Política de cotas subverte histórico de segregação nas universidades

 
Jornal GGN – No artigo a seguir, a RBA traz de volta o debate sobre a proposta de cotas em universidades com a opinião dos próprios negros. Atualmente no Brasil, 128 instituições de ensino superior aplicam o sistema para reparar a desigualdade social que reduz o acesso de negros, indígenas e pobres.
 
RBA 
 
O exercício da igualdade ainda tem um caminho a percorrer
 
Num cenário de desigualdades e sarcasmos cotidianos, o ambiente universitário é para a maioria dos alunos afrodescendentes mais do que hostil. É solitário
 
Por Maitê Freitas
 
São Paulo – O debate sobre implementação das políticas de ações afirmativas para promoção de igualdade desde sempre divide a opinião pública. Para os ativistas dos movimentos negros, as contradições e desigualdades sociais originárias do regime escravocrata ainda podem ser vistas e sentidas pela comunidade afro-brasileira, que representa 53,6% da população. De outro lado, os que se opõem às políticas de cotas para negros em universidades ou concursos públicos entendem que ao sobrepor a cota ao mérito individual, essa política tornaria “desiguais” as oportunidades.
 
Esse raciocínio é comumente associado ao mito de que “não existe racismo no Brasil”. Um entendimento de quem desconhece que a população negra ainda tem salários muito menores do que a população branca, que o homicídio de jovens negros tem dimensões de genocídio em diversos recortes. De acordo com o Mapa da Violência, por exemplo, a morte de mulheres brancas por casos de violência diminuiu 10% entre 2003 e 2013, período em que a de mulheres negras aumentou 54%.
 
Os argumentos contrários às cotas, ao alegarem que reiteram a desigualdade e a discriminação entre brancos e negros, não levam em consideração que países como os Estados Unidos, que adotaram ações afirmativas desde 1935, conseguiram formar uma elite intelectual negra e ter afro-americanos representados em diversos setores da sociedade. No Brasil, apenas o debate sobre as cotas raciais só se intensificou a partir de 2003, na primeira gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. E vêm desde então apresentando efeitos e resultados nas dinâmicas das famílias e no perfil profissional brasileiro.
 
Em que pese o fato de que para toda uma nova geração de jovens e adultos, sobretudo das periferias, novas janelas de oportunidade de empregos, serviços e empreendedorismo terem sido abertas, a polêmica persiste – assim como as desigualdades. Ao questionar a divisão de poder e de riquezas, materiais e imateriais, numa sociedade desigual, a ação afirmativa incomoda muita gente.
 
Atualmente, 128 instituições de ensino superior adotaram o sistema de cotas para tornar menos desigual o acesso de negros, indígenas e pobres nas universidades. Ainda que escassa, a presença de alunos e alunas negras nas universidades causa impacto visual e nas estruturas educacionais.
 
Não-lugar
 
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Com mestrado em Linguagem, Identidade e Subjetividade pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Merylin Santos Ricieli, 27 anos, foi cotista na graduação e no programa de pós-graduação da instituição instalada no município paranaense. Embora tenha se formado na área de humanas, onde a presença de alunos negros é massiva, a professora conta “que todo comentário que eu fazia em sala de aula sobre questões raciais, alunos e professores já estavam na defensiva, faziam careta ou comentários mais baixos constantemente e eu via isso como o meu ‘não-lugar’ naquele espaço predominantemente branco”.
 
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Olhares, comentários e estranhamento de professores, alunos e funcionários brancos são recorrentes no cotidiano. Para a poeta, educadora e articuladora cultural Carmen Faustino, 37 anos, que integrou a primeira turma de cotistas do ProUni, em 2005, existe uma hostilidade racista, silenciosa e sarcástica projetada aos alunos cotistas. “Vem de alunos, professores e da coordenação. Lembro de não comentar com ninguém sobre minha condição de cotista na universidade, mas algumas vezes fui chamada em sala de aula para comparecer na coordenação, para assinar ou retirar algum documento em relação a bolsa. Alguns colegas de sala questionavam minha permanência enquanto bolsista.”
 
Passada mais de uma década, os resultados mostram que o desempenho desses alunos é igual ou superior ao dos não cotistas. A evasão dos também diminuiu, contrariando todos os argumentos contrários às políticas afirmativas. Aluno do programa de pós-graduação da UEPG, Renan Fagundes, 26 anos, relata que durante o processo de seleção ouviu piadas de todo tipo “você só precisa colocar o nome na prova que está dentro…”
 
 
Para Renan, o caminho do negro numa instituição é uma batalha por respeito todos os dias. “Eu, sofria nas aulas de Língua e Texto, pois não tinha uma ‘boa’ escrita como a dos meus colegas que estudaram a vida toda nos colégios particulares. No entanto, quando tive meus primeiros artigos publicados, participações em congressos e eventos, e apresentei trabalhos em outros idiomas, notei que o olhar do outro mudou e eu passei a ouvir: ‘como você é esforçado!’”
 
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A estudante de Pedagogia Karina Galdino, 23 anos, diz que a cobrança e o controle dos professores, alunos e da própria instituição, a Unicid, em São Paulo, sobre o seu rendimento são diários. “Parece que todos os dias eu preciso provar porque mereço estar ali. É tudo velado, silencioso. Mas você consegue distinguir a cobrança entre um aluno cotista e um que paga a mensalidade. Expor o seu ponto de vista, se colocar diante de algumas questões é bem complicado. É complicado lidar com isso, ‘ou joga o jogo, ou bate de frente’. É uma escolha que preciso fazer todos os dias.”
 
Continue lendo. 
 
Redação

14 Comentários

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  1. Negros
    Não são a maioria da população sob qualquer ótica que vc oberve as estatísticas!

    A população brasileira é majoritariamente branca! Com 25% de negros e 25% de mestiços!

    Eu não entraria neste mérito caso não estivessem subvertendo as estatísticas para fazer política!
    O movimento negro, que é racista, adora o fato de que no último censo os brancos, pela primeira vez na história deste país, parafraseando Lula, foram menos que 50% do TOTAL da população.
    E…..como são de ESQUERDA, não sabem fazer contas nem tampouco sabem conceitos BÁSICOS de matemática.
    Ou…. estão mentindo para vc na cara dura!
    Porque, apesar de não ser mais majoritário, os brancos ainda são o maior grupo étnico do Brasil! Com 48% do TOTAL da população!
    O que “O Movimento” fez foi colocar todos os mestiços no grupo dos negros. E não se fala mais nisso….hehehe, só que não! Mentira tem perna curta!

    Sempre desconfie daqueles que fazem política mentindo!
    Como o movimento segregacionista negro!.Q ue chamou Pelé de TRAIDOR por ter se casado com uma loira!!!!

    NÃO se engane meu caro NEGRO! Seu movimento está a soldo!
    Estão fazendo com vcs o que fizeram com os negros dos EUA! Observe HOJE como estão!

    A saída é o NACIONALISMO! É o que pregava MARTIN LUTHER KING!
    Una se ao SEU país, aos valores de SEU país! Não se veja DIFERENTE no SEU país!

    Se integre ou continue na favela! Mas aviso desde já, o final desta história de FAVELA não será feliz! Se você pensa nos seu filhos e em sua família, deve QUERER sair da Favela!

