Democracia e Religião em Tempos Tenebrosos, por Marcos Alves da Silva

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Amor, Verdade, Liberdade e o Anticristo

(Democracia e Religião em Tempos Tenebrosos)

por Marcos Alves da Silva

Nessas eleições presidenciais de 2018, a religião despontou como fator decisivo. As questões religiosas não foram apenas tema de discussão. Líderes evangélicos envolveram-se na promoção frenética de um dos candidatos e, sem os escrúpulos e a equidistância mantida noutros tempos, fizeram da opção política uma causa religiosa a ser defendida com o ardor próprio da fé. Debates que a princípio seriam travados no campo secular converteram-se em questões religiosas. A palavra deslocou-se do palanque ao púlpito, da praça ao templo. Com a percepção da força de convencimento do discurso religioso, este foