Debate sobre “aumento” recente do analfabetismo é sustentado por boa dose de ignorância ou leviandade

O IBGE acabou de divulgar sua última Pnad (de 2012). Dessa pesquisa saiu a apavorante “notícia” de que o analfabetismo aumentou no Brasil, entre 2011 e 2012. Manchetes menos pessimistas dizem que ele estagnou. Será?

Para entender o que ocorre com o analfabetismo, vamos imaginar que a toda a população de 15 anos ou mais estivesse abrigada dentro de um enorme prédio, que contém uma porta de saída, no piso superior, e outra de entrada, no piso inferior. É nessa faixa etária (15 anos ou mais de idade) que o analfabetismo é medido.

Pela porta de entrada passa a população que acaba de completar 15 anos de idade. Pela porta de saída passam as pessoas quem venham a óbito.

A evolução da taxa de analfabetismo depende do comportamento de quatro fluxos: um de entrada, um de saída e dois fluxos internos ao prédio:

* Quantidade de pessoas que completam 15 anos e proporção de analfabetos entre elas;

* Quantidade de pessoas que morrem e proporção de analfabetos entre elas;

* Quantidade de pessoas de 15 anos ou mais que, sendo analfabetas, são alfabetizadas;

* Quantidade de pessoas de 15 anos ou mais que, sendo alfabetizadas, regridem ao analfabetismo.

Vamos ao primeiro fluxo, o de entrada. A quantidade de pessoas na idade de 15 anos cresceu até meados da década de 2000 e se estabilizou pouco depois disso, em função da redução do número de nascimentos. Por outro lado, a proporção dessas pessoas que se escolarizaram foi crescente até início dos anos 2000 e se estabilizou nas vizinhanças da universalidade a partir daí. Enquanto cresciam o fluxo de pessoas de 15 anos e a proporção de alfabetizados entre elas, a taxa de analfabetismo declinou de forma mais acelerada. Portanto, não se preocupe. Nosso analfabetismo está diminuindo mais lentamente porque estamos mais civilizados e, portanto, gerando menos filhos por mulher…

Vamos analisar o fluxo da saída. Há maior incidência de analfabetismo entre idosos (efeito do nosso passado educacional); e é maior a incidência de idosos entre os que morrem. Portanto, o fluxo de saída contribui para a redução do analfabetismo. Mas, uma das marcas do nosso progresso social nas últimas décadas tem sido justamente o aumento da expectativa de vida (e de sobrevida). Esses analfabetos estão teimosos em viver mais do que deveriam, desacelerando a redução do nosso perverso indicador… Mais uma vez, não se preocupe: nossos analfabetos estão vivendo um pouco mais e melhor (ou: melhor e mais, se preferir).

Entretanto, há outro fluxo de saída que pode ter algum impacto: a crescente mortalidade de homens jovens por causas externas (acidentes e violências). Uma vez que a taxa de analfabetismo nesse grupo é menor do que na média da população, essa mortalidade contribui para desacelerar a queda do nosso perverso indicador, ainda que modestamente.

Finalmente, vamos analisar os fluxos internos. A alfabetização de jovens e adultos é um mecanismo que ajudaria a reduzir o analfabetismo. E ele precisaria se acelerar para compensar a perda de ímpeto associada aos fluxos de entrada e saída apontados anteriormente. Ocorre que, no Brasil, adotou-se (em todos os governos) a postura de esperar que o analfabetismo morra de velho. Algo como: “eduque as crianças, o resto o tempo resolve”. Pelo visto, o tempo será longo.

Ainda precisamos falar de um fluxo perverso, mas quase desprezível (felizmente): nosso sistema educacional continua gerando analfabetos. Isso ocorre quando as pessoas não freqüentam escola ou quando freqüentam muito pouco (apenas nos anos iniciais). Nessas situações, as pessoas podem não se alfabetizar ou, se alfabetizadas, regredirem à situação de analfabetas. Ocorre que esse fluxo perverso tem importância residual e declinante, sem efeito na desaceleração do ritmo de redução do nosso analfabetismo.

– Mas, de 2011 para 2012 o analfabetismo aumentou em 0,1%, segundo o IBGE!

Eis uma leviandade. Esse 0,1% não tem significado estatístico. Os dados do IBGE são obtidos por amostragem (O IBGE poderia dar uma boa ajuda nesse debate se divulgasse a margem de erro da estatística). O que marca o indicador de analfabetismo, que vem sendo medido há muitas décadas, é uma oscilação com tendência declinante. Agora estamos numa fase de oscilação com tendência mais lenta de declínio (a curva está ficando mais horizontal). Para voltar a acelerar o declínio do analfabetismo – quando já não se pode contar com tanta ajuda da demografia  – temos que enfrentar a discussão sobre os custos de oportunidade entre educação básica e educação de jovens e adultos. E sobre o retorno social, econômico e cultural que a alfabetização de adultos em grande escala poderia trazer para os beneficiários e para o País.

Para ler uma análise leviana, recomendo esse artigo do Roberto Freire:

http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/116755/Analfabetismo-desigualdade-e-a-fal%C3%A1cia-da-propaganda.htm

Recomendo essa matéria:

http://g1.globo.com/economia/noticia/2013/09/para-ibge-so-proxima-pnad-podera-confirmar-aumento-do-analfabetismo.html

Edmar Augusto Vieira é Mestre em Economia e Gestor Governamental (SEPLAN-MT). É autor livro Desigualdade e pobreza em perspectiva: o caso de Mato Grosso (Editora da UFMT).

 

Redação

1 Comentário

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  1. Matemática do fascismo.

    O comentário está perfeito. Durante os últimos  125 anos a taxa de analfabetismo no Brasil foi declinante ano a ano. No ínício, muito lentamente, acelerando na segunda metade do século XX. Não confundir “taxa”, que é um número puro, porcentagem,  com “qantidade”. Está claro que hoje temos mais analfabetos em números absolutos do que em 1800, descontados os escravos e índios que não frequentavam escolas, talvez porque fosse proibido ou porque não houvese (não havia mesmo) escolas públicas. Nenhum país do mundo chegará à taxa ZERO de analfabetismo. Alguns problemas de saúde mental tornam a alfabetização de um grupo de crianças virtualmente impossível ou extremamente caro, quando o estado não pode pagar. Imagino que a taxa dessas crianças com problemas neurológicos muito graves não chegue a 1 por mil. Duvido que o erro da pesquisa seja menor do que 0,1%. No Brasil, as pesquisas eleitorais mais precisas rondam a casa de erro de 2,2%. Se o erro do IBGE for muito baixo, de uns 0,4%, mesmo assim esse erro será QUATRO X maior do que o “crescimento” apontado. A gente lê e ouve muita asneira porque no jornalismo piguiano pouca gente conhece aquele fenômeno da porcentagem: “se você majorar um produto, serviço ou salário em 10% e em seguida aplicar um desconto dos mesmos 10%, o segundo preço será sempre menor do que o primeiro”. Exemplo: Um vinho custa R$ 100,00 e sofre um aumento de 10%. Vai custar R$ 110,00. Se depois disso for aplicado um desconto de 10%, ele irá custar R$ 99,00. Simples assim.

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