Procuradora alerta para ‘pacote do veneno’ que tramita no Congresso

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Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Do Sul 21

‘Temos um pacote do veneno tramitando no Congresso Nacional’, alerta procuradora
 
Marco Weissheimer
 
Em março de 2015, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), publicou um artigo que sistematizou pesquisas sobre o potencial cancerígeno de cinco ingredientes ativos de agrotóxicos realizadas por uma equipe de pesquisadores de 11 países, incluindo o Brasil. Baseada nestas pesquisas, a agência classificou o herbicida glifosato e os inseticidas malationa e diazinona como prováveis agentes carcinogênicos para humanos e os inseticidas tetraclorvinfós e parationa como possíveis agentes carcinogênicos para humanos. Destes, a malationa, a diazinona e o glifosato são amplamente usados no Brasil. Herbicida de amplo espectro, o glifosato é o produto mais usado nas lavouras do Brasil, especialmente em áreas plantadas com soja transgênica.
 
A partir desse levantamento, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) divulgou uma nota oficial chamando a atenção para os riscos que a exposição ao glifosato e a outras substâncias representam para a saúde dos brasileiros. Dentre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos de agrotóxicos, o Inca cita, além do câncer, infertilidade, impotência, abortos, malformações fetais, neurotoxicidade, desregulação hormonal e efeitos sobre o sistema imunológico. O Inca e a Organização Mundial da Saúde estimaram que, nos próximos cinco anos, o câncer deve ser a principal causa de mortes no Brasil.

 
O Inca também manifestou preocupação com o fato do Brasil ainda realizar pulverizações aéreas de agrotóxicos, que ocasionam dispersão destas substâncias pelo ambiente, contaminando amplas áreas e atingindo populações. E criticou a isenção de impostos que o país continua a conceder à indústria produtora de agrotóxicos, além do fato de o Brasil permitir o uso de agrotóxicos já proibidos em outros países. Na avaliação do instituto, o modelo de cultivo com o uso intensivo de agrotóxicos gera grandes malefícios, “como poluição ambiental e intoxicação de trabalhadores e da população em geral”.

Apesar de todas essas advertências, estão tramitando no Congresso Nacional que propõe desde a flexibilização de instrumentos de fiscalização e controle sobre o uso de agrotóxicos até a mudança da designação dos mesmos para “aliviar a carga negativa” da expressão. “É um verdadeiro pacote do veneno”, diz a procuradora da República, Ana Paula Carvalho de Medeiros. Em entrevista ao Sul21, ela fala dos riscos que esses projetos trazem para a saúde da população e o meio ambiente. O mais perigoso de todos, destaca a procuradora, é o do deputado Covatti Filho (PP-RS), que altera toda a normatização e revoga a lei de 1989, criando uma legislação completamente diferente. Covatti Filho é o autor da proposta para que os agrotóxicos passem a ser chamados de “defensivos fitossanitários”.

Sul21: Há uma série de projetos tramitando no Congresso Nacional propondo a flexibilização de várias leis ambientais. Uma das áreas mais visadas é a da legislação de controle do uso de agrotóxicos. Como você definiria o quadro atual envolvendo esse tema?

Ana Paula Carvalho de Medeiros: A lei federal que trata dos agrotóxicos, de 1989, embora tenha algumas falhas, é considerada uma legislação relativamente completa e avançada. Mesmo com todos os dispositivos de proteção ao meio ambiente e à saúde que ela contém, não temos conseguido conter o uso indiscriminado e abusivo de agrotóxicos no Brasil, que é o maior consumidor mundial desses produtos, com um imenso custo social e ambiental. Apesar desse quadro, há vários projetos de lei tramitando no Congresso que flexibilizam bastante essa legislação.

Um deles merece atenção especial, o PL 3200/2015, do deputado Covatti Filho (PP-RS), que altera toda a normatização e revoga a lei de 1989, criando uma legislação completamente diferente. Atualmente, ele está apensado ao PL 6299/2002, de Blairo Maggi. Há vários projetos tramitando juntos, constituindo o que está sendo chamado de pacote do veneno. O PL 3200 é o mais preocupante, pois altera toda a legislação.

