O inacreditável baixo escalão que se tornou guru da cloroquina para Bolsonaro

O Ministério Público Federal no Amazonas acusou Angotti de improbidade administrativa, por forçar os trabalhadores de saúde a prescrever hidroxicloroquina

Helio Angotti Neto, chefe da área de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, em entrevista coletiva em Brasília, 27 de junho de 2020. Carolina Antunes / Presidência da República via REUTERS

Da Reuters

O homem por trás da busca do Brasil por curas milagrosas de COVID-19

Gabriel Stargardter

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro, falando à nação no mês passado em um vídeo na mídia social, elogiou o que há de mais recente em uma série de drogas não convencionais que, segundo ele, podem aliviar a crise do COVID-19 no país.

Bolsonaro – cético em relação à vacinação e promotor de tratamentos desacreditados como a hidroxicloroquina – disse que essa nova droga, a proxalutamida, “logo estará disponível para todo o Brasil”. Ele convidou um funcionário pouco conhecido do Ministério da Saúde, Helio Angotti, para expandir sua promessa.

Angotti, um oftalmologista sem experiência epidemiológica, citou um estudo doméstico da Proxalutamida mostrando uma redução de 92% no risco de mortalidade entre pacientes com COVID-19 hospitalizados. Foi uma afirmação dramática em meio a uma luta global para encontrar tratamentos eficazes. Ele disse que tem como objetivo “chegar à população brasileira o mais rápido possível”.

Mas o estudo – coautorizado por um consultor contratado por Angotti – não foi revisado por pares ou publicado, além de uma apresentação superficial dos resultados que os autores divulgaram em uma entrevista coletiva em março. O medicamento não tem aprovação regulatória e não está disponível para venda.

Alexandre Cavalcanti, diretor do Instituto de Pesquisa HCor de São Paulo, disse que a eficácia alegada no estudo que Angotti citou excede em muito qualquer tratamento com COVID-19 verificado. consulte Mais informação

“Não acredito”, disse Cavalcanti, co-autor de um grande estudo, publicado no ano passado no New England Journal of Medicine, que descobriu que a hidroxicloroquina era essencialmente inútil para COVID-19.

Como comparação, Cavalcanti citou que o esteróide comumente usado, a dexametasona, demonstrou reduzir as mortes em até um terço em pacientes com COVID-19 grave. A empresa chinesa de biotecnologia que fabrica a Proxalutamida, Kintor Pharmaceutical Limited 9939.HK, viu suas ações subirem ao divulgar o estudo brasileiro e relatou outros avanços, informou a Reuters em uma matéria relacionada hoje.

A aparição com Bolsonaro foi o último sinal da crescente influência de Angotti em meio a uma pandemia que matou cerca de 430.000 brasileiros. Funcionários atuais e antigos do Ministério da Saúde dizem que o funcionário de nível médio silenciosamente acumulou poder ao elevar o que eles dizem ser ciência questionável para apoiar as convicções de Bolsonaro: que as máscaras são inúteis, os bloqueios são perigosos, as vacinas não são balas de prata e outras curas milagrosas estão disponíveis ou logo será.

Angotti se recusou a comentar esta história. O gabinete de Bolsonaro e o Ministério da Saúde não responderam aos pedidos de comentários.

Carlos Wambier, um dos co-autores do estudo brasileiro da Proxalutamida, reconheceu que faltava revisão por pares, mas disse que suas descobertas eram “realmente muito encorajadoras”. Ele considerou seus críticos “mais preocupados com política do que com resultados científicos”.

“Se o artigo for publicado, acredito que qualquer governo do mundo prestará atenção”, disse Wambier, professor de dermatologia da Brown University especializado em procedimentos cosméticos, como injeções de Botox e remoção de tatuagens.

A Reuters analisou documentos internos do ministério e entrevistou mais de duas dúzias de funcionários, cientistas e políticos atuais e antigos para traçar a ascensão de Angotti no governo Bolsonaro. Angotti assumiu no ano passado a chefia do departamento de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Entre outras atribuições, a SCTIE decide quais medicamentos – sem incluir as vacinas – o vasto sistema de saúde pública do Brasil adquire.

