COVID-19: EUA aprovam métodos de desinfecção de máscaras N95 usadas. E a Anvisa?, por Ruben Rosenthal

Com Trump abocanhando as encomendas de EPIs vindas da China, Mandetta precisará adotar rapidamente a descontaminação de máscaras N95. Resta decidir o método.

Polícia de Seattle durante a pandemia de influenza em 1918 | Foto: Time Life Pictures / Getty Images

do Chacoalhando

COVID-19: Estados Unidos aprovam métodos de desinfecção de máscaras N95 usadas. E a Anvisa?

Com o aumento da pandemia causada pelo coronavírus, a administração Trump exigiu no início de abril, através da Agência Federal de Manejo de Emergências (FEMA), que a 3M pare de exportar máscaras N95 produzidas no país para o Canadá e América Latina. Fazendo uso da Lei de Defesa da Produção, o presidente também determinou que a 3M priorizasse a exportação para os Estados Unidos, das máscaras N95 produzidas pela empresa em outros países, em particular na China.

Em um comunicado emitido, a empresa declara que já vem colaborando para atender às encomendas do governo norte-americano, e que conseguiu a aprovação da China para a exportação de 10 milhões de máscaras. Ressalta também que implicações humanitárias significativas resultariam da interrupção dos fornecimentos de máscaras ao Canadá e América latina, e que retaliações já estão ocorrendo. Mas, a 3M indica se curvar aos desígnios de Trump, ao declarar que “anseia trabalhar em proximidade com a Administração, para implementar as determinações da Lei de Defesa da Produção”.

Desta forma, Trump conseguiu que equipamentos de proteção individual (EPIs), já adquiridos e pagos por vários países, incluindo Canadá, Alemanha e Brasil fossem desviados para os EUA. Em outros casos, os Estados Unidos ofereceram preços mais altos para garantir os fornecimentos, conforme reclamação dos franceses, relatou o The Guardian.

Para a China ter favorecido seu rival na disputa da hegemonia econômica global, deve existir provavelmente um preço que Trump precisará pagar, no momento devido. Que o Brasil tenha sido preterido, podemos colocar na conta de Eduardo Bolsonaro e alguns  membros da trupe bolsonarista, que se comportam como anencéfalos. Neste grupo, inclui-se o ministro da educação, Abraham Weintraub, a quem lamentavelmente estão subordinados os Hospitais Universitários federais.

Não adianta agora espernear, e sim, partir para encontrar soluções que possam garantir as necessidades dos profissionais de saúde no Brasil, conforme os estoques de máscaras N95 e similares estão praticamente esgotados. As soluções dificilmente virão das hostes bolsonaristas.

Em 27 de março, antes mesmo do “sequestro” pelos EUA, das encomendas já pagas, e do banimento das exportações oriundas deste país, o governador Dória já havia se dado conta da importância estratégica de garantir um estoque de EPIs para os hospitais de São Paulo e, simplesmente requisitou “na marra”, os estoques de máscaras da 3M da fábrica em Campinas.

O Ministro da Saúde do Brasil se encontra agora na situação de precisar garantir o fornecimento das máscaras do tipo N95 (ou equivalentes),  usadas pelo pessoal da saúde. Estas máscaras garantem  eficiência de filtração mínima de 95% das partículas maiores que 300 nanômetros1. A explicação para esta eficiência é que, mesmo com o vírus do SARS-CoV-2 tendo um tamanho que varia de 80 a 120 nanometros, ele “viaja” em partículas de tamanho acima de 600 nm, provenientes do trato respiratório dos pacientes.

De fato, os relatos são de que  as máscaras N95 tem oferecido segurança aos profissionais de saúde que vêm atuando em procedimentos com risco de geração de aerossóis, durante o atendimento de pacientes suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus.

médico com máscara n95
Máscara recomendada para proteção dos profissionais de saúde contra o coronavírus  |  Foto: Reprodução

Uma possibilidade para suprir a atual carência de máscaras é que a indústria nacional se engaje na produção em massa do “genérico” da máscara N95 ou de seus equivalentes (a FFP2 européia, DS japonesa, P2 australiana, ou Korea 1st class), o que não deve representar nenhuma dificuldade tecnológica. Se for necessário quebrar uma patente, que se faça isto.

