Nota do Ministério da Saúde é um ataque à Lei da Reforma Psiquiátrica, por Ana Laura Prates Pacheco

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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A ação pretendida confronta também as diretrizes adotadas pela Saúde Mental do governo do estado de São Paulo

Reprodução

Jornal GGN – A OAB-SP, através da Comissão de Direitos Humanos, junta-se aos que temem os retrocessos na Política de Saúde Mental preconizada pelo governo federal. Tais medidas confrontam a legislação vigente, ampliando as internações e manicômios. Esses locais sempre foram palcos constantes de violações dos Direitos Humanos.

Na tentativa de reforçar o alerta, apresentam um artigo feito para a OAB, pela dra. Laura Prates Pacheco, que incentiva a resistência a essa ação do Ministério da Saúde. A ação pretendida confronta também as diretrizes adotadas pela Saúde Mental do governo do estado de São Paulo.

Leia o artigo a seguir.

da OAB-SP

Nota do Ministério da Saúde é um ataque à Lei da Reforma Psiquiátrica

Dra. Ana Laura Prates Pacheco

No último dia 04/02/2019 recebemos, com espanto e indignação, a Nota Técnica nº 11/2019 publicada pela Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde.

A Nota afirma que pretende uma “reforma do modelo de assistência em saúde mental, que necessitava de aprimoramentos, sem perder a essência de respeito à Lei 10.216/01”. Ora, ao lê-la integralmente o que verificamos é um ataque à essência daquela lei, que foi sancionada no ano de 2001, 12 anos depois de ter dado entrada no Congresso Nacional, em 1989, através do então deputado federal Paulo Delgado. A própria lei 10.216/01, entretanto, já foi fruto de um longo debate iniciado nos anos 1980, envolvendo diversos atores da sociedade, trabalhadores da área da Saúde e mais especificamente da Saúde Mental, bem como usuários e familiares, dando início aos movimentos pela Reforma Psiquiátrica em nosso país.

Esses debates, por sua vez, refletiram, por um lado, toda a longa luta pela redemocratização do Brasil, incluindo os avanços da Constituição de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e, por outro, os grandes movimentos antimanicomiais ocorridos na Itália e na França nos anos 1970. Trata-se, portanto, de uma lei que contempla amplas e complexas discussões, fundamentada em décadas de experiências nacionais e internacionais, e com abrangente e rigoroso respaldo teórico, clínico e político. Como em todos os casos envolvendo um campo de tamanha variedade e complexidade, ela reflete um pacto consensual mínimo entre os diversos atores e abordagens envolvidos na área da saúde mental, e é exatamente nesse ponto que reside seu avanço e relevância, refletindo uma enorme conquista democrática para a sociedade brasileira.

Esse consenso mínimo, conquistado a partir de grande esforço coletivo, diz respeito exatamente ao principal ponto que está sendo atacado por essa Nota Técnica, qual seja, a extinção progressiva dos manicômios no Brasil. É importante ressaltar que os hospitais psiquiátricos, sustentados por verbas públicas, foram durante anos praticamente o único modelo de “tratamento” de transtornos mentais em nosso país. Eles se converteram em verdadeiros asilos e depósitos humanos, nos quais as pessoas eram mal tratadas, esquecidas e muitas vezes torturadas e submetidas a situações degradantes e desumanas. No livro “Holocausto brasileiro” (2013), Daniela Arbex expôs as atrocidades ocorridas no Hospital Colônia de Barbacena, no qual foram assassinadas 60 mil pessoas. Infelizmente, não se trata de um caso isolado. Qualquer pessoa interessada pode ter acesso a uma ampla literatura, filmes, teses acadêmicas, etc. que relatam, testemunham e analisam a verdadeira e terrível história das internações psiquiátricas no Brasil. Para que essa extinção progressiva de fato ocorresse e fosse sustentável foi necessária sua substituição por diversos novos aparelhos e dispositivos, constituindo a rede de atenção psicossocial (RAPS). Ora, esse é o principal ponto de inadmissível retrocesso dessa Nota, ao afirmar que: “não há mais porque se falar em “rede substitutiva”, já que nenhum Serviço substitui outro.” E ainda que: “a desinstitucionalização não será mais sinônimo de fechamento de leitos e de Hospitais Psiquiátricos”. É importante destacar que a Nota, ao mesmo tempo em que afirma que as internações não devem servir de moradia, comtempla a possibilidade de tratamentos com duração superior a 90 dias.