    Nãodeixe o movimento negro te enganar! Ninguém merece morar em favelas#

    Quem te diz que FAVELA é legal são aqueles que são pagos pelos que querem te matar caso vc saia mesmo!

    Acorde para a verdade! A sociedade não TEM QUE se adaptar à Favela!
    A FAVELA é que, para início de conversa, não deveria existir!

  2. Um dos maiores méritos da

    Um dos maiores méritos da política de cotas, no Brasil, foi ter implodido, nas ruas e na academia, o mito da democracia racial. Hoje só sendo muito hipócrita para dizer que “não existe racismo no Brasil”, que o problema é meramente uma questão de “classe”. A própria rejeição à política de cotas, por amplos setores (inclusive na academia), demonstra o quanto a sociedade brasileira é racista: quanto mais a população negra ocupa espaços antes reservados aos brancos, como as universidades, mais explícito e virulento se torna o racismo nosso de todo dia, nas ruas e nas redes.

     

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=TiZ0WvIc1QY%5D

    Vozes d’Africa para exorcizar os trumps, le pens, orbans e bolsonaros com seus discursos xenófobos, racistas e misóginos…

     

     

         

  3. A política de cotas.

    Assim como todas as leis contra o racismo, a  política cotas não foi feita para vencer o preconceito.  A politica de cotas veio para  afirmar que malgrado a cara feia, malgrado as pressões, e malgrado o preconceito e a discriminação que continua a existir, a Universidade também é dos  afro descendentes; mestiços ou negros.

    O fato disto ser uma política publica é da maior importância, pois reafirma que este não é um favor mas sim um direito. E não me digam que a política cotas aumentou  o racismo. As manifestações aumentaram simplesmente porque agora há muito mais negros na universidade.  De forma efetiva nunca em 30 anos de universidade vi tantos estudantes negros  na graduação e principalmente na pós graduação. Aos que não gostam  se preparem, pois vieram para ficar.

  4. O movimento negro é nazista!
    Utiliza conceitos oriundos dos movimentos que pegaram a supremacia branca para afirmar que o Brasil é majoritariamente negro!
    Para estes movimentos, se vc for loiro denolhos azuis mas tem en seus antepassados algum não branco, então vc é não branco. Mesmo sendo loiro de olhos azuis….

    O que O Movimento faz no Brasil é a extrapolação desta tese…..em que todos os não brancos são negros.

    Coisa de Jenio! Aposto que foi o Serra do movimento negro quem pensou nisso!

    1. Pelamor…

      Chamar o movimento negro de nazista não é só má-fé, é indignidade e uma ofensa seríssima!

      Espero que ativistas do movimento processem esse sujeito. Só assim esses caras aprendem alguma coisa!

      Lembro que certos comentaristas já foram banidos daqui, por causa da agressividade e de posições que extrapolavam a iria de debate e descambavam pra ofensa e agressão. Acho que este é um caso. Nassif devia banir esse sujeito, que nada acrescenta ao debate e ainda chama negros de nazistas!

      1. Tambem não vamos pegar um

        Tambem não vamos pegar um comentário de um espaço acima de tudo orientado para o “criativo”, como o blog, e fazer disso uma bandeira, né. Alem do mais, claro que respeitando-se um limite, nas mãos do chefe, tudo vale para reflexão, boas respostas, ponderações, opiniões, sugestões… abç

        1. Sabe
          Este pessoal agressivo é bem comum na esquerda.

          Há uma explicação para isso:. Lavagem cerebral!

          Alan, estanvc dizendo que o Movimento Negro não foi racista ao chamar Pelé de traidor da raça negra por se casar com uma loira misturando seu sangue negro puro?

          Vc não consegue estabelecer qualquer relação sobre este FATO com o nazismo?

          Se vc não consegue…. O que mais posso fazer…. além de lhe ignorar.

  5. O correto não seriam cotas

    O correto não seriam cotas para uma determinado grupo racial da sociedade, em privação de outros grupos raciais desta mesma sociedade… O correto seriam cotas para as pessoas de baixa renda; sejam elas de cor de pele negra ou com a aparência corpórea de um indígena. Na verdade, o correto mesmo, seriam vagas para todos! Independentemente de sua raça, cor ou etnia.

  6. O JULGAMENTO, PELO STF, DA

    O JULGAMENTO, PELO STF, DA CONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS RACIAIS PARA INGRESSO NA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – ADPF 186

    O inacreditável desconhecimento, por parte dos movimentos sociais, que defendem políticas afirmativas, acerca do conteúdo das decisões do Supremo Tribunal Federal, nestes temas tão importantes para a conquista plena da cidadania e da confirmação no âmbito jurídico de direitos sociais duramente conquistados, é estarrecedor.

    No que se refere ao julgamento da adoção de cotas pela Universidade de Brasília, a discussão se reveste de tal riqueza e participação de diversos movimentos sociais que custa crer tamanha falta de informação que se vê hoje, tanto em discussões acadêmicas quanto nas redes sociais onde todo este conhecimento e argumentos explícitos na referida decisão são, via de regra, ignorados, e a discussão vira um bate boca repleto de “achismos”, os mais disparatados possíveis.

    É preciso que todos, principalmente dos que militam em prol de causas sociais, se apropriem deste conteúdo e democratizem tal conhecimento, pois, somente desta forma poderão assegurar sua perenidade e compreensão de motivos e finalidade.

    Seguem apontamentos – recortes do texto – que constam no Voto do Relator, quando do  julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186, que tramitou perante o Supremo Tribunal Federal.

    O Supremo Tribunal Federal, em julgamento histórico (abril de 2012), pela dimensão da causa objeto da demanda, julgou constitucional a adoção de cotas para ingresso nas universidades públicas brasileiras, bem como, explicitou e fundamentou os motivos que levaram a tal entendimento, ou seja, acerca dos fundamentos que amparam tais ações, ditas afirmativas.

    A nota desabonatória, foi que, agora em outubro de 2014, quando publicado o acordão, que compilou e ordenou os apontamentos acerca das diversas manifestações das entidades que participaram de forma ativa do julgamento,  tal acontecimento, foi solenemente ignorado pela mídia.

    Assim, para trazer a lume ou relembrar, alguns dos aspectos principais do julgamento, trago a colação fragmentos do julgado bem como teço algumas considerações sobre estes trechos que constaram no voto condutor da demanda.

    http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693

    EMENTA

    : ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

    I – Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.

    II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade.

    III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa.

    IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro.

    V – Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição.

    VI – Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes.

    VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos.

    VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente.

    Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Data do Julgamento: 26.04.2012. Data da Publicação:20.10.2014.

     

    RELATÓRIO

    Inicialmente em razão da pertinência e em face da necessidade de uma clara definição de quais os principais argumentos utilizados pelo Partido dos Democratas- DEM,  autor da ação contra o estabelecimento das cotas, tenho por iniciar a análise por esta parte.   

    No caso, anoto que, os argumentos elencados pelos Democratas, são de estarrecer qualquer pessoa que, independentemente de suas opções politicas, apenas defendem a forma liberal clássica do conceito de liberdade e direitos individuais.

    Para melhor compreensão transcrevo a síntese contida no relatório do voto condutor do julgado e que representa a pretensão posta pelo referido partido na arguição descumprimento de preceito fundamental, in verbis:

    “a) na ADPF, discute-se se a implementação de um ‘Estado racializado’ ou do ‘racismo institucionalizado’, nos moldes praticados nos Estados Unidos, África do Sul ou Ruanda, seria adequada para o Brasil (…);

    b) pretende demonstrar que a adoção de políticas afirmativas racialistas não é necessária no país (…);

    c) o conceito de minoria apta a ensejar uma ação positiva estatal difere em cada país. Depende da análise de valores históricos, culturais, sociais, econômicos, políticos e jurídicos de cada povo (…);

    d) discute tão somente a constitucionalidade da implementação, no Brasil, de ações afirmativas baseadas na raça (…);

    e) ninguém é excluído, no Brasil, pelo simples fato de ser negro (…);

    f) cotas para negros nas universidades geram a consciência estatal de raça, promovem a ofensa arbitrária ao princípio da igualdade, gerando discriminação reversa em relação aos brancos pobres, além de favorecerem a classe média negra”

    Pois bem, segundo os Democratas – DEM, estes são os argumentos contra as cotas.

    MANIFESTAÇÕES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS –

    Outro ponto significativo foram as manifestações dos movimentos sociais, motivo que torna ainda mais incompreensível o silêncio em torno deste julgamento.

    Por extensas e fragmentadas, recomenda-se sejam aferidas junto a íntegra do Voto condutor do julgado, cujo link, foi acima disponibilizado.

    VOTO DO RELATOR – MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI

    CRITÉRIO DA SUBSIDIARIEDADE

    Inicialmente, assento o cabimento desta ação, uma vez que não há outro meio hábil de sanar a lesividade (art. 4º, § 1º, da Lei 9.882/1999).

    Saliento, nessa linha, que o entendimento desta Corte é o de que, para aferir-se a subsidiariedade, é preciso ter em conta a inexistência ou não de instrumentos processuais alternativos capazes de oferecer provimento judicial com eficácia ampla, irrestrita e imediata para solucionar o caso concreto sob exame, conforme deflui do julgamento da ADPF 33/PA, Rel. Min. Gilmar Mendes, assim ementada:

     (…) Cláusula da subsidiariedade ou do exaurimento das instâncias. Inexistência de outro meio eficaz para sanar lesão a preceito fundamental de forma ampla, geral e imediata. Caráter objetivo do instituto a revelar como meio eficaz aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante. Compreensão do princípio no contexto da ordem constitucional global. Atenuação do significado literal do princípio da subsidiariedade quando o prosseguimento de ações nas vias ordinárias não se mostra apto para afastar a lesão a preceito fundamental.

    ABRANGÊNCIA DO TEMA EM DISCUSSÃO

    A questão fundamental a ser examinada por esta Suprema Corte é saber se os programas de ação afirmativa que estabelecem um sistema de reserva de vagas, com base em critério étnico-racial, para acesso ao ensino superior, estão ou não em consonância com a Constituição Federal.

    Para enfrentar a questão da constitucionalidade dos programas de ação afirmativa instituídos pela Universidade de Brasília e outros estabelecimentos de ensino superior no País, penso que cumpre ao Supremo Tribunal Federal discutir esse relevante tema do modo mais amplo possível, fazendo-o, em especial, à luz dos princípios e valores sobre quais repousa a nossa Carta Magna.

    O primeiro passo, para tanto, a meu sentir, consiste em revisitar o princípio da igualdade agasalhado na Lei Maior, examinando-o em seu duplo aspecto, ou seja, no sentido formal e material.

    IGUALDADE FORMAL VERSUS MATERIAL

    De acordo com o artigo 5º, caput, da Constituição, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Com essa expressão o legislador constituinte originário acolheu a ideia – que vem da tradição liberal, especialmente da Declaração do Homem e do Cidadão francesa de 1789 – de que ao Estado não é dado fazer qualquer distinção entre aqueles que se encontram sob seu abrigo.

    É escusado dizer que o constituinte de 1988 – dada toda a evolução política, doutrinária e jurisprudencial pela qual passou esse conceito – não se restringiu apenas a proclamar solenemente, em palavras grandiloquentes, a igualdade de todos diante da lei.

    À toda evidência, não se ateve ele, simplesmente, a proclamar o princípio da isonomia no plano formal, mas buscou emprestar a máxima concreção a esse importante postulado, de maneira a assegurar a igualdade material ou substancial a todos os brasileiros e estrangeiros que vivem no País, levando em consideração – é claro – a diferença que os distingue por razões naturais, culturais, sociais, econômicas ou até mesmo acidentais, além de atentar, de modo especial, para a desequiparação ocorrente no mundo dos fatos entre os distintos grupos sociais.

    Para possibilitar que a igualdade material entre as pessoas seja levada a efeito, o Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.

    A adoção de tais políticas, que levam à superação de uma perspectiva meramente formal do princípio da isonomia, integra o próprio cerne do conceito de democracia, regime no qual, para usar as palavras de Boaventura de Sousa Santos, “(…) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades ”.

    Aliás, Dalmo de Abreu Dallari, nessa mesma linha, adverte que a ideia de democracia, nos dias atuais, exige a superação de uma concepção mecânica, estratificada, da igualdade, a qual, no passado, era definida apenas como um direito, sem que se cogitasse, contudo, de convertê-lo em uma possibilidade, esclarecendo o quanto segue: “O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os primeiros em situação de privilégio, mesmo que sejam socialmente inúteis ou negativos”

    JUSTIÇA DISTRIBUTIVA

    É bem de ver, contudo, que esse desiderato, qual seja, a transformação do direito à isonomia em igualdade de possibilidades, sobretudo no tocante a uma participação equitativa nos bens sociais, apenas é alcançado, segundo John Rawls, por meio da aplicação da denominada “justiça distributiva”.

    Só ela permite superar as desigualdades que ocorrem na realidade fática, mediante uma intervenção estatal determinada e consistente para corrigi-las, realocando-se os bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício da coletividade como um todo. Nesse sentido, ensina que “As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos ”.

    No que interessa ao presente debate, a aplicação do princípio da igualdade, sob a ótica justiça distributiva, considera a posição relativa dos grupos sociais entre si. Mas, convém registrar, ao levar em conta a inelutável realidade da estratificação social, não se restringe a focar a categoria dos brancos, negros e pardos. Ela consiste em uma técnica de distribuição de justiça, que, em última análise, objetiva promover a inclusão social de grupos excluídos ou marginalizados, especialmente daqueles que, historicamente, foram compelidos a viver na periferia da sociedade.

     

    POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA

    Passo, a seguir, ao exame do conceito de ação afirmativa, recorrentemente empregado nesta ADPF, em torno da qual gira grande parte da discussão nela travada.

    Sob uma ótica acadêmica e de modo conciso, Myrl Duncan explica que uma ação afirmativa configura “(…) um programa público ou privado que considera aquelas características as quais vêm sendo usadas para negar [aos excluídos] tratamento igual”.

    Outra definição – um pouco mais elaborada – é a que consta do art. 2°, II, da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da Organização das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 1968, segundo o qual ações afirmativas são “(…) medidas especiais e concretas para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais de indivíduos pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais ”.

