Covid-19: a ética de inocular o vírus em cobaias humanas, por Ruben Rosenthal

Apoiada por um investimento do governo do Reino Unido de 33,6 milhões de libras esterlinas, a pesquisa será realizada por uma parceria entre Imperial College, Royal Free Hospital e a empresa clínica hVIVO.

Foto: Sigrid Gombert/Getty Images

do Chacoalhando

Covid-19: a ética de inocular o vírus em cobaias humanas

por Ruben Rosenthal

Mesmo com a aprovação do estudo do Imperial College pela Autoridade de Pesquisa em Saúde do Reino Unido, os testes com o vírus ativo da Covid-19 em voluntários estão gerando forte controvérsia.

O Imperial College de Londres está selecionando voluntários para se submeterem em breve a ensaios clínicos de “desafio em humanos” com o vírus Sars-CoV-2. Neste tipo de estudo clínico o corpo humano é desafiado pela inoculação do vírus ativo, não atenuado1.  

Os experimentos incluem aplicar em pacientes saudáveis uma vacina ainda sem eficácia comprovada, e então infectar deliberadamente os voluntários. No entanto, mesmo com a aprovação do estudo do Imperial College pela Autoridade de Pesquisa em Saúde, os testes com o vírus ativo da Covid-19 em voluntários estão gerando forte controvérsia. 

Os médicos utilizarão o vírus original que circula no Reino Unido desde março de 2020, por existirem menos informações disponíveis sobre as novas variantes. A pesquisa irá avaliar o desenvolvimento de anticorpos e a resistência à evolução da doença. Segundo o líder da pesquisa, o Dr. Chris Chiu do Departamento de Doenças Infecciosas do Imperial College, o objetivo final é testar rapidamente quais vacinas e tratamentos funcionam melhor no combate à Covid-19, acelerando seu desenvolvimento.  

Apoiada por um investimento do governo do Reino Unido de 33,6 milhões de libras esterlinas, a pesquisa será realizada por uma parceria entre Imperial College, Royal Free Hospital e a empresa clínica hVIVO. 

A investigação envolverá até 90 voluntários adultos saudáveis com idades entre 18 e 30 anos, por estes apresentarem “menor risco de complicações graves decorrentes do coronavírus”. A saúde dos participantes será monitorada em uma unidade de quarentena no Royal Free Hospital, em Londres. Os voluntários também serão acompanhados por um ano após a participação nos testes. 

A ética dos testes de desafio em cobaias humanas 

Estudos clínicos de desafio em humanos já foram realizados anteriormente para outros vírus, como o da cólera.  Existe a tendência de se considerar como éticos os estudos em que a adesão dos voluntários for espontânea, sem o cometimento de abusos ou de pressões sobre indivíduos ou outros países.  

No caso da pandemia da Covid-19, o professor e especialista em ética da Universidade de Oxford, Julian Savulescu, se declara a favor dos estudos de desafio, conforme relatado pela BBC-Brasil: “Em uma pandemia, tempo é vida. Até agora, mais de 1 milhão de pessoas morreram”.  

Por outro lado, o mesmo artigo da BBC-Brasil relata também que a professora de bioética da Escola de Medicina Albert Einstein de Nova Iorque, Ruth Macklin, considera que é eticamente injustificável “acelerar pesquisas envolvendo uma doença grave para a qual inexiste tratamento eficaz”. Esta posição é compartilhada por  Angela Rasmussen, virologista da Universidade de Columbia, que avalia que os estudos de desafio não trariam dados úteis para além do grupo participante do estudo.  

Para Christine Grady2, chefe do Departamento de Bioética do Centro Clínico no National Institutes of Health, “não está claro se os estudos clínicos de desafio irão mesmo apressar as pesquisas”, conforme artigo na Forbes.  

Willowbrook, a antítese da ética médica 

A história do desenvolvimento de vacinas no Ocidente, iniciada com a descoberta da vacina contra a varíola pelo britânico Edward Jenner em 1798, mostra que nem sempre foram atendidos os padrões éticos necessários. Uma das mais controversas pesquisas de desenvolvimento de vacinas com inoculação do vírus ativo ocorreu nos Estados Unidos, no período entre 1955 e 1970.  

