aplicadas mais de 13 milhões de doses, com 7.777.919 pessoas recebendo a primeira e 5.574.683 já tendo recebido a segunda dose do imunizante (confira aqui). Na prática, mais da metade da meta – vacinar 15,2 milhões de pessoas – já foi cumprida.

O calendário de vacinação já superou todo o grupo de risco, trabalhadores da saúde, pessoas com doenças crônicas, maiores de 80, 70, 60 e 50 anos, profissionais da comunicação, trabalhadores de serviços essenciais – desde saúde, alimentação, meios de comunicação, e nesta semana vacina adultos de 47 até 48 anos.

O cronograma prevê, ainda, que os imunizantes estão sendo aplicados garantindo-se que aquele que recebe a vacina hoje terá a segunda dose correspondente daqui a 28 dias, seja a Sinovac (a mesma da CoronaVac) ou a Pfizer, que são as duas distribuídas até agora aos seus habitantes.

Mas todo esse sucesso não parece ocorrer no mesmo país que registra seus piores índices da pandemia desde que ela começou.

Até esta segunda-feira (19), o Chile registrava 1.131.340 casos desde o início da pandemia. A metade desse total foi somada desde dezembro de 2020. Ou seja, em 4 meses, o país duplicou a quantidade de contágios somados durante todo o ano passado.

Desde o final de março, os números assustaram porque ultrapassaram o recorde do dia 14 de junho de 2020, que atingia 6.938 casos diários, contabilizando mais de 7 mil desde 27 de março recente, chegando no dia 9 de abril a 9.151 novos contágios.

Este outro balanço, completamente oposto ao primeiro exposto inicialmente, tem como explicação uma série de fatores que incluem desde erros cometidos pelo governo de Sebastián Piñera no manejo da pandemia e também características particulares do país.

Piorar antes de melhorar

Nos informes diários publicados pelo governo, os epidemiologistas do país alertam que os casos anunciados a cada jornada irão, necessariamente, gerar novos contágios em duas semanas mais, já entendendo que a propagação da doença é automática e que se chegou a patamares de difícil retorno.

É o que os especialistas chamam de “alta endemia”, quando o peak da disseminação chegou a níveis de casos tão altos e persistentes que se tornou mais difícil voltar a uma curva de declínio. Por isso, os epidemiologistas do Chile já advertiam que o cenário iria “piorar antes de melhorar”.

Curva de contágio x Taxa de positividade

Desde outubro de 2020, o país lidera na América Latina a taxa de testes PCR, com 645.636 exames por milhão de habitantes. Para a população inserida no mercado de trabalho, todos os planos de saúde cobrem de 80% até 100% do custo desse exame que detecta a doença.

Os municípios e governos locais também estão realizando campanhas com exames PCR gratuitos em bairros e cidades. Assim, para aqueles que tenham poucos sintomas, ou ainda nenhum, mas que realizam o exame, a detecção é acessível e ampla. Ainda que não seja o cenário completamente real, o país tem tido sucesso em identificar o aumento e aproxima-se de uma estatística mais próxima da realidade diariamente, o que implica, diretamente, no registro de maiores índices de contágios.

Dados do dia 19 de abril – Divulgação

Como comparação, se hoje a chamada “taxa de positividade” (testes Covid-19 positivos) registrada nesta terça (20) foi de 10,49% em todo o país e 12% na Região Metropolitana, 10 meses atrás, em junho de 2020, somente a Região Metropolitana registrava um percentual de 59,3% de confirmação da doença (leia aqui).

Essa porcetagem demonstra que se houvesse uma ampla disponibilidade de testes PCR desde o começo da pandemia, a curva atual de contágios poderia ser descendente, e não ascendente.

Rastreamento

Por outro lado, as outras duas letras da estratégia de enfrentamento ao coronavírus, denominado no Chile de TTA (Testeo, Trazabilidad y Aislamiento) ou Teste, Rastreamento e Isolamento, não vêm sendo bem sucedidas. As características do país e os erros no manejo afetaram não somente o efetivo isolamento, conforme explicaremos abaixo, como também as infecções, hoje, já não estão sendo rastreadas, o que impede o seguimento adequado da propagação do vírus.

Erros do governo

Apesar da rápida aquisição das vacinas e diversos planejamentos de quarentenas no país desde março de 2020, que vão sendo atualizados semana a semana, com a abertura ou fechamento de serviços não essenciais, dependendo dos números que cada bairro vai apresentando, algumas decisões equivocadas retrocederam os avanços que o país vinha obtendo.