Para pessoas leigas ou desavisadas, essas afirmações poderão ser compreendidas como uma ampliação das formas de tratamento. Não são. A RAPS atual já prevê a oferta de leitos psiquiátricos em hospitais gerais para casos agudos, e qualquer argumento de mau funcionamento nos aparelhos públicos de saúde – que de resto, infelizmente, não é uma particularidade da saúde mental – deve servir para aprimorar, aumentar o número de profissionais e remunerá-los melhor, oferecendo formação permanente, ampliar as modalidades de atendimento clínico ambulatorial e de inclusão possível no laço social, abrangendo a família e a sociedade, promover campanhas de informação contra o preconceito e a estigmatização daqueles que sofrem de transtornos mentais mais severos, etc. Em hipótese alguma esse argumento serviria de justificativa para retrocessos anacrônicos, excluindo o debate com profissionais, usuários e a sociedade em geral. Aliás, as justificativas da Nota são tão frágeis, contraditórias e sem fundamento que caberia, ainda, nos perguntarmos que outros interesses estariam envolvidos. Quem ganharia com o retorno dos hospitais psiquiátricos? Nessa mesma direção, com tamanho déficit e precariedade nos serviços públicos de saúde, reconhecidos na própria Nota, chama a atenção que o Ministério da Saúde passe a financiar a compra de equipamento para Eletroconvulsoterapia (ECT).

Por outro lado, é gravíssima e sem qualquer fundamento lógico ou científico a afirmação de que “problemas na condução da antiga Política Nacional de Saúde Mental acabou concorrendo também para o aumento das taxas de suicídio, aumento de pacientes com transtornos mentais graves na condição de moradores de rua, aumento e proliferação das cracolândias, aumento da mortalidade de pacientes com transtornos mentais e dependência química, principalmente de crack, etc.”. É no mínimo irresponsável e leviano atribuir à política de saúde mental comprometida com o fim dos manicômios a “concorrência” para um suposto aumento de problemas tão diversos e com múltiplas causas físicas, psíquicas, culturais, sociais e econômicas. E isso sem o respaldo de qualquer pesquisa que comprove tal “concorrência”.

Outro ponto alarmante da Nota é o que diz respeito a crianças e adolescentes, ferindo de modo gritante o Estatuto da criança e do adolescente (ECA) ao afirmar que: “não há qualquer impedimento legal para a internação de pacientes menores de idade em Enfermarias Psiquiátricas de Hospitais Gerais ou de Hospitais Psiquiátricos. A melhor prática indica a necessidade de que tais internações ocorram em Enfermarias especializadas em infância e adolescência. No entanto, exceções à regra podem ocorrer, sempre em benefício dos pacientes”. Qual exceção justificaria a internação de crianças e adolescentes junto com adultos em um manicômio?

Por todas essas razões, é fundamental que todos aqueles implicados da sustentação democrática e humana dos tratamentos de saúde pública de modo geral, e especificamente da saúde mental: psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, terapeutas ocupacionais e outros possam informar a população a respeito do risco de imenso e trágico retrocesso e sustentarem, juntos, uma resistência a essa Nota, oferecendo, em seu lugar, a continuidade dos debates visando a construção coletiva permanente de uma sociedade que possa lidar de modo inclusivo e ético com o sofrimento psíquico, levando em conta o sujeito em sua ampla complexidade.

Dra. Ana Laura Prates Pacheco é Psicanalista AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/Fórum de São Paulo. Pesquisadora do LABEURB, UNICAMP.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

4 Comentários

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  1. Todos sabem o que realmente está envolvido. Os tais manicômios eram fonte de elevada renda para os donos. Bastava um credenciamento junto ao governo e depois sair à caça de pessoas para serem internadas. Depois, mantê-las presas nas piores condições (mais baratas), longe dos olhos de todos, receber os pagamentos do governo (intermediados por corrupção e políticos) e lucrar horrores para sempre. É a repetição da receita.

  2. olha essas novas diretrezes nas politicas publicas em saúde mental, só tem um objetivo comum, contemplar o capital, ( donos dos hospícios e pseudo pastores que ajudaram em muito eleger esse governo, não cabe discutir com essa gente
    o retrocesso que essas medidas vão causar, cabe sim.mobilização da sociedade como um todo, nos
    Sentido de denunciar esse descalabro internacionalmente nos órgãos de direitos humanos, alguns profissionais que trabalham na
    Saúde mental estão limitados em externar publicamente suas opiniões por motivo óbvios, mais estão totalmente. comprometidos com a luta e a resistência dos usuários que tem a alma livre, e não politica.

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