     

    Interessantemente, ao contrário do que se costuma pensar, as políticas de ações afirmativas não são uma criação norte-americana. Elas, em verdade, têm origem na Índia, país marcado, há séculos, por uma profunda diversidade cultural e étnico-racial, como também por uma conspícua desigualdade entre as pessoas, decorrente de uma rígida estratificação social.

    Com o intuito de reverter esse quadro, politicamente constrangedor e responsável pela eclosão de tensões sociais desagregadoras – e que se notabilizou pela existência de uma casta “párias” ou “intocáveis” -, proeminentes lideranças políticas indianas do século passado, entre as quais o patrono da independência do país, Mahatma Gandhi, lograram aprovar, em 1935, o conhecido Government of India Act.

    A motivação que levou à edição desse diploma legal, cuja espinha dorsal consiste no combate à exclusão social, é assim explicada por Partha Gosh: “A necessidade de discriminar positivamente em favor dos socialmente desprivilegiados foi sentida pela primeira vez durante o movimento nacionalista. Foi Mahatma Gandhi (…) o primeiro líder a se dar conta da importância do tema e a chamar a atenção das castas mais altas para esse antiquado sistema social que relega comunidades inteiras à degradante posição de ‘intocáveis’. (…) A Constituição de Independência da Índia, que de modo geral seguiu o modelo do ‘Government of India Act’, de 1935, dispôs sobre discriminações positivas em favor das Scheduled Castes e das Scheduled Tribes (Scs & STs) que constituíam cerca de 23% da população estratificada da Índia. Além disso, reservou, a eles, vagas no Parlamento, foram dadas vantagens em termos de admissão nas escolas, faculdades e empregos no setor público, vários benefícios para atingir seu total desenvolvimento e assim por diante. A Constituição, em verdade, garantiu o direito fundamental à igualdade entre todos os cidadãos perante a lei, mas categoricamente também estabeleceu que nada na Constituição ‘impediria o Estado de adotar qualquer disposição especial para promover o avanço social e educativo de qualquer classe desfavorecida, das Scheduled Castes ou das Scheduled Tribes’.

    Algumas dessas disposições constitucionais que objetivam as discriminações positivas são:

    Artigo 17: Abolição da ‘intocabilidade’ e fazer desse tipo de discriminação uma prática punível por lei.

    Artigo 46: Promoção da educação e do interesse econômico.

    Artigos 16 e 335: Tratamento preferencial na questão do emprego no setor público.

    Artigos 330 e 332: Reserva de vagas no ‘Lok Sabha’ (Parlamento da Índia) e nas Assembleias Estaduais”.

    Lembro, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, admitiu a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa. Entre os vários precedentes, menciono a MC-ADI 1.276-SP, Rel. Min. Octávio Gallotti, a ADI 1.276/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, o RMS 26.071, Rel. Min. Ayres Britto e a ADI 1.946/DF, Rel. Min. Sydnei Sanches e a MC-ADI 1.946/DF, Rel. Min. Sydnei Sanches.

    Por seu caráter ilustrativo, reproduzo, aqui, trecho do voto proferido pelo Min. Nelson Jobim, na ADI 1.946-MC/DF, Rel. Min. Sydnei Sanches:

    “Levantamentos feitos, principalmente por um grande economista americano, Prêmio Nobel, Paul Samuelson, em seu famoso livro, ‘Macro Economia’, são incisivos.

    Verificou-se, no levantamento feito pelo MIT, que, no mercado de trabalho, em relação às mulheres, havia uma discriminação.

    Observou-se que as fontes de discriminação, consistentes na diferença, para maior, dos rendimentos dos homens em relação às mulheres, havia uma discriminação.

    Observou-se que as fontes de discriminação, consistentes na diferença, para maior, dos rendimentos dos homens em relação às mulheres têm razões complexas: hábitos sociais; expectativas; fatores econômicos; educação; formação e experiência profissional.

    Mas registrou-se outro fato: as mulheres tendem a interromper suas carreiras para terem filhos, o que provoca essa situação específica.  Em face disso, são discriminadas. Ou, não se emprega mulher, para se empregar homens. Ou, ao empregar a mulher, paga-se um salário aquém do salário médio para o homem. A diferença financiaria os ônus decorrentes do gozo do benefício.

    Ora, isso tem como consequência uma baixa equalização, entre homens e mulheres, no mercado de trabalho.

    Nos Estados Unidos da América, com o governo Johnson, iniciou-se um processo curioso de discriminação positiva que recebeu a denominação de ‘ricos ônus johnsonianos’.

    Começou com o problema racial do negro americano e estabeleceram-se cotas.

    Eram as ‘affirmative actions’.

    Para a questão feminina havia leis de referência: o ‘Civil Rights Act’ (1964) e o ‘Equal Pay Act’ (1963).

    Todo um conjunto de regras ajudou a desmantelar, nos Estados Unidos, as práticas discricionárias mais evidentes.

    No nosso sistema, temos algumas regras fundamentais que devem ser explicitadas.

    Não vou entrar na questão relativa ao tratado internacional.

    A CF dispõe: ‘Art. 3°. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

    (…)

    III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

    Leio o inciso IV:

    IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação’.

    (…)

    O Tribunal tem que examinar as consequências da legislação para constatar se estão, ou não, produzindo resultados contrários à Constituição.

    “A discriminação positiva introduz tratamento desigual para produzir, no futuro e em concreto, a igualdade. É constitucionalmente legítima, porque se constitui em instrumento para obter a igualdade real”.

     

    CRITÉRIOS PARA INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR

    A Constituição Federal preceitua, em seu art. 206, I, III e IV, que o acesso ao ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: “igualdade de condições para acesso e permanência na escola”; “pluralismo de ideias”; e “gestão democrática do ensino público”.

    Registro, por outro lado, que a Carta Magna, em seu art. 208, V, consigna que o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística será efetivado “segundo a capacidade de cada um”.

    Vê-se, pois, que a Constituição de 1988, ao mesmo tempo em que estabelece a igualdade de acesso, o pluralismo de ideias e a gestão democrática como princípios norteadores do ensino, também acolhe a meritocracia como parâmetro para a promoção aos seus níveis mais elevados.

    Tais dispositivos, bem interpretados, mostram que o constituinte buscou temperar o rigor da aferição do mérito dos candidatos que pretendem acesso à universidade com o princípio da igualdade material que permeia todo o Texto Magno.

    Afigura-se evidente, de resto, que o mérito dos concorrentes que se encontram em situação de desvantagem com relação a outros, em virtude de suas condições sociais, não pode ser aferido segundo uma ótica puramente linear, tendo em conta a necessidade de observar-se o citado princípio.

    Com esses dispositivos pretendeu o legislador constituinte assentar que o escopo das instituições de ensino vai muito além da mera transmissão e produção do conhecimento em benefício de alguns poucos que logram transpor os seus umbrais, por partirem de pontos de largada social ou economicamente privilegiados.

    De fato, como assenta Oscar Vilhena Vieira, “(…) os resultados do vestibular, ainda que involuntários, são discriminatórios, na medida em que favorecem enormemente o ingresso de alunos brancos, oriundos de escolas privadas, em detrimento de alunos negros, provenientes das escolas públicas.

