Adorno: A psicanálise da adesão ao fascismo

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Do blog da Boitempo

Por Theodor W. Adorno
 
A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista
 
Durante a última década, a natureza e o conteúdo dos discursos e panfletos de agitadores fascistas americanos foram submetidos à pesquisa intensiva de cientistas sociais. Alguns desses estudos, realizados segundo as linhas da análise de conteúdo, resultaram numa exposição abrangente [que se encontra] no livro Prophets of deceit, de L. Löwenthal e N. Guterman1. A imagem global obtida é caracterizada por dois traços principais. Em primeiro lugar, com a exceção de algumas recomendações bizarras e completamente negativas – confinar estrangeiros em campos de concentração ou expatriar sionistas –, o material de propaganda fascista nesse país preocupa-se pouco com questões políticas concretas e tangíveis. A maioria esmagadora das declarações dos agitadores é dirigida ad hominem. Elas são obviamente baseadas mais em cálculos psicológicos que na intenção de conseguir seguidores por meio da expressão racional de objetivos racionais. O termo “incitador da turba”, apesar de censurável por seu desprezo inerente pelas massas, é em boa medida adequado, já que expressa a atmosfera de agressividade emocional irracional propositadamente promovida por nossos pretensos hitleristas. Se é desrespeitoso chamar as pessoas de “turba”, é precisamente o objetivo do agitador transformar essas mesmas pessoas em uma “turba”, isto é, uma multidão inclinada à ação violenta sem nenhum objetivo político sensato, e criar a atmosfera do pogrom. O propósito universal desses agitadores é instigar metodicamente o que, desde o famoso livro de Gustave Le Bon, é comumente conhecido como “psicologia das massas”.
 
Em segundo lugar, o método dos agitadores é verdadeiramente sistemático e segue um padrão rigidamente estabelecido de “dispositivos” definidos. Isso não se liga apenas à unidade fundamental do propósito político – a abolição da democracia mediante o apoio de massa contra o princípio democrático –, mas mais ainda à natureza intrínseca do conteúdo e da apresentação da própria propaganda. A similaridade das expressões de vários agitadores – das figuras bem conhecidas, como Coughlin e Gerald Smith, aos pequenos disseminadores provincianos de ódio – é tão grande que basta em princípio analisar as declarações de um deles para conhecê-los todos2. Além disso, os próprios discursos são tão monótonos que, assim que se fica familiarizado com o número muito limitado de dispositivos em estoque, o que se encontra são intermináveis repetições. De fato, a reiteração constante e a escassez de idéias são ingredientes indispensáveis da técnica toda.
 
“Como seria impossível para o fascismo ganhar as massas por meio de argumentos racionais, sua propaganda deve necessariamente ser defletida do pensamento discursivo; deve ser orientada psicologicamente, e tem de mobilizar processos irracionais, inconscientes e regressivos.”
 
Na medida em que a rigidez mecânica do padrão é óbvia e ela mesma expressão de certos aspectos psicológicos da mentalidade fascista, não se pode evitar o sentimento de que o material de propaganda de tipo fascista forma uma unidade estrutural com uma concepção comum total, consciente ou inconsciente, que determina cada palavra que é dita. Essa unidade estrutural parece se referir à concepção política implícita tanto quanto à essência psicológica. Até agora, deu-se atenção científica apenas à natureza destacada e de certo modo isolada de cada dispositivo; as conotações psicanalíticas dos dispositivos foram sublinhadas e elaboradas. Agora com os elementos esclarecidos suficientemente, chegou a hora de centralizar a atenção no sistema psicológico em si – e pode não ser inteiramente acidental que o termo invoque a associação da paranóia –, o qual compreende e gera esses elementos. Isso parece ser o mais apropriado, caso contrário a interpretação psicanalítica dos dispositivos individuais permanecerá algo fortuita e arbitrária. Um tipo de quadro de referência teórica terá de ser desenvolvido. Na medida em que os dispositivos individuais pedem quase irresistivelmente uma interpretação psicanalítica, não é senão lógico postular que esse quadro de referência deveria consistir na aplicação de uma teoria psicanalítica mais abrangente e básica ao método global do agitador.
 
Tal quadro de referência foi fornecido pelo próprio Freud em seu livro Psicologia das massas e análise do eu, publicado em inglês já em 1922, muito antes que o perigo do fascismo alemão parecesse ser agudo3. Não é exagero dizer que Freud, apesar de pouco interessado na fase política do problema, claramente previu a origem e a natureza dos movimentos fascistas de massa em categorias puramente psicológicas. Se é verdade que o inconsciente do analista percebe o inconsciente do paciente, pode-se também presumir que suas intuições teóricas são capazes de antecipar tendências ainda latentes em um nível racional, mas se manifestando em um nível mais profundo. Pode não ter sido por acaso que, após a Primeira Guerra Mundial, Freud tenha voltado sua atenção para o narcisismo e os problemas do eu em sentido específico. Os mecanismos e conflitos instintuais envolvidos desempenham de forma evidente um papel cada vez mais importante na época atual, considerando que, de acordo com o testemunho de analistas praticantes, as neuroses “clássicas”, como a histeria de conversão, que serviram de modelos para o método, ocorrem menos freqüentemente agora que na época do próprio desenvolvimento de Freud, quando Charcot tratou clinicamente a histeria e Ibsen fez dela tema de algumas de suas peças. De acordo com Freud, o problema da psicologia de massa está bastante relacionado ao novo tipo de aflição psicológica tão característico da época que, por razões socioeconômicas, testemunha o declínio do indivíduo e sua subseqüente fraqueza. Embora Freud não se tenha preocupado com as mudanças sociais, pode-se dizer que ele revelou nos confins monadológicos do indivíduo os traços de sua crise profunda e a vontade de se submeter inquestionavelmente a poderosas instâncias (agencies) coletivas externas. Sem jamais ter se dedicado ao estudo dos desenvolvimentos sociais contemporâneos, Freud apontou tendências históricas por meio do desenvolvimento de seu próprio trabalho, da escolha de seus temas e da evolução dos conceitos-guia.
 