Uma questão muito importante da nossa legislação vigente sobre agrotóxicos é que ela submete o registro dos produtos a um órgão ambiental (Ibama), a um órgão da Saúde (Anvisa) e ao Ministério da Agricultura. Pela proposta do deputado Covatti Filho, a avaliação será feita apenas por um órgão novo a ser criado, a CTNFito, nos moldes da CTNBio, com 23 membros nomeados pelo ministro da Agricultura. Deste total, um integrante será indicado pelo Ministério da Saúde, um pelo Meio Ambiente e um por algum órgão de proteção à saúde do trabalhador. A participação da Saúde e do Meio Ambiente na avaliação desses produtos vira algo pro forma, sem peso para alterar nada.

“O projeto refere os Estados Unidos como um exemplo a ser seguido, mas não copia coisas boas que existem na legislação norteamericana”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

É interessante que, na justificativa do projeto, cita como exemplo a ser seguido os Estados Unidos, onde há um só órgão que avalia os produtos. Ele só esqueceu de dizer que, nos Estados Unidos, quem faz isso é o órgão ambiental. Um pequeno detalhe. E no Canadá também é um só órgão, que é da área da saúde. O projeto refere os Estados Unidos como um exemplo a ser seguido, mas não copia coisas boas que existem na legislação norteamericana como o fato de que, lá, os produtos têm registro de validade de dez anos. Na Comunidade Europeia, esse prazo é de cinco anos. Já aqui no Brasil esse prazo é indeterminado. Uma vez obtido o registro, o produto está liberado. Se ocorrer um alerta de um possível perigo, abre-se um processo de reavaliação toxicológica. Há vários processos abertos há anos na Anvisa que não são concluídos, como é o caso do Paraquat que tem um processo aberto há quase dez anos.

Sul21: Esse produto chegou a ser proibido no Rio Grande do Sul, não?

Ana Paula Carvalho de Medeiros: Sim. Em função dessa restrição da lei estadual a produtos proibidos em seus países de origem, ele chegou a ser proibido, mas depois foi liberado pela Justiça. O Paraquat está proibido até na China. Eles não podem usar, mas podem exportar para outros países.

Sul21: Como está a tramitação desse projeto?

Ana Paula Carvalho de Medeiros: Foi criada uma comissão especial para agilizar a sua tramitação e foram realizadas várias audiências públicas que não foram muito divulgadas e reuniram pouquíssima gente. Esse projeto também propõe a alteração da designação dos agrotóxicos. O deputado propõe que, ao invés de “agrotóxicos”, essas substâncias passem a ser chamadas de “defensivos fitossanitários”, para afastar a carga negativa. Além disso, ele altera alguns conceitos importantes da legislação atual. Pela maneira como conceitua os “defensivos fitossanitários”, os herbicidas ficam fora dessa categoria. Assim, produtos como o 2,4 D, o Paraquat e o Glifosato, atualmente os mais problemáticos e alvo de maiores controvérsias, ficariam isentos de registro.

Sul21: O que significa exatamente “isentos de registro”?

 Ana Paula Carvalho de Medeiros: Para produzir e comercializar um produto é preciso ter um registro, que passa pela avaliação de um órgão ambiental, de um órgão da saúde e de um agronômico. Segundo o que propõe esse projeto, um herbicida não precisaria mais passar por esse trâmite para ser utilizado. Ele retira as prerrogativas de fiscalização do Ibama, da Anvisa e dos estados e também acaba com a possibilidade de estados e municípios estabelecerem legislações mais restritivas na área ambiental, como é o caso do Rio Grande do Sul.

A legislação gaúcha foi precursora da lei federal e prevê, entre outras coisas, que não podem ser usados no Rio Grande do Sul agrotóxicos que estejam proibidos em seu país de origem. O projeto de Covatti Filho também veta esse tipo de restrição. Os estados não poderão legislar de maneira mais protetiva ao meio ambiente, como ocorre hoje.

Sul21: O Ministério Público Federal tem alguma possibilidade de intervir nesse processo para tentar barrar essa alteração da legislação?

Ana Paula Carvalho de Medeiros: Por enquanto, não, pois se trata de um projeto de lei, mas caso ele seja aprovado, poderá ingressar com uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade), pois ele fere a Constituição em muitos dispositivos, inclusive nesta questão do impedimento de estados e municípios terem uma legislação ambiental mais protetiva.