    Esta exclusão – especialmente no que diz respeito aos cursos mais competitivos – faz com que a Universidade se torne de fato um ambiente segregado. Isto gera três problemas distintos: Em primeiro lugar, viola o direito dos membros dos grupos menos favorecidos de se beneficiar do ‘bem público educação’ em igualdade de condições com aqueles que tiveram melhor fortuna durante seus anos de formação.

    Esta Universidade predominantemente branca, em segundo lugar, falha na sua missão de constituir um ambiente passível de favorecer a cidadania, a dignidade humana, a construção de uma sociedade livre, justa (…).

    Uma Universidade que não integra todos os grupos sociais dificilmente produzirá conhecimento que atenda aos excluídos, reforçando apenas a hierarquias e desigualdades que tem marcado nossa sociedade desde o início de nossa história.

    Por fim, a terceira consequência está associada ao resultado deste investimento público, chamado sistema universitário, em termos de erradicação da pobreza e da marginalização. (…) pelos dados do MEC, o número de negros que conquistam o diploma universitário limita-se a 2%. Isto significa que os postos de comando, seja no setor público, seja no setor privado, (…), ficarão necessariamente nas mãos dos não negros, confirmando mais uma vez nossa estrutura racial estratificada”

    Diante disso, parece-me ser essencial calibrar os critérios de seleção à universidade para que se possa dar concreção aos objetivos maiores colimados na Constituição. Nesse sentido, as aptidões dos candidatos devem ser aferidas de maneira a conjugar-se seu conhecimento técnico e sua criatividade intelectual ou artística com a capacidade potencial que ostentam para intervir nos problemas sociais.

    ADOÇÃO DO CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL

    Outra importante questão a ser enfrentada neste debate consiste em saber se a inexistência, cientificamente comprovada, do conceito biológico ou genético de raça no concernente à espécie humana impede a utilização do critério étnico-racial para os fins de qualquer espécie seleção de pessoas.

    Relembro que o Supremo Tribunal Federal enfrentou essa questão no HC 82.424-QO/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa, conhecido como “Caso Ellwanger”.

    Em setembro de 2003, o Plenário desta Suprema Corte confirmou, por maioria de votos, a condenação de Siegfried Ellwanger, autor de livros de conteúdo anti-semita, pelo crime de racismo.

    Nesse precedente, o STF debateu o significado jurídico do termo “racismo” abrigado no art. 5°, XLII, da Constituição.

    De acordo com o Relator do feito, Min. Maurício Corrêa: “Embora hoje não se reconheça mais, sob o prisma científico, qualquer subdivisão da raça humana, o racismo persiste enquanto fenômeno social, o que quer dizer que a existência das diversas raças decorre da mera concepção histórica, política e social e é ela que deve ser considerada na aplicação do direito”.

    Cumpre afastar, para os fins dessa discussão, o conceito biológico de raça para enfrentar a discriminação social baseada nesse critério, porquanto se trata de um conceito histórico-cultural, artificialmente construído, para justificar a discriminação ou, até mesmo, a dominação exercida por alguns indivíduos sobre certos grupos sociais, maliciosamente reputados inferiores.

    Ora, tal como os constituintes de 1988 qualificaram de inafiançável o crime de racismo, com o escopo de impedir a discriminação negativa de determinados grupos de pessoas, partindo do conceito de raça, não como fato biológico, mas enquanto categoria histórico-social, assim também é possível empregar essa mesma lógica para autorizar a utilização, pelo Estado, da discriminação positiva com vistas a estimular a inclusão social de grupos tradicionalmente excluídos.

    É o que afirma a já citada Daniela Ikawa: “O uso do termo raça é justificável nas políticas afirmativas (…) por ser o mesmo instrumento de categorização utilizado para a construção de hierarquias morais convencionais não condizentes com o conceito de ser humano dotado de valor intrínseco ou com o princípio de igualdade de respeito (…). Se a raça foi utilizada para construir hierarquias, deverá também ser utilizada paradesconstruí-las. Trata-se de um processo de três diferentes fases: i. a construção histórica de hierarquias convencionais que inferiorizaram o indivíduo quanto ao status econômico e de reconhecimento pela mera pertença a determinada raça (…); ii. a reestruturação dessas hierarquias com base em políticas afirmativas que considerem a raça, voltando-se agora à consolidação do princípio de dignidade; iii. A descaracterização do critério raça como critério de inferiorização e o estabelecimento de políticas universalistas materiais apenas” (grifos meus).

    CONSCIÊNCIA ÉTNICO-RACIAL COMO FATOR DE EXCLUSÃO

    Outro aspecto da questão consiste em que os programas de ação afirmativa tomam como ponto de partida a consciência de raça existente nas sociedades com o escopo final de eliminá-la. Em outras palavras, a finalidade última desses programas é colocar um fim àquilo que foi seu termo inicial, ou seja, o sentimento subjetivo de pertencer a determinada raça ou de sofrer discriminação por integrá-la.

    A necessidade de superar essa atitude de abstenção estatal foi enfatizada pelo Min. Marco Aurélio, em sede doutrinária, da forma abaixo:

    “Pode-se afirmar, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proíbe a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos ‘construir’, ‘garantir’, ‘erradicar’ e ‘promover’ implicam, em si, mudança de ótica, ao denotar ‘ação’. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar – e encontrar, na Carta como página virada o sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima de tudo, afirmativa. E é necessário que essa seja a posição adotada pelos nossos legisladores. (…). É preciso buscar-se a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrou-se nesses anos um grande fracasso; é necessário fomentar-se o acesso à educação (…). Deve-se reafirmar: toda e qualquer lei que tenha por objetivo a concretude da Constituição Federal não pode ser acusada de inconstitucionalidade.

    (…)

    A prática comprova que, diante de currículos idênticos, prefere se a arregimentação do branco e que, sendo discutida uma relação locatícia, dá-se preferência – em que pese a igualdade de situações, a não ser pela cor – aos brancos. Revelam-nos também, no cotidiano, as visitas aos shoppings centers que, nas lojas de produtos sofisticados, raros são os negros que se colocam como vendedores, o que se dirá como gerentes. Em restaurantes, serviços que impliquem contato direto com o cliente geralmente não são feitos por negros”

    Thomas Skidmore, a propósito, baseado em estudo histórico sobre o tema, lembra o seguinte:

    “(…) tornava-se evidente que quanto mais escura fosse a pele de um brasileiro, mais probabilidades ele teria de estar no limite inferiorda escala socioeconômica, e isso de acordo com todos os indicadores – renda, ocupação, educação. Os jornalistas não tardaram em aderir,

    dando provas circunstanciais de um modelo de discriminação sutil mas indisfarçável nas relações sociais. Já não era possível afirmar que o Brasil escapara da discriminação racial, embora ela nunca tenha sido oficializada, desde o período colonial. O peso cada vez maior das evidências demonstrava justamente o contrário, mesmo sendo um tipo de discriminação muito mais complexo do que o existente na sociedade birracial americana.

    As novas conclusões levaram alguns cientistas sociais a atacar a ‘mitologia’ que predominava na elite brasileira a respeito das relações raciais em sua sociedade. Florestan Fernandes acusava seus compatriotas de ‘ter o preconceito de não ter preconceito’ e de se aferrar ao ‘mito da democracia racial’. Ao acreditar que a cor da pele nunca fora barreira para a ascensão social e econômica dos não brancos pudesse ser atribuída a qualquer outra coisa além do relativo subdesenvolvimento da sociedade ou da falta de iniciativa individual”

    Nessa mesma linha de raciocínio é possível destacar outro resultado importante no que concerne às políticas de ação afirmativa, qual seja: a criação de lideranças dentre esses grupos discriminados, capazes de lutar pela defesa de seus direitos, além de servirem como paradigmas de integração e ascensão social.