As fontes disseram que o foco de seu departamento em remédios para coronavírus não comprovados, como a hidroxicloroquina, junto com sua oposição a máscaras e bloqueios, contribuíram para a disseminação explosiva da variante infecciosa P1, que se originou no ano passado em Manaus, capital do estado do Amazonas, e fez o Brasil um dos piores pontos de acesso do mundo.

O Ministério Público Federal no Amazonas acusou Angotti de improbidade administrativa, em um processo civil que pode resultar em multas ou perda de emprego, por forçar os trabalhadores de saúde a prescrever hidroxicloroquina. Angotti não quis comentar sobre essa acusação.

Angotti também está sob escrutínio em uma investigação parlamentar de alto nível sobre a resposta à pandemia de Bolsonaro. O Senado vem interrogando funcionários do governo em audiências públicas há cerca de duas semanas, e três senadores pediram formalmente que Angotti testemunhasse perante o comitê de investigação, que ainda não considerou seus pedidos. O comitê produzirá conclusões por escrito, mas não tem poder para punir funcionários do governo.

A ascensão de Angotti revela o papel central que os tratamentos não comprovados continuam a desempenhar no Brasil. Também exemplifica a composição não convencional do governo de Bolsonaro, uma coalizão de soldados, defensores do mercado livre e conservadores sociais.

“Hélio é a cara daquele grupo anticientífico que assumiu o controle do ministério”, disse Adriano Massuda, que chefiou o departamento da SCTIE em 2015. “É a ala ideológica do governo Bolsonaro que agora dá ordens no Ministério da Saúde”.

Os esforços de Angotti para apoiar a estratégia de pandemia do Bolsonaro surgiram no momento em que o governo – agora em seu quarto ministro da saúde da pandemia – foi amplamente criticado pelo atraso no lançamento da vacina no Brasil. Enquanto outras nações lutavam para fechar acordos com empresas farmacêuticas, o governo de Bolsonaro demorou a garantir vacinas para os 210 milhões de brasileiros. Cerca de 15% dos brasileiros já receberam pelo menos uma dose, em comparação com 36% no vizinho Uruguai, 46% nos Estados Unidos e entre 20% e 35% em muitos países europeus, de acordo com o Our World in Data, uma organização sem fins lucrativos. organização de pesquisa de serviço.

TRÊS CONSULTORES E UM MEMO DE PESQUISA

Angotti lecionou em uma universidade no sudeste do Brasil antes de ingressar no Ministério da Saúde em 2019, quando Bolsonaro assumiu o cargo. Ele atuou como gerente de educação em saúde antes de ser promovido em junho passado. Como Bolsonaro, Angotti é um seguidor declarado do esotérico filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, que promove falsas teorias de conspiração, incluindo a alegação de que Pepsi usava células de fetos abortados como adoçante.

Bolsonaro, que tomou hidroxicloroquina quando contraiu o vírus em julho passado, questionou a segurança e a eficácia das vacinas e se recusou a tomar a vacina. Angotti não quis comentar à Reuters se considera as vacinas eficazes.

Em novembro do ano passado, Angotti contratou e designou três consultores para encontrar evidências para apoiar as alegações médicas de Bolsonaro, de acordo com um memorando de 19 de novembro que Angotti escreveu. O memorando, revisado pela Reuters, não foi publicado anteriormente.

Entre os consultores estava Ricardo Zimerman, infectologista com cerca de 60.000 seguidores no Instagram, onde regularmente posta notícias sobre tratamentos experimentais do COVID-19 e fotos dele mesmo bombeando ferro. Os outros dois eram Bruno De Souza, professor de administração da Universidade Federal de Pernambuco e também doutorado em psicologia; e Rute Costa, pesquisadora médica.

Os consultores não responderam aos pedidos de comentários.

O memorando de Angotti de 19 de novembro instruía os consultores a “listar e criticar os protocolos e artigos relacionados às diferentes propostas de imunização”. Os consultores também deveriam atualizar o protocolo do ministério para o tratamento do COVID-19 com um coquetel de antimaláricos, como a hidroxicloroquina, junto com outros medicamentos. Angotti disse-lhes para adicionar “as terapias propostas mais recentes”, mostrando como podem “salvar muitas vidas”.