Sul21: O Ministério Público tem recebido denúncias sobre contaminação com agrotóxicos?

Ana Paula Carvalho de Medeiros: Chega até nós pelo Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos. Temos recebido muitas denúncias nas audiências públicas promovidas pelo Fórum. A última foi realizada em Osório e a próxima será em Tupanciretã. Nós só atuamos quando há um órgão federal envolvido. Uma de nossas ações está relacionada ao receituário agronômico do CREA, com o objetivo de terminar com a chamada receita de balcão. Em princípio, para você adquirir um agrotóxico, é preciso ter uma receita assinada por um profissional habilitado pelo CREA, o que nem sempre acontece.

As denúncias que recebemos nas audiências públicas se referem principalmente a problemas envolvendo a pulverização aérea que atinge alvos que não deveria. Em razão disso, o Ministério Público começou a desenvolver um trabalho bem forte neste tema em defesa de uma regulamentação mais efetiva. Há vários órgãos encarregados de fiscalizar a pulverização aérea hoje, como Ministério da Agricultura, Fepam e Anac, mas eles não têm instrumentos adequados para realizar esse trabalho. A Anac, por exemplo, fiscaliza a atuação das empresas de pulverização por meio do preenchimento de um diário de bordo. No Fórum, nós fizemos um projeto de monitoramento eletrônico das aeronaves nos moldes do que existe hoje nas embarcações pesqueiras. Apresentamos esse projeto para a Anac e está havendo uma pressão muito grande contra ele. Ele já passou pelas comissões técnicas e estamos dependendo hoje de uma direção da diretoria da agência. Também estamos começando a trabalhar com a pulverização terrestre que não tem regulamentação alguma. O Ministério Público pretende fazer uma audiência pública sobre esse tema em agosto.

Sul21: Qual o encaminhamento que vem sendo dado às denúncias que são levadas às audiências do Fórum?

 

 Ana Paula Carvalho de Medeiros: Há algumas questões que aparecem praticamente em todas as audiências públicas. Além da questão da morte de abelhas,há relatos de contaminação de lavouras orgânicas por pulverizações de  agrotóxicos que são feitas em áreas próximas. O problema é que, pela falta de estrutura dos órgãos responsáveis pela fiscalização, não tem como se chegar ao autor dessa contaminação. Por isso é importante o monitoramento. Além de permitir a identificação do responsável por algum dano, só o fato de a pessoa saber que está sendo monitorada já ajuda a impor alguns limites. O sistema de monitoramento não permite saber que horas foram acionados os bicos pulverizadores, mas pela velocidade e altura da aeronave é possível saber que ela está pulverizando.

Outro tema com o qual temos trabalhado bastante é o das notificações de casos de contaminações e doenças provocadas por agrotóxicos. Segundo uma estimativa da Organização Mundial da Saúde, para cada caso notificado existem outros 50 que não são notificados. Esse déficit de notificação impede a construção de políticas públicas adequadas que tenham conhecimento da real dimensão do problema. Por meio de uma proposta levantada pelo Fórum, a Secretaria Estadual da Saúde e o Conselho Regional de Medicina estão agindo sobre essa questão. A Secretaria da Saúde fez um trabalho maravilhoso com vídeo-aulas disponibilizadas para todo o Estado e promovendo caravanas pelo interior. O Fórum produziu um cartaz para colocar em todas as unidades de saúde. Conseguimos também um espaço no seminário do Conselho dos Secretários Municipais da Saúde para fazer um trabalho de sensibilização sobre a importância desse tema. Esse conjunto de iniciativas começa a dar resultados. Do ano passado para cá, já temos um incremento do número de notificações. Ainda não chegou nem perto do que se imagina que seja a realidade, mas já é um avanço.

Temos também um déficit de laboratórios para atender pessoas vítimas de intoxicação. O Lacen (Laboratório Central de Saúde Pública do Rio Grande do Sul) tem um equipamento muito sofisticado, mas sofre com a falta de material. A Anvisa deveria adquirir os padrões analíticos necessários para estes exames e distribuir para toda a rede de laboratórios. A Anvisa é muito importante neste processo e não pode ser excluída de forma alguma, como quer o deputado Covatti Filho. Em 2013, uma auditoria do Tribunal de Contas da União na Anvisa constatou uma carência muito grande de técnicos para trabalhar com avaliação toxicológica.