    Ainda sob essa ótica, há que se registrar uma drástica transformação na própria compreensão do conceito de justiça social, nos últimos tempos.

    Com efeito, para além das políticas meramente redistributivas surgem, agora, as políticas de reconhecimento e valorização de grupos étnicos e culturais.

    De acordo com Nancy Fraser e Axel Honneth: “Atualmente, as reivindicações por justiça social parecem, cada vez mais, divididas entre dois tipos. A primeira, e a mais comum, é a reivindicação redistributiva, que almeja uma maior distribuição de recursos e riqueza. Exemplos incluem reivindicações por redistribuição de recursos do Norte para o Sul, do rico para o pobre, e (não há muito tempo atrás) do empregador para o empregado.

    Certamente, o recente ressurgimento do pensamento do livre-mercado pôs os proponentes da redistribuição na defensiva. Contudo, reivindicações redistribuitivas igualitárias forneceram o caso paradigmático para a maioria das teorias de justiça social nos últimos 150 anos.

    Hoje, entretanto, estamos orientados cada vez mais a encontrar um segundo tipo de reivindicação por justiça social nas ‘políticas de reconhecimento’. Aqui o objetivo, na sua forma mais plausível, é um mundo diversificado, onde a assimilação da maioria ou das normas culturais dominantes não é mais o preço do respeito mútuo. Exemplos incluem reivindicações por reconhecimento de perspectivas distintas das minorias étnicas, ‘raciais’ e sexuais, assim como de diferença de gênero. Esse tipo de reivindicação tem atraído recentemente o interesse de filósofos políticos, aliás, alguns deles estão procurando desenvolver um novo paradigma de justiça social que coloca o reconhecimento no centro da discussão.

    De modo geral, então, estamos sendo confrontados com uma nova constelação. O discurso sobre justiça social, uma vez centrado na distribuição, está agora cada vez mais dividido entre reivindicações por redistribuição, de um lado, e reivindicações por reconhecimento do outro. Cada vez mais, as reivindicações por reconhecimento tendem a predominar”.

    Dito de outro modo, justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes.

    Esse modo de pensar revela a insuficiência da utilização exclusiva do critério social ou de baixa renda para promover a integração social de grupos excluídos mediante ações afirmativas, demonstrando a necessidade de incorporar-se nelas considerações de ordem étnica e racial.

    É o que pensa, por exemplo, Zygmunt Bauman, ao afirmar que “(…) a identificação é também um fator poderoso na estratificação, uma de suas dimensões mais divisivas e fortemente diferenciadoras. Num dos pólos da hierarquia global emergente estão aqueles que constituem e desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as no leque de ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência planetária. No outro polo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não tem o direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros – identidades de que eles próprios se ressentem, mas não tem permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar. Identidades que estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam”.

    As ações afirmativas, portanto, encerram também um relevante papel simbólico. Uma criança negra que vê um negro ocupar um lugar de evidência na sociedade projeta-se naquela liderança e alarga o âmbito de possibilidades de seus planos de vida. Há, assim, importante componente psicológico multiplicador da inclusão social nessas políticas.

    O PAPEL INTEGRADOR DA UNIVERSIDADE

    Todos sabem que as universidades, em especial as universidades públicas, são os principais centros de formação das elites brasileiras. Não constituem apenas núcleos de excelência para a formação de profissionais destinados ao mercado de trabalho, mas representam também um celeiro privilegiado para o recrutamento de futuros ocupantes dos altos cargos públicos e privados do País.

    O relevante papel dos estabelecimentos de ensino superior para a formação de nossas elites tem, aliás, profundas raízes históricas.

    É certo afirmar, ademais, que o grande beneficiado pelas políticas de ação afirmativa não é aquele estudante que ingressou na universidade por meio das políticas de reserva de vagas, mas todo o meio acadêmico que terá a oportunidade de conviver com o diferente ou, nas palavras de Jürgen Habermas, conviver com o outro (…).

    É preciso, portanto, construir um espaço público aberto à inclusão do outro, do outsider social. Um espaço que contemple a alteridade. E a universidade é o espaço ideal para a desmistificação dos preconceitos sociais com relação ao outro e, por conseguinte, para a construção de uma consciência coletiva plural e culturalmente heterogênea, aliás, consentânea com o mundo globalizado em que vivemos.

    Foi exatamente a percepção de que a diversidade é componente essencial da formação universitária que pautou as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América nos casos em que ela examinou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa, a exemplo de Bakke v. Regents of the University of Califórnia (1978), Gratz v. Bollinger (2003) e Grutter v. Bollinger (2003).

    Em tais julgados, a Suprema Corte daquele país avaliou, antes de tudo, a forma pela qual as instituições que adotaram ações afirmativas promoviam a diversidade étnico-racial. O Tribunal não examinou simplesmente se o critério adotado era constitucional ou inconstitucional em si mesmo. Exigiu, em cada caso, a demonstração de que o fundamento da discriminação positiva adotado pela instituição levaria a uma maior integração e igualdade entre as pessoas, segundo o critério denominado narrowly tailored.

     

    AS AÇÕES AFIRMATIVAS NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

    No caso Grutter v. Bollinger (2003), a Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, representada por seu reitor, Lee Bollinger, venceu a disputa por cinco votos (Justices Sandra Day O’Connor, John Paul Stevens, David Souter, Ruth Bader Ginsburg e Stephen Breyer) a quatro (Justices William Rehnquist, Antonin Scalia, Anthony Kennedy e Clarence Thomas).

    Nessa decisão, manteve-se em grande medida o entendimento do Justice Powell no caso Regents of the University of Califórnia v. Bakke, que permitia que a raça fosse considerada como um elemento da política de admissão para as instituições de ensino superior. As universidades foram, assim, autorizadas a utilizar o critério racial como um elemento a mais na seleção de seus alunos.

    A contenda originou-se em 1996, quando Barbara Grutter, uma mulher branca, moradora de Michigan, com notas relativamente altas no teste de admissão para faculdades de direito norte-americanas (Law School Admission Test – LSAT), não foi aceita como aluna da Faculdade de Direito da Universidade daquele Estado.

    Em dezembro de 1997, Barbara Grutter ingressou em juízo contra a Universidade, sob o argumento de que havia sofrido discriminação racial, o que violaria a cláusula de proteção da igualdade prevista tanto na XIV Emenda à Constituição dos Estados Unidos como no Título VI da Lei de Proteção aos Direitos Civis de 1964 (Civil Rights Act). Em 2001, o juiz Bernard A. Friedman decidiu que a política de admissão da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan era inconstitucional porque considerava a raça como fator de escolha, o que a tornaria praticamente indistinguível de um sistema de quotas.