Ainda segundo o mesmo artigo da Forbes, um experimento de inoculação do vírus da hepatite foi realizado em crianças com deficiências mentais da Escola Estadual de Willowbrook, Staten Island, Nova York. O estudo fora autorizado pelo Departamento de Higiene Mental do estado.  

Estudos de desafio em crianças com deficiência mental foram realizados na Escola Estadual Willowbrook, Nova Iorque
Crianças com deficiência mental serviram de cobaias em ensaios clínicos com vírus da hepatite \ Escola Estadual Willowbrook. Fotos: Bob Adelman

A busca pela vacina contra a hepatite assumira grande relevância para os Estados Unidos no começo da década de 50, com a constatação de que durante a Segunda Guerra Mundial cerca de 50.000 militares das tropas norte-americanas foram afetados pela doença causada pelos múltiplos vírus da hepatite. 

Segundo o relato da mãe de uma menina com grau severo de autismo, para conseguir uma vaga em Willowbrook, ela precisou consentir que a filha Nina se participasse dos testes de desenvolvimento da vacina contra a hepatite. A menina foi uma das 50 crianças submetidas aos estudos conduzidos pelo Dr. Saul Krugman, respeitado pediatra de Nova York. 

Os ensaios clínicos incluíram infectar as crianças, contaminando com vírus o leite achocolatado que era dado a elas. Os testes eram aplicados repetidas vezes em uma mesma criança, para avaliar o tempo para surgimento de sintomas após contágio e se a imunidade seria alcançada em caso de novas exposições ao vírus. Os resultados foram publicados no New England Journal of Medicine, na Lancet, e no Journal of the American Medical Association. 

Em 1966, o renomado médico Henry K. Beecher, especialista em ética médica, publicou um artigo em que citou Willowbrook como exemplo de experimento antiético, acrescentando “não ser correto prejudicar uma pessoa para benefício de outras”. Cinco anos depois, o comitê editorial da Lancet se desculpou “pela publicação de uma pesquisa que não traria benefício direto para as crianças infectadas”. 

O filho do Dr. Krugman, também um médico pediatra, defende o pai: “Ele certamente pensou que estava fazendo uma contribuição para a pesquisa de uma doença infecciosa”. De fato, a pesquisa realizada em Willowbrook acelerou a descoberta da vacina para a hepatite.   

No entanto, ao final da década de 60, o Dr. Baruch Blumberg descobriu de forma independente a vacina para a hepatite B, examinando amostras de sangue e testando as funções do fígado em crianças e adultos já infectados. A pesquisa rendeu a Blumberg o prêmio Nobel de Medicina.  

O experimento em Willowbrook representa apenas um dos vários estudos clínicos anti-éticos conduzidos em crianças, presidiários e grupos minoritários. Este foi o caso dos falsos tratamentos em Tuskedee para avaliar a evolução da sífilis, e que levaram à morte de centenas de negros portadores da doença, quando já existia a cura.  

Decorre então o questionamento se é realmente necessário ou correto arriscar a saúde de uns poucos para o benefício de muitos. Existe sempre o risco que motivações políticas possam relegar a um segundo plano a segurança dos voluntários envolvidos na pesquisa, na busca de resultados rápidos. Por outro lado, alguns médicos que se envolveram anteriormente nesta modalidade de ensaios clínicos com cobaias humanas cometeram abusos inaceitáveis.  

Para muitos, Saul Krugman fez a coisa certa com seus estudos em Willowbrook.  E ele recebeu a recompensa por seu trabalho, se tornando presidente da Sociedade Americana de Pediatria em 1972, mesmo após amplamente expostas  na mídia as denúncias sobre a pesquisa. 

Estudos clínicos de desafio humano deveriam requerer a aprovação e fiscalização por uma comissão de ética independente, para evitar eventuais ingerências políticas e desvios de conduta médica.  

Notas do autor 

  1. As vacinas fazem uso do vírus causador de uma doença, mas em sua forma atenuada ou inativada. 
  2. Christine Grady é esposa do Dr. Anthony Fauci, o renomado imunologista estadunidense. 

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Redação

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