Esterilização em massa de mulheres e o pacto de silêncio da sociedade brasileira

Quando a chave da raça encontra a fechadura da pobreza, o Estado sente-se autorizado à expropriação da autonomia e liberdade dos corpos. Demoniza, patologiza, criminaliza, segrega, tortura e controla.

Quando a chave da raça encontra a fechadura da pobreza, o Estado sente-se autorizado à expropriação da autonomia e liberdade dos corpos. Demoniza, patologiza, criminaliza, segrega, tortura e controla.

Esterilização em massa de mulheres e o pacto de silêncio da sociedade brasileira

por Santuzza Alves de Souza, Bárbara Natália Lages Lobo e Ellen de Lima Souza

No último dia 19 de abril, o Ministério da Saúde, pela Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, divulgou no Diário Oficial da União (Edição 74, seção 1, página 235), a Portaria nº 13 – SCTIE/MS que:  “Torna pública a decisão de incorporar o implante subdérmico de etonogestrel, condicionada à criação de programa específico, na prevenção da gravidez não planejada para mulheres em idade fértil: em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS”.

Etonogestrel é um anticoncepcional introduzido por implante, com aplicador projetado para este fim, diferente das seringas comuns. O medicamento possui como reações adversas, dentre outras, infecções vaginais e de trato urinário, instabilidade emocional, humor depressivo, redução da libido, ansiedade, insônia, cefaleia, dores abdominais, menstruação irregular, dores mamárias, secreção genital, desconforto, dor no local do implante ou reação, além de aumento ou redução de peso. Também é necessário procedimento médico específico para a retirada do implante.

Embora os efeitos acima já sejam conhecidos de todas as mulheres que em algum momento fizeram ou fazem uso de anticoncepcionais, desperta a atenção a ausência de qualquer informação na portaria das motivações para a decisão de aplicá-lo nas mulheres ali descritas, a forma de execução das medidas previstas, bem como a sua elaboração sem a participação dos movimentos sociais integrados, relacionados ou representados pelos públicos-alvo desta política sanitária. Revela-se, assim, a intencionalidade de esterilização da pobreza, esterilização racial e esterilização da existência das mulheres atingidas pela Portaria.  

A ausência de participação, bem como o direcionamento da política pública a mulheres entrecortadas por diversos fatores de discriminação e estigma, reiteradamente violadas pelo Estado e pela sociedade em sua dignidade, reforça o caráter eugênico, racista e higienista da pretensa medida. Viola direitos humanos e fundamentais, sexuais e reprodutivos, como a integridade física e moral, a autodeterminação e o direito à saúde, sendo manifesta a sua inconstitucionalidade também por violação do princípio/direito de igualdade.

O estrondoso silêncio da mídia, movimentos feministas e de mulheres sobre o assunto é característico da naturalização das desigualdades, pois, no Brasil aprendemos a compreender diferenças como sinônimo de desigualdade, assim, as políticas desumanas e ilegais são articuladas por algozes, com roupagens neopentecostais e “pró-vida”, que seguem “passando boiadas” por cima de nossos corpos, almas, mentes e natureza. São “boiadas” que defecam sobre uma expectativa de democracia que nascia no Brasil, mas que nunca se consolidou. No centro desse debate localizamos a chave da raça, configurando-se como política racista – pois a maioria do público-alvo são mulheres negras (em situação de rua, trabalhadoras sexuais e privadas de liberdade). A portaria revela-se, portanto, totalitária, afinal, com racismo não há democracia, como já anunciado por Lélia Gonzales e Abdias do Nascimento.

Quando a chave da raça encontra a fechadura da pobreza, o Estado sente-se autorizado à expropriação da autonomia e liberdade dos corpos. Demoniza, patologiza, criminaliza, segrega, tortura e controla. Quando pode, também mata. Mata também quando não pode. Eis os efeitos da necropolítica, a caça às bruxas da contemporaneidade. Mais graves que seus efeitos são os efeitos do seu silêncio ou de sua naturalização.  

O mesmo silêncio dos quatro séculos de escravidão, que reverbera no silêncio sobre as mortes das crianças como Ágatha, João Pedro, Miguel Otávio, Emily Victória e Rebeca Beatriz e no descaso pelo caso do desaparecimento de Fernando Henrique, Alexandre da Silva e Lucas Matheus em Belford Roxo. Essas crianças representam inúmeras outras que são vítimas de políticas que se estruturam para a manutenção das desigualdades e incidem em um genocídio da população negra, nesse caso o termo adequado seria infanticídio de crianças negras, é a expressão da necropolítica sobre os corpos negros. Na Portaria em análise, já encampada antes mesmo da gestação.   

Ao naturalizar que a vida negra não importa ignorando e silenciando as atrocidades, a portaria em tela, anuncia um aprofundamento nesse genocídio, retirando o direito de nascer, afinal tais vidas não importam, portanto não devem existir. São políticas de controle de corpos, que recebem a chancela de grande parte da população brasileira que não se manifesta sobre essa portaria, por desconhecimento do seu teor ou porque não se indigna quando o corpo violado não é o seu próprio. Pelo contrário, encontra adeptos e adeptas, que se manifestam “sem querer” sobre a possibilidade/desejo de utilização desses corpos para experimentos científicos e controle, para “servirem para alguma coisa”.

Esses corpos já servem para alguma coisa. Servem para que pessoas desumanas se sintam superiores aos “marginais e párias”, servem para justificar e descarregar o ódio social ao gênero, à cor, à etnia, à pobreza e à liberdade, servem para a opressão direcionada, para o cercamento, a mutilação e matança toleradas. Tais utilidades são enfrentadas com esforços desmedidos, resistentes, insurgentes. Manifestações de vida. Inspira Conceição Evaristo: “Combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”.     

Como a capacidade de re-existência inverteu as políticas higienistas do século XIX e a população de mulheres e negra no Brasil é maioria absoluta, tentam roubar as nossas existências, pois nem toda a brutalidade e sadismo da colonialidade do poder conseguiu controlar nossos corpos, e certamente nossas existências incomodam e anunciam o fracasso do sistema mundo eurocêntrico-cristão-patriarcal-branco-adultocêntrico. Por isso, uma portaria como essa que tenta trazer um ar de “modernidade”, assinada por um “braço tecnológico” do Ministério da Saúde, simplesmente imita políticas atávicas de séculos passados. A estratégia combina com uma ciência terraplanista, pela ausência de qualquer elemento que a justifique, pelos direitos que viola, pelas vidas que nega.

Entretanto, assim como a terra não se tornará plana, para agradar os criacionistas, o silêncio não se imporá, sendo urgente o enfrentamento com vida, coragem e ação, das políticas fúnebres estatais endereçadas às mulheres e crianças. Inescusável, urgente e necessária a atuação das instituições neste aspecto, notadamente, o Ministério Público, em sua função constitucional de defesa de direitos fundamentais para a proteção de direitos difusos e coletivos.

O silêncio compactuante, concorde e tolerante com a Portaria nº 13/2021 endossa política discriminatória contra mulheres, reforça a discriminação, o estigma e a violação, violenta e vulnerabiliza. Se não mata, esteriliza. Neutraliza a existência. Atentas. Devemos estar sempre atentas.

Santuzza Alves de Souza – Trabalhadora Sexual e estudante de Sociologia.

Profa. Dra. Bárbara Natália Lages Lobo –  professora e escritora.

Profa. Dra. Ellen de Lima Souza – EFLCH-UNIFESP

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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