     Em 2002, o Tribunal de Apelação reformou a decisão, citando o caso Bakke para autorizar o critério racial. Diante dessa decisão, Grutter apelou à Suprema Corte. O certiorari conferido ao pleito significou que, depois de 25 anos do julgamento do paradigmático caso Bakke, a Suprema Corte reexaminaria a constitucionalidade da utilização das políticas de ação afirmativa pelas universidades norte-americanas.

    A Suprema Corte acabou assentando que os meios utilizados pela Faculdade de Direito de Michigan haviam respeitados os ditames constitucionais, pois a instituição não tinha feito uma mera reserva de vagas, visto que cada candidato foi avaliado individualmente.

    Consta do voto condutor do caso Grutter v. Bollinger 539 U.S. 306 (2003), proferido pela Justice Sandra Day O’Connor, o seguinte: “Como parte de seus objetivos de ‘reunir uma turma que seja ao mesmo tempo excepcionalmente qualificada, do ponto de vista acadêmico, e amplamente diversificada’ a Escola de Direito procura ‘matricular uma massa crítica de estudantes que provém de minorias’. (…). O interesse da Escola de Direito não é simplesmente ‘assegurar que seu corpo discente seja integrado por um determinado porcentual de membros de um grupo específico meramente em razão de sua raça ou etnia (…). Ao revés, o conceito de ‘massa crítica’ da Escola de Direito é definido em face dos benefícios educacionais que a diversidade pode produzir.

    Esses benefícios são substanciais. Como o juiz da Corte Distrital enfatizou, a política de admissão da Escola de Direito promove ‘compreensão interracial’, ajuda a romper com os estereótipos raciais e permite que os estudantes aceitem melhor as pessoas de raças diferentes. (…). Esses benefícios são importantes e louváveis, porquanto ‘a discussão em sala de aula é tanto mais viva, inspirada, esclarecida e interessante’ quanto ‘mais diversificados forem os seus estudantes’”. 22 “Universidades (…) representam o local de treinamento de um grande número de nossos líderes (…).

    A fim de conferir legitimidade a nossos líderes aos olhos da comunidade, é necessário que o caminho para a liderança seja visivelmente aberto a indivíduos qualificados e talentosos de todas as raças e etnias. Todos os membros de nossa sociedade heterogênea devem ter confiança na abertura e integridade das instituições de ensino que fornecem esse treinamento (…). O acesso (…) à educação (…) deve estar aberto a indivíduos talentosos e qualificados de todas as raças e etnias, de modo a que todos os membros de nossa sociedade heterogênea possam ingressar nas instituições de ensino que fornecem o treinamento e a educação necessária ao êxito na América” 23 (…)

    “(…) a Equal Protection Clause não proíbe que a Escola de Direito utilize a ideia de raça nas decisões de admissão dos estudantes, desde que especificamente concebida para alcançar os benefícios educacionais que advém de um corpo discente plural”. 24

    Assim, a política de seleção de estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, segundo constou do voto vencedor, não conflita com a Lei de Direitos Civis de 1964 e tampouco com a XIV Emenda da Constituição, pois atenderia a um interesse imperativo do Estado, que é justamente o de assegurar a diversidade cultural.

    Em análise específica sobre a temática das ações afirmativas, Ronald Dworkin assentou: “Além de irônico, será triste se a Corte inverter agora seu veredicto tão antigo, pois acabam de tornar-se disponíveis provas impressionantes do valor da ação afirmativa nas instituições universitárias de elite. Os críticos da política há muito argumentam que, entre outras coisas, ela faz mais mal do que bem, pois exacerba, em vez de reduzir, a hostilidade racial, e porque prejudica os alunos oriundos de minorias que são selecionados pra escolas de elite, nas quais precisam competir com outros alunos cujas notas nos exames e outras qualificações acadêmicas são muito mais altas. Mas um novo estudo – The Shape of the River (A forma do rio), de William G. Bowen e Derek Bok – analisa uma grande base de dados sobre fichas e os históricos dos alunos e, com requintadas técnicas estatísticas, além de refutar essas afirmativas, demonstram o contrário. Segundo o estudo de River, a ação afirmativa alcançou um êxito impressionante: produziu notas mais altas de formatura entre os alunos universitários negros, mais líderes negros na indústria, nas profissões, na comunidade e nos serviços comunitários, bem como uma interação e amizade mais duradouras entre as raças do que, caso contrário, teria  sido possível”

    HETERO E AUTOIDENTIFICAÇÃO

    Além de examinar a constitucionalidade das políticas de açãoafirmativa, é preciso verificar também se os instrumentos utilizados para a sua efetivação enquadram-se nos ditames da Carta Magna.

    Em outras palavras, tratando-se da utilização do critério étnico-racial para o ingresso no ensino superior, é preciso analisar ainda se os mecanismos empregados na identificação do componente étnico-racial estão ou não em conformidade com a ordem constitucional.

    Como se sabe, nesse processo de seleção, as universidades têm utilizado duas formas distintas de identificação, quais sejam: a autoidentificação e a heteroidentificação (identificação por terceiros).

    Essa questão foi estudada pela mencionada Daniela Ikawa, nos seguintes termos: “A identificação deve ocorrer primariamente pelo próprio indivíduo, no intuito de evitar identificações externas voltadas à discriminação negativa e de fortalecer o reconhecimento da diferença.Contudo, tendo em vista o grau mediano de mestiçagem (por fenótipo) e as incertezas por ela geradas – há (…) um grau de consistência entre autoidentificação e identificação por terceiros no patamar de 79% -, essa identificação não precisa ser feita exclusivamente pelo próprio indivíduo. Para se coibir possíveis fraudes na identificação no que se refere à obtenção de benefícios e no intuito de delinear o direito à redistribuição da forma mais estreita possível (…), alguns mecanismos adicionais podem ser utilizados como: (1) a elaboração de formulários com múltiplas questões sobre a raça (para se averiguar a coerência da autoclassificação); (2) o requerimento de declarações assinadas; (3) o uso de entrevistas (…); (4) a exigência de fotos; e (5) a formação de comitês posteriores à autoidentificação pelo candidato.

    A possibilidade de seleção por comitês é a alternativa mais controversa das apresentadas (…). Essa classificação pode ser aceita respeitadas as seguintes condições: (a) a classificação pelo comitê deve ser feita posteriormente à autoidentificação do candidato como negro (preto ou pardo), para se coibir a predominância de uma classificaçãopor terceiros; (b) o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência; (c) o grupo de candidatos a concorrer por vagas separadas deve ser composto por todos os que se tiverem classificado por uma banca também (por foto ou entrevista) como pardos ou pretos, nas combinações: pardo-pardo, pardo-preto ou preto-preto; (d) o comitê deve ser composto tomando-se em consideração a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação sexual e de gênero e deve ter mandatos curtos”.

    Tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, desde que observem, o tanto quanto possível, os critérios acima explicitados e jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, são, a meu ver, plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional.

     

    RESERVA DE VAGAS OU ESTABELECIMENTO DE COTAS

    Principio afirmando que a política de reserva de vagas não é, de nenhum modo, estranha à Constituição, a qual, em seu art. 37, VIII, consigna o seguinte:“(…) a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão ”.