O Fórum tem três anos de vida e já reúne 57 instituições, cujos representantes se dividem por várias comissões que trabalham com questões relacionadas aos impactos negativos dos agrotóxicos na saúde do trabalhador, do consumidor, da população e do ambiente. A comissão de fiscalização, por exemplo, vem obtendo resultados bem interessantes. Hoje, há vários órgãos com responsabilidade de fiscalizar o uso de agrotóxicos, mas esse trabalho ocorre, na maioria das vezes, de maneira segmentada sem que esses órgãos se comuniquem entre si. A comissão do Fórum reuniu todos esses órgãos e eles têm feito operações conjuntas que resultaram em apreensão de aeronaves, interdição de lavouras, descoberta de agrotóxicos contrabandeados e embalagens descartadas incorretamente. Já houve três destas operações integradas. Até então, cada órgão fazia seu trabalho separadamente.

Sul21: Na sua opinião, há dentro do Ministério Público e de outras instituições de controle um aumento da preocupação com esse crescente processo de flexibilização e precarização dos mecanismos de controle e fiscalização na área ambiental, em especial em relação a esse tema do impacto dos agrotóxicos?

Ana Paula Carvalho de Medeiros: Sim. A criação do Fórum é um reflexo disso. Quando criamos esse espaço aqui no Rio Grande do Sul, já existia o fórum nacional e alguns estaduais. Esse fórum nacional foi crescendo de uma maneira muito forte, incentivando a criação de fóruns estaduais. Hoje, praticamente todos os estados têm um fórum desse tipo. Até então, a atuação do MPF neste tema era bem pontual. Agora, temos uma ação mais organizada e articulada, com muito mais fundamento pois temos organizações técnicas da sociedade civil e universidades, com muito conhecimento, que trazem os problemas muitas vezes já com a indicação da solução. A estrutura técnica do MP é pequena. Com essa conjugação de esforços temos condições de fazer muito mais. Agora, a Quarta Câmara, que é a câmara ambiental do Ministério Público Federal, recriou um GT sobre agrotóxicos do qual estou participando.

Sul21: Você, particularmente, incorporou esse tema dos agrotóxicos em sua vida como consumidora?

Ana Paula Carvalho de Medeiros: Eu já tinha esse tema incorporado na minha vida como consumidora. Até por isso me interessei em trabalhar com ele, junto com outros colegas. Só feira ecológica, toda semana.