Em novembro, o governo se precipitou ao reabrir as fronteiras e a diminuir as restrições à mobilidade. Em janeiro, quando o país começou a registrar um novo aumento de casos denominado de “segunda onda”, o Ministério da Saúde decidiu voltar a endurecer as regras, mas, contraditoriamente, liberou o livre trânsito de pessoas com uma permissão especial para “férias de verão”.

As férias foram tomadas pela população chilena não somente dentro do país, como também em viagens ao exterior, entre janeiro, fevereiro e março. Estima-se que mais de 4 milhões de pessoas circularam pelo país com essa permissão especial para viajar.

O governo também decidiu reabrir as escolas com aulas presenciais, o que ocorreu no mês de março em diferentes províncias do país (acesse), antes que tivessem que fechar novamente, no mês seguinte, por quarentenas obrigatórias. Na visão de especialistas, estas decisões estão impactando até hoje nos índices da pandemia no país.

Dessa forma, as medidas sanitárias adotadas novamente no final de março e começo de abril – que fecharam completamente as fronteiras e o confinamento de quase 80% da população – só serão refletidas em números das próximas semanas e meses.

Para explicar esse “vai e vem” de medidas sanitárias determinadas pelo governo, também entra em jogo o contexto econômico do Chile.

A informalidade

O modelo neoliberal adotado pelo país ainda durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) e a política da abertura econômica e privatizações em todos os setores da sociedade geraram como uma das heranças o predomínio e o incentivo do trabalho informal. Esses trabalhadores representam, hoje, 29,6% da população, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas do Chile (INE).

Assim, um terço dos chilenos dependem de horas ou dias trabalhados para sobreviver. E a maioria desses funcionários se dedicam ao comércio e serviços, nas ruas, em atuações presenciais. São em grande parte comerciantes que têm contato com público diariamente e disso dependem suas remunerações.

Entre as permissões disponibilizadas pelo governo às pessoas para sair de suas casas, está a concedida a empresas e seus funcionários. Isso quer dizer que, apesar de 70% de todo o Chile estar hoje confinado em quarentena, todos os trabalhadores que precisam sair de casa, seguiram suas rotinas.

Para confinar 30% da população trabalhadora informal ativa, o governo precisaria adotar mecanismos para garantir a sobrevivência dessa população. Atualmente, há auxílios emergenciais disponibilizados momentaneamente a alguns setores da sociedade, mas são pontuais e não mantidos mensalmente.

Profissionais da saúde esgotados

Após mais de um ano de pandemia, a saúde dos profissionais de primeira linha também se viu afetada. O Colégio Médico do Chile registra uma taxa de 25% a 30% de funcionários da saúde que pediram licenças médicas, ocorridas pelo desgaste, estresse e excesso de trabalho para manter esse ciclo de atenções hospitalares intensivas por mais de um ano.

Isso reflete diretamente na capacidade hospitalar do país. As ocupações de UTIs, por exemplo, chegam a 96% da lotação dos leitos, restando somente 176 leitos de internação até esta terça (20).

Dados do dia 20 de abril – Divulgação

Falha na comunicação de risco

A importância da vacina e o sucesso da campanha em todo o país vem sendo comemorada pelo governo e especialistas da saúde. Por outro lado, entrou como falha na comunicação de risco da gestão Piñera a mensagem de que a vacinação acabaria com o vírus.

Se, por um lado, a própria OMS (Organização Mundial da Saúde) vem alertando que, após a imunização, os protocolos sanitários devem ser mantidos, não foi esse o recado transmitido à população chilena pelas autoridades.

Vacina: contágio x agravamento

Enquanto 60% da população ainda precisa ser vacinada, menos ainda foram os que tomaram as duas doses do imunizante. De um total de 7.735.162 milhões que receberam a vacina, 5.428.829 tiveram essas duas doses completas – reduzindo, assim, em um terço da meta a ser alcançada que está protegida.

Soma-se a isso um levantamento recente (leia aqui), divulgado pelo país, com o que chamaram de “eficácia da vida real” da vacina Sinovac, a que foi aplicada em mais de 86% do público até hoje. Apesar dos números positivos para evitar internações em UTIs e mortes (89% e 80% de eficácia, respectivamente), os números não foram tão encorajadores quando foi administrada somente uma dose do imunizante.

Com uma dose, a vacina foi efetiva em somente 16% das pessoas para a prevenção dos sintomas, 36% para hospitalização, 43% para ingresso em UTIs e 40% para mortes. Também, mesmo de forma comprovada evitando o agravamento da doença, 14 dias após a segunda dose, a eficácia para prevenir os simples sintomas foi de 67%. Assim, a vacina não tem taxas altas para impedir o contágio, e sim para o agravamento da doença.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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