O memorando também instruiu os consultores a produzirem uma “avaliação abrangente” dos bloqueios, enfocando os “impactos sociais e econômicos do isolamento social”. Em março, os consultores foram coautores de um estudo que foi além de examinar os impactos do isolamento social e concluíram que os bloqueios estavam “associados” ao surgimento da variante P1 em Manaus, afirmando que o vírus havia sofrido mutação em residências confinadas.

No início de dezembro, os consultores chocaram alguns funcionários na mesa de operações de coronavírus do ministério com uma apresentação sobre por que as máscaras não funcionam para controlar a propagação do vírus, de acordo com duas pessoas presentes. Outros ficaram menos surpresos: quando Bolsonaro visitou o balcão em outubro, as autoridades foram orientadas a não usar máscaras, de acordo com uma pessoa presente.

HIDROXICLOROQUINA AO SALVAMENTO

Enquanto a equipe de Angotti buscava evidências de tratamentos não comprovados, a variante P1 explodiu em Manaus, respondendo por três quartos dos casos da cidade no final de janeiro, de acordo com um estudo da Fiocruz, um instituto biomédico financiado pelo governo federal. Os hospitais da cidade rapidamente ficaram sem oxigênio; a variante logo se espalhou pelo Brasil.

O Ministério da Saúde enviou pelo menos 120.000 pílulas de hidroxicloroquina para o estado do Amazonas e levou 12 profissionais médicos para a cidade de Manaus para pressionar os profissionais de saúde a usarem antimaláricos. Zimerman, De Souza e Costa faziam parte do grupo, segundo nota enviada em 23 de fevereiro por um dos colegas de Angotti ao Ministério Público Federal no Amazonas, em resposta a suas indagações sobre a forma como o ministério está lidando com a crise de Manaus. A SCTIE de Angotti financiou suas viagens, diz o comunicado.

O ministério também implantou um aplicativo de telefone de curta duração que pretendia ajudar os profissionais médicos a diagnosticar COVID-19 com um questionário de sintomas – depois os instruiu a prescrever antimaláricos como a hidroxicloroquina. O aplicativo foi baseado em uma ferramenta de diagnóstico que os consultores da Angotti ajudaram a desenvolver.

Menos de duas semanas depois de seu lançamento em janeiro, o Conselho Federal de Medicina (CFM), que licencia e regulamenta os profissionais médicos, pediu ao Ministério da Saúde que desative o aplicativo por alegar “validação científica para medicamentos sem reconhecimento internacional”. O conselho disse que o aplicativo estava disponível para pessoas que não eram médicas e que as encorajava a se automedicar. O ministério fechou o aplicativo.

O foco na hidroxicloroquina na crise de Manaus foi emblemático da resposta fracassada do governo Bolsonaro à pandemia, disse Felipe Naveca, um dos primeiros cientistas a estudar a variante P1 e vice-diretor de pesquisa do instituto biomédico Fiocruz Amazônia, posto avançado da organização em Manaus.

“A escala do problema nunca foi levada a sério”, disse ele. “Então eles se concentraram em uma solução milagrosa que não existe.”

Em meio ao caos em Manaus, um dos consultores de Angotti, Zimerman, juntou-se a outros pesquisadores para lançar o estudo da Proxalutamida, a droga que Bolsonaro e Angotti viriam a divulgar no vídeo nas redes sociais. No dia 10 de março, poucas semanas após o início do estudo, os autores convocaram uma coletiva de imprensa em Manaus para anunciar seus resultados.

“Como pesquisador, posso confirmar que nunca vi nada parecido – e conduzo muitos testes”, disse Cadegiani, um dos co-autores do estudo. “Não estamos brincando.”

Cadegiani não quis comentar as críticas ao estudo.

Cavalcanti, o cientista paulista, disse que a apresentação dos achados do estudo ainda não publicado não atendeu aos padrões dessa pesquisa.

“Esse estudo é amador”, disse ele. “A forma como foi anunciado, como os dados foram apresentados, esses caras são amadores.”

Nossos padrões: Princípios de confiança da Thomson Reuters.

Luis Nassif

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