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  1. Sob o estandarte do Sanatório Geral vulgo Brasil
    Nassif, somos o segundo maior produtor de alimentos do mundo, atrás dos EUA, mas o campeão mundial de uso de agrotóxicos: consumimos 1 bilhão de litros de venenos agrícolas por ano, de acordo com o IBGE e com a ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), pelos quais pagamos US$ 12 bilhões anuais às multinacionais produtoras desses venenos. Em compensação, somos igualmente campeões mundiais em incidência de câncer e como a OMS estima que 80% dessas neoplasias são provocadas pela exposição e ingestão de alimentos e água contaminados por esses biocidas carcinogênicos, teratogênicos e mutagênicos, temos aqui, nessa síntese, o lead da grande matéria que o PIG sonega à opinião pública brasileira: além da reforma previdenciária destinada a acabar com os direitos trabalhistas e previdenciários, o Governo Temer investe na liberação ampla e irrestrita do morticínio por câncer, de forma a evitar sobrecargas no futuro número de brasileiros aptos a gozar a aposentadoria integral após 49 anos consecutivos de trabalho e contribuições. Simples assim: não haverá nenhuma sobrecarga, pois além de todos os empecilhos à continuidade das contribuições por tanto tempo, o candidato à mesma morrerá antes de atingir o tempo e idade para usufruí-la, uma vez que sem o SUS para custear o tratamento oncológico, só os muito ricos lograrão arcar com o preço do tratamento, caso não invistam a vida toda na aquisição de alimentos orgânicos isentos desses venenos, hoje em dia 30% mais caros que os alimentos normais, encharcados desses produtos químicos, com tendência a chegar a valer até 50% a mais, assim que as estatísticas evidenciarem o morticínio da maioria e os economistas demonstrarem que o barato arroz e feijão custa o encurtamento da própria vida e é melhor investirmos em alimentos importados. Isto é, produzidos bem longe de nossa zona agrícola de milho-soja-cana transgênicos e, como tais, dependentes desses venenos que se pretende liberar de quaisquer licenciamentos, sob a alegação de que os órgãos licenciadores – desde já devidamente sucateados – demoram demais para cumprir seu dever e o deus mercado (leia-se Andef, Associação Nacional de Defesa Vegetal e Sindiveg, Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal – que concentram as 50 empresas produtoras ou revendedoras dos agrotóxicos) não pode esperar. Como esse um bilhão de litros de agrotóxicos anuais, divididos pela população, significam a ingestão de 5,2 litros per capita de veneno por ano – muito embora a Abrasco estime que sejam mais de dez litros – podemos dizer que consumimos anualmente o equivalente a entre 14 e 30 latinhas de cerveja contendo tais venenos que, muito antes do colapso final, nos manterão “pacificados” – para usar um termo consagrado recentemente pelo Temer-, pois substâncias como o glicofosato e o 2,4-D – que serão vendidos livremente uma vez aprovado esse pacote mortífero – também acarretam distúrbios neurológicos, além de cânceres de próstata, seios, rins e pulmão, acarretando, no último caso, morte por asfixia, uma vez que o uso de oxigênio nos enfermos potencializaria os efeitos do veneno, segundo os toxicologistas, que advertem para os efeitos genéticos: de acordo com o MIT, até 2025 uma a cada duas crianças filhas de pais contaminados por glicosado nascerão autistas. Ou seja, igualzinhas à população decantada por Chico Buarque e Francis Hime naquele hino de resistência à ditadura chamado “Vai Passar”. Só que, exposta ao PIG e suas pós-verdades, não passou, nossa gente continua como antes:

    “Num tempo
    Página infeliz da nossa história
    Passagem desbotada na memória
    Das nossas novas gerações
    Dormia
    A nossa pátria mãe tão distraída
    Sem perceber que era subtraída
    Em tenebrosas transações

    Seus filhos
    Erravam cegos pelo continente
    Levavam pedras feito penitentes
    Erguendo estranhas catedrais” .