    Esta Suprema Corte, ao enfrentar a questão da reserva de vagas para portadores de deficiência, extraiu as mais amplas consequências do Texto Constitucional, no RMS 26.071, tendo o Relator, Min. Ayres Britto, asseverado, por ocasião do julgamento, que “(…) nunca é demasiado lembrar que o preâmbulo da Constituição de 1988 erige a igualdade e a justiça, entre outros, ‘como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos’, sendo certo que reparar ou compensar os fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica é política de ação afirmativa que se inscreve, justamente, nos quadros da sociedade fraterna que a nossa Carta Republicana idealiza a partir de suas disposições preambulares” (grifos meus).

    O acórdão referente a este julgado recebeu a seguinte ementa:

    “Concurso público. Candidato portador de deficiência visual. Ambliopia. Reserva de vaga. Inciso VIII do art. 37 da Constituição Federal. § 2º do art. 5º da Lei n. 8.112/90. Lei n. 7.853/89. Decretos n.s 3.298/99 e 5.296/2004. O candidato com visão monocular padece de deficiência que impede a comparação entre os dois olhos para saberse qual deles é o ‘melhor’. A visão univalente – comprometedora das noções de profundidade e distância – implica limitação superior à deficiência parcial que afete os dois olhos. A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988” (RMS 26.071, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 13/11/2007, 1ª Turma, DJ de 1º/2/2008 – grifos meus).

    Nesse voto, referendado pela Primeira Turma deste Supremo Tribunal Federal, o Min. Britto afastou a ideia de que o Texto Constitucional somente autorizaria as políticas de ação afirmativa nele textualmente mencionadas, tais como a reserva de vagas para deficientes físicos ou para as mulheres.

    Naquele acórdão, definiu-se que as políticas de ação afirmativa, compreendidas como medidas que tem como escopo “reparar ou compensar os fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica”, não configuram meras concessões do Estado, mas consubstanciam deveres que se extraem dos princípios constitucionais.

    No Brasil, entretanto, diferentemente do debate que se travou na Suprema Corte daquele país, não há dúvidas, a meu sentir, quanto à constitucionalidade da política de reserva de vagas ou do estabelecimento de cotas nas universidades públicas, visto que a medida encontra amparo no próprio Texto Magno, conforme salientado anteriormente.

    Nesse sentido, Roger Raupp Rios assevera o quanto segue: “Tomando como ponto de partida o conceito de ações afirmativas como medidas que se valem de modo deliberado de critérios raciais, étnicos ou sexuais com o propósito específico de beneficiar um grupo em situação de desvantagem prévia ou de exclusão, em virtude de sua respectiva condição racial, étnica ou sexual, deve-se registrar, de início, que tais iniciativas não são desconhecidas no direito brasileiro.

    Com efeito, diversamente do direito estadunidense, onde não há menção constitucional explícita a respeito desta possibilidade, o direito constitucional brasileiro contempla sua adoção. A proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos especiais, configura medida que se utiliza deliberadamente de critério sexual objetivando beneficiar um grupo que experimenta situação desvantajosa (basta considerar os níveis de desigualdade salarial entre homens e mulheres no exercício dos mesmos postos de trabalho ou os índices de escolaridade). Com relação aos deficientes físicos, a redação constitucional é ainda mais clara: dispõe sobre reserva percentual de cargos e empregos públicos para pessoas portadoras de deficiência.

    Nesta linha, pode-se ainda vislumbrar a determinação constitucional de medidas conscientes do ponto de vista étnico e racial relacionadas com a proteção das manifestações de culturas indígenas e afro-brasileiras, de modo expresso, merecendo tais grupos, portanto, atenção especial em virtude de suas situações de desvantagem histórica.

    A preocupação, registrada no capítulo da Comunicação Social, com a veiculação das culturas regionais na produção e radiodifusão sonora e televisiva, também pode ser considerada, ainda que com alguma atenuação, modalidade de ação afirmativa voltada para a situação de desvantagem ou até mesmo exclusão relativa à origem regional”

    O Min. Joaquim Barbosa, verbi gratia, em sede doutrinária, destaca o quanto segue: “Além do ideal de concretização da igualdade de oportunidades, figuraria entre os objetivos almejados com as políticas afirmativas o de induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas a subtrair do imaginário coletivo a idéia de supremacia e de subordinação de uma raça em relação à outra, (…).

    As ações afirmativas têm como objetivo não apenas coibir a discriminação do presente, mas, sobretudo, eliminar os ‘efeitos persistentes’ da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar.

    Esses efeitos se revelam na chamada ‘discriminação estrutural’, espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos dominados”. 29

    Para esse membro do STF, “(…) no plano estritamente jurídico (…), o Direito Constitucional vigente no Brasil é perfeitamente compatível com o princípio da ação afirmativa. Melhor dizendo, o Direito brasileiro já contempla algumas modalidades de ação afirmativa, inclusive em sede constitucional ”. 30

    Trago também a lição da Min. Cármen Lúcia, segundo a qual “(…) a Constituição brasileira tem, no seu preâmbulo, uma declaração que apresenta um momento novo no constitucionalismo pátrio: a ideia de que não se tem a democracia social, a justiça social, mas que o direito foi ali elaborado para que se chegue a tê-los (…).

    Verifica-se, na Constituição de 1988, que os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são verbos de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. (…)

    Somente a ação afirmativa, vale dizer, a atuação transformadora, igualadora pelo e segundo o Direito, possibilita a verdade do princípio da igualdade que a Constituição Federal assegura como direito fundamental de todos”.

    Admitida, pois, a constitucionalidade: (i) das políticas de ação afirmativa, (ii) da utilização destas na seleção para o ingresso no ensino superior, especialmente nas escolas públicas, (iii) do uso do critério étnico-racial por essas políticas e (iv) da modalidade de reserva de vagas ou do estabelecimento de cotas, passo, então, a examinar a necessária modulação desse entendimento, acentuando, em especial, a sua natureza transitória e a necessidade de observância da proporcionalidade entre os meios empregados e os fins a serem alcançados.

     

    TRANSITORIEDADE DAS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA

    É importante ressaltar a natureza transitória das políticas de ação afirmativa, já que as desigualdades entre negros e brancos não resultam, como é evidente, de uma desvalia natural ou genética, mas decorrem de uma acentuada inferioridade em que aqueles foram posicionados nos planos econômico, social e político em razão de séculos de dominação dos primeiros pelos segundos.

     

    PROPORCIONALIDADE ENTRE MEIOS E FINS

    Como bem observa Paulo Lucena de Menezes, o controle de constitucionalidade do tratamento diferenciado que se impõe às pessoas, nos termos da conhecida fórmula de Ruy Barbosa,33 é sempre casuístico, embora não se esgote no exame do fator de diferenciação utilizado pela regra discriminadora, incluindo, ainda, necessariamente, “(…) a análise da correspondência existente entre este e as disparidades adotadas (…), que deve ser considerada tanto no que se refere ao quesito pertinência (ou finalidade) da norma, como também no que tange à sua razoabilidade ou proporcionalidade. Esse exame, à evidência, não admite um grau elevado de abstração, pois ele só é factível quando definidos vários elementos que podem – e costumam – variar de caso para caso ”. 34

    Não basta, pois, como já adiantei acima, que as políticas de reserva de vagas sejam constitucionais sob o ponto de vista da nobreza de suas intenções. É preciso também que elas, além de limitadas no tempo, respeitem a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins colimados, em especial que sejam pautadas pela razoabilidade.

     

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