Por outro lado, é preciso estender a duração dos atuais estoques. O ministro se deu conta que é imprescindível adotar procedimentos de esterilização das máscaras N95, para que as mesmas possam ser reutilizadas por um período maior, com mínimo risco para o profissional de saúde. O blogue Chacoalhando já havia alertado para esta necessidade desde o dia 24 de março, em artigo que tratou da desinfecção de máscaras com uso de luz ultravioleta, e que foi republicado pelo GGN.

Na ocasião da publicação, a Sociedade Brasileira de Infectologia, e outros agentes relevantes, foram diretamente alertados da necessidade de ser implementada a técnica de desinfecção das máscaras com uso da  luz ultravioleta, que fora recentemente aprovada em testes realizados pelo Centro Médico da Universidade de Nebraska.

O ministro precisa agir de imediato, em face do agravamento da situação. Para tanto será necessário que a Anvisa altere com presteza os procedimentos que estabeleceu para a reutilização de máscaras (que serão apresentados neste artigo), e que não incluem a desinfecção.

A Anvisa, embora esteja vinculada ao Ministério da Saúde, tem seu diretor-presidente indicado pelo presidente da República. Encontra-se à frente da instituição, o médico e contra-almirante Antonio Barra Torres, um bolsonarista de carteirinha. Trata-se da mesma pessoa que estava ao lado de Bolsonaro, quando este, supostamente infectado com o coronavírus, foi cumprimentar (e contaminar?) seus admiradores na porta do Palácio Alvorada.

Resta saber se Torres vai colaborar ou boicotar a iniciativa do ministro Mandetta. Bolsonaro, com fins inconfessáveis, vem investindo na política do caos, do quanto pior melhor, e não seria surpresa se fossem colocados empecilhos à rápida implementação dos procedimentos de desinfecção.

Se isto acontecer, Torres precisará ser afastado, mesmo que à revelia de Bolsonaro, para que Mandetta possa escolher alguém com quem possa ter uma relação de trabalho proveitosa a frente da Anvisa. Ou então, que os governadores de Estado determinem que os hospitais que dispõem de condições para realizar os procedimentos necessários de desinfecção, sigam os protocolos adotados no exterior, mesmo em desobediência à agência reguladora nacional. Isto deve necessariamente incluir também os Hospitais Universitários federais, também à revelia de Weintraub, se preciso for.

A desobediência civil é necessária quando há vidas em jogo. Os administradores do Centro Médico da Universidade de Nebraska, que desenvolveram o protocolo para uso da radiação UV na esterilização de máscaras, estavam na ocasião dispostos a desafiar as normas vigentes, para implementar o procedimento, segundo artigo no New York Times. 

Isto não foi no entanto necessário, pois o CDC, Centros de Prevenção e Controle de Doenças  dos Estados Unidos, considerou a situação emergencial, e aceitou o uso dos métodos mais promissores para a descontaminação das EPIs, que são a irradiação UV germicida, o vapor de peróxido de hidrogênio e o calor úmido.  O documento do CDC apresenta alguns detalhes técnicos de diversas metodologias de desinfecção.

A reutilização de máscaras N95 sem desinfecção prévia. Em 31 de março, a Anvisa atualizou a Nota Técnica GVIMS/GGTES/ANVISA Nº 04/2020, com orientações aos serviços de saúde das medidas de prevenção e controle, para lidar com a pandemia causada pelo  SARS-CoV-2, o novo coronavírus.