    Para os toxicologistas, esse estado catatônico, ou o estupor e a indiferença são efeitos colaterais dessa prolongada e contínua exposição a esse coquetel de armas de guerra (como o 2,4 D que misturado ao 2,4,5 T foi utilizado pelos EUA na guerra do Vietnã sob o sinistro nome de “agente laranja”, usado parcialmente em nossos alimentos ou na devastação florestal praticada por latifundiários ampliando seus “patrimônios” fundiários). Ou seja, além de reduções cognitivas em massa, vimos sofrendo mudanças endocrinológicas que podem até explicar mas não justificar essa mudança comportamental que preside os tempos correntes. Afinal, por muito menos, o mesmo guerreiro e poeta Chico Buarque já fazia a multidão cantar, nos anos 60, aquele seu hino das Diretas Já ou contra aquela ditadura verde-oliva, o “Apesar de Você”, mas o esperançoso estribilho “Amanhã há de ser outro dia” de há muito não é entoado mais – como os militares até tentaram impor, sem êxito, naqueles idos – por nossas atuais gerações amnésicas, que sequer aprendem mais nos bancos escolares disciplinas que poderiam historiar a resistência popular ao arbítrio hoje travestido de togas judiciais e mandatos parlamentares que deformam e mutilam a principal marca e conquista civil que timbra aquele período,
    Se há quase meio século, quando trabalhamos juntos, minhas fontes científicas sobre esse mesmo problema já eram classificadas de tão dementes quanto o repórter que as ouvia – Lutzenberger era considerado invenção desse então solerte, lembra? – imagine supor à época que um parlamento e judiciário anencéfalos como os de agora nos fariam sentir saudades dos censores militares que driblávamos a cada edição, hoje substituídos pelos atuais diretores editoriais de nossa grande imprensa? O “Alemão” em peso gritaria “interna, interna” no sanatório, antes do chorinho poçocaldense lavar a alma da redação ali presente ou cantarmos juntos, um pouco mais tarde
    “Ai, que vida boa, olerê
    Ai, que vida boa, olará
    O estandarte do sanatório geral vai passar
    Ai, que vida boa, olerê
    Ai, que vida boa, olará
    O estandarte do sanatório geral
    Vai passar.”
    Não passou, Nassif, a maior prova disso está aqui, com você reproduzindo o belo texto do blog Sul21, denunciando solitariamente esse pesadelo de leis que destroçam o coração da Constituição de 88, fruto daquela preocupação com a saúde coletiva que levou o povo a sair às ruas de todo país pela primeira vez depois do golpe de 64, clamando por proteção ante aquele dilúvio de “defensivos fitossanitários” e pela defesas nossas águas, florestas, fauna, mares e de uma qualidade de vida ou saúde pública. Tudo isso contemplado, mais tarde pelos artigos 220 e 170 da CF, que estabeleciam o antídoto exigido, que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem deus comum do povo a ser defendido e preservado para as presentes e futuras gerações; que essa defesa da saúde do meio ambiente e da saúde pública é um dos princípios fundamentais da ordem econômica, ao lado da soberania nacional, da propriedade privada, da função social da propriedade, da livre concorrência e da defesa do consumidor. Era a consagração de um direito fundamental de terceira geração, estabelecendo o princípio da solidariedade e materializando poderes de titularidade coletiva, já que os de primeira geração são/eram os direitos civis e políticos e os de segunda são/eram os direitos econômicos, sociais e culturais, cabendo inclusive ao TCU o controle externo dessa gestão ambiental e orgânica do país, além daquelas instâncias então sacrossantas e imunes à parcialidade e partidarismo que tinham no STF-STJ suas instâncias máximas, hoje convertidas em aríetes golpistas que fecham os olhos ao arbítrio e corrupção praticados por legendas partidárias que apóiam… Vida longa à procuradora Ana Paula Carvalho de Medeiros, longe de aeronaves e outros riscos de vida que permeiam o caminho de quem ousa afrontar esse mercado de R$ 40 bilhões anuais dos fabricantes de agrotóxicos. Em sua homenagem, mas também de quantos continuam resistindo como Nassif e uma ou outra alma penada que se dispõe a desabafos como este, sabendo que ninguém há de curtir ou comentá-los e amanhã estarão esquecidos, aqui segue aquela canção de Chico que Médici proibiu em todo país mas ainda ousamos cantar, com Nassif ao bandolim, sempre:
    Apesar de Você
    “Hoje você é quem manda
    Falou, tá falado
    Não tem discussão
    A minha gente hoje anda
    Falando de lado
    E olhando pro chão, viu
    Você que inventou esse estado
    E inventou de inventar
    Toda a escuridão
    Você que inventou o pecado
    Esqueceu-se de inventar
    O perdão

    Apesar de você
    Amanhã há de ser
    Outro dia
    Eu pergunto a você
    Onde vai se esconder
    Da enorme euforia
    Como vai proibir
    Quando o galo insistir
    Em cantar
    Água nova brotando
    E a gente se amando
    Sem parar

    Quando chegar o momento
    Esse meu sofrimento
    Vou cobrar com juros, juro
    Todo esse amor reprimido
    Esse grito contido
    Este samba no escuro
    Você que inventou a tristeza
    Ora, tenha a fineza
    De desinventar
    Você vai pagar e é dobrado
    Cada lágrima rolada
    Nesse meu penar

    Apesar de você
    Amanhã há de ser
    Outro dia
    Inda pago pra ver
    O jardim florescer
    Qual você não queria
    Você vai se amargar
    Vendo o dia raiar
    Sem lhe pedir licença
    E eu vou morrer de rir
    Que esse dia há de vir
    Antes do que você pensa

    Apesar de você
    Amanhã há de ser
    Outro dia
    Você vai ter que ver
    A manhã renascer
    E esbanjar poesia
    Como vai se explicar
    Vendo o céu clarear
    De repente, impunemente
    Como vai abafar
    Nosso coro a cantar
    Na sua frente

    Apesar de você
    Amanhã há de ser
    Outro dia
    Você vai se dar mal
    Etc. e tal”

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