Continue lendo aqui.
 
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

4 Comentários

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  1. Freudcentrismo
    Como é empobrecedor a forma como tantos psicanalistas se restringem apenas a Freud, descartando as proposições de Jung como se elas sequer existissem.
    A teoria dos arquétipos se mostra extraordinariamente pertinente à questão abordada.
    O fascismo não é, como sugere o texto, um fenómeno restrito a épocas, mas sim uma conseqüência da “ativação” arquétipos que se mostram presentes na psique humana desde sempre. Claro que isso ocorre em virtude de circunstâncias culturais potencializadoras em conjunto com a manipulação, bem intencionada ou não, de conteúdos inconscientes.

  2. A Esperança já morreu

    Um comentarista desse site de nome Alexandre Weber postou o seguinte comentário:

    “Não existe fascismo no Brasil

    sab, 27/10/2018 – 18:30

    Este negócio de fascismo é o inimigo que não existe que é vencido pelo mocinho de araque. No Brasil não existe fascismos, existem patrimonialismo, oligarquias, corporativismo, compadrios,etc… E isto nem o Haddad, nem o Bolsonaro ousam sequer falar que existem, quanto mais combaterem.

    A diferença entre o Haddad e o Bolsonaro é que o segundo é uma incógnita, já o Haddad é a certeza do que deu errado, com mais do mesmo.

    O Povo não é burro! 

    Só existe esperança com o Bolsonaro, que pode ou não vingar, já o PT no poder é lambança que não se aguenta mais”.

     

    Eu lhe perguntei:

    “Quem espera nunca alcanca

    dom, 28/10/2018 – 11:17

    Se o problema do Brasil não é o fascismo mas o patrimonialismo, as oligarquias, o corporativismo, o compadrio, etc. e se o Bolsonaro nem sequer ousa reconhecer a existência de tais problemas, quanto mais combatê-los, como ele pode ser a única esperança?
    Esperança de que mesmo, Cara Pálida?”

     

    O Alexandre Weber treplicou:

     

    “A esperança é a última que morre

    dom, 28/10/2018 – 18:21

    Esperança de que o discurso de campanha seje isto mesmo, discurso de campanha e as ações  e medidas de governo algo muito mais bem elaborado, levando em consideração as complexidades e usando os recursos humanos, técnicos, artisticos, etc… para orientá-las.

    Mudar o governo, do binário ineficiente PT/PSDB para um novo time já é uma grande mudança.

    Sangue novo, idéias novas a serem testadas, o mundo mudou e velhas cabeças conservadoras, que só pensam em manter o poder para usufruir de privilégios inconfessáveis não podem perenizar.

    Bem vindo novos ares.

    Posso estar errado, mas pior do que está, só com uma guerra interna deflagrada, o que não me parece ser uma possibilidade nem remota por enquanto. Por enquanto todas as autoridades reforçam que as instituições democráticas continuam firmes, fortes e atuantes e que o respeito a Lei será mantido”.

     

    Pois bem. A esperança Weberiana no que diz respeito ao combate ao patrimonialismo pelo Bolsonaro já morreu. O Bolsonaro vê o poder público como uma extensão da sua casa. Olha o que o Troglodita disse sobre a Folha de São Paulo:

    “Não quero que ela acabe, mas no que depender de mim, na propaganda oficial do governo, imprensa que se comportar dessa maneira, mentindo descaradamente, não terá apoio do governo federal”.

     

    O Bolsonaro não só não vai combater, como vai ele próprio exercer o patrimonialismo.

  3. Como se pode abordar um tema

    Como se pode abordar um tema destes citando o grande Freud sem mencionar um dos seus famosos e revolucionários discípulos, Wilhelm Reich, que escreveu em 1933 a primeira edição de “Pscicologia de Massas do Fascismo”, em plena tomada do poder pelo nazismo na Alemanha?

    Uma sintese do livro: “Este estudo clássico é uma contribuição única à compreensão de um dos fenômenos cruciais do nosso tempo – o fascismo. Para W. Reich, o fascismo é a expressão da estrutura irracional do caráter do homem médio, cujas necessidades biológicas e primárias e cujos impulsos são reprimidos há milênios”. .

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