“Se as máscaras forem usadas por período maior ou por um número de vezes maior que o previsto pelo fabricante, elas podem não cumprir os requisitos para os quais foram certificados”. Apesar desta especificação do fabricante, a Anvisa determinou que, “com o aumento da demanda causada pela emergência de saúde pública da COVID-19, as máscaras de proteção respiratória (N95 ou equivalente) poderão, excepcionalmente, ser usadas por período maior, ou por um número de vezes maior que o previsto pelo fabricante, desde que sejam utilizadas pelo mesmo profissional e que sejam seguidas, minimamente algumas recomendações”.

“Com objetivo de minimizar a contaminação da máscara N95, se houver disponibilidade, o profissional de saúde deve utilizar um protetor facial (face shield), pois este equipamento protegerá a máscara, do contato com as gotículas expelidas pelo paciente.” Foi ainda recomendado pela Anvisa, que “o profissional de saúde não use uma máscara cirúrgica sobreposta à máscara N95, pois além de não garantir proteção de filtração ou de contaminação, pode também levar ao desperdício de mais um EPI”.

Em 26 de março, a vigilância sanitária do Distrito Federal emitiu uma nota, em que também tratou de recomendações para reutilização das máscaras N95. Diferentemente da Anvisa, o órgão do DF não opôs restrição ao uso de uma máscara cirúrgica sobre a máscara N95, como alternativa ao uso de um protetor facial.

Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia se manifestou sobre a questão da reutilização das máscaras, em face da escassez de EPIs. A recomendação é que os profissionais da área da saúde em contato com pacientes com diagnóstico firmado de COVID-19, ou casos suspeitos, utilizem as máscaras N95 com uma máscara cirúrgica sobreposta à mesma, sendo esta de uso único.

A SBPT acrescentou ainda, que a N95 pode ser reutilizada por no máximo 15 dias, desde que esteja em bom estado de conservação. Ressalta, no entanto, que “esta sugestão baseia-se apenas na opinião de especialistas, carecendo ainda de comprovação por estudos científicos adequados”.

Ao contrário do uso do protetor facial, parece não haver consenso sobre se a utilização de uma segunda máscara, sobreposta a N95, traria algum benefício. Entretanto, nenhuma destas instituições garantiu que o profissional não será infectado, mesmo fazendo uso de uma dupla proteção, caso reutilize sua máscara N95 diversas vezes.

A reutilização de máscaras N95 com desinfecção prévia. Nos Estados Unidos, dois procedimentos de desinfecção já estão sendo utilizados, e serão apresentados a seguir. O ministro Mandetta precisará provavelmente optar por um destes dois métodos, se for adiante com a implementação desta medida, que ajuda a prolongar a duração do estoque, ao mesmo tempo que concede uma segurança maior ao profissional de saúde.

Uso de radiação ultravioleta. Um protocolo para uso da luz UV na esterilização de máscaras foi desenvolvido pelo Centro Médico da Universidade de Nebraska, conforme relatado em artigo anterior do Blogue, e já atraiu o interesse de outras entidades de saúde norte-americanas.

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Uso de luz UV na desinfecção de produtos hospitalares, Centro Médico da Universidade de Nebraska  | Créditos: Calla Kessler  / The New York Times

Como já foi mencionado no atual artigo, o uso da técnica de descontaminação de máscaras usando UV foi aprovado pelo Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC). O dr. John Lowe, que estabeleceu o protocolo de desinfecção, pode ser visto neste vídeo do Youtube. O método poderia ser facilmente utilizado no Brasil, pois diversas unidades de saúde no país já utilizam esta metodologia para outras aplicações de desinfecção.

A equipe da Universidade de Nebraska declarou que ficou satisfeita com os resultados obtidos, no que diz respeito a diversas reaplicações da radiação UV. A pesquisa  teve prosseguimento, para se determinar o número máximo de ciclos de descontaminação possível, sem causar danos às máscaras.

Uso de vapor de peróxido de hidrogênio. Em 29 de março, o Battelle Memorial Institute, Columbus, Ohio, recebeu autorização emergencial da FDA, Food and Drug Administration, para adotar a metodologia de esterilização de máscaras N95 contaminadas pelo SARS-CoV-2, usando vapor de peróxido de hidrogênio. Quando em solução aquosa, o produto é conhecido popularmente como água oxigenada.

Este procedimento de desinfecção de máscaras contaminadas por microorganismos já vinha sendo adotado pelo Battelle, desde 2016. Em 2015, o Instituto realizou um estudo encomendado pela FDA, para verificar a possibilidade de descontaminação de máscaras N95 (ou similares) para reutilização, no “evento de falta do produto em face de uma pandemia”. Como agente patógeno, foram utilizados no estudo, esporos de geobacillus stearothermophilus.

Relatório Final mostrou que, mesmo após a realização de 20 ciclos de descontaminação, as máscaras mantiveram 99% de efetividade na filtração do agente patógeno testado, sem causar degradação da tiras elásticas. Após 30 ciclos, conforme consta no relatório, as tiras das máscaras ficaram danificadas.

Recentemente, a técnica foi testada para o novo coronavírus, os resultados revelando que o “Sistema de Descontaminação de Cuidado Crítico (CCDS)”  foi efetivo na desinfecção da N95, mantendo a integridade da máscara por até 20 ciclos. A câmara pode receber até 5.000 máscaras por vez, num total de 80.000 por dia.  Máscaras contendo fluidos (sangue) do paciente não podem ser reaproveitadas.

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Câmara de descontaminação por vapor de peróxido de hidrogênio | Foto: cortesia Battelle Memorial Institute 

É também mencionado na instrução anterior do Instituto, que “organizações externas” indicaram que outros métodos de desinfecção, como calor úmido, vapor gerado por micro-ondas, e irradiação ultravioleta germicida podem danificar as máscaras. Esta informação não coincide, no entanto, com as recomendações do CDC, nem com os resultados obtidos pela equipe do Centro Médico da Universidade de Nebraska, mesmo que a técnica usando UV não possa ser reaplicada por 20 ciclos.

Na ficha técnica dedicada ao pessoal da saúde, emitida pelo Battelle Memorial Institute, e divulgada pela FDA, está mencionado que “as máscaras reutilizadas podem não ter sido efetivamente descontaminadas do SARS-CoV-2 ou outros patógenos”, o que pode representar uma forma de proteger o Instituto e a FDA, contra eventuais processos judiciais.

Na carta encaminhada pela FDA ao Battelle, é explicitado que o sistema de descontaminação não poderá ser distribuído a terceiros, o que pode implicar que os administradores estão proibidos de colaborar com outros países no detalhamento de protocolos. Entretanto, um certo volume de informações está disponível pela internet, como nos linques incluídos neste artigo.

Cabe ao ministro Mandetta analisar qual das duas metodologias de desinfecção pode ser adotada no país, ou se ambas, e solicitar que a Anvisa estabeleça com a maior brevidade os protocolos para os procedimentos. É provável que os administradores do Centro Médico da Universidade de Nebraska estejam mais abertos a estabelecer vínculos de cooperação, que os do Battelle Memorial Institute, considerando-se as restrições impostas pela FDA.

Notas do autor:

1. Como referência, 1.000 nanômetros equivalem 1 milésimo de milímetro.

2. O conceito de Segurança Nacional precisará ser urgentemente reformulado quando esta crise passar. Uma nação não pode ser colocada de joelhos pela falta de insumos básicos para enfrentar crises mundiais de saúde, que deverão ficar mais frequentes no futuro. Uma comissão de especialistas de vários setores deveria ser convocada, para analisar em que áreas o país deve ser auto-suficiente, mesmo que inserido em uma economia globalizada.

3. A 3M emitiu um comunicado sobre a desinfecção de máscaras N95 (respiradores), em que desaconselhou diversos métodos, após realizar seus próprios estudos. A empresa salientou que “não pode ficar comprometido o desempenho de filtração do respirador ou sua capacidade de vedação ao rosto do usuário”.

O autor é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense e responsável pelo Blogue Chacoalhando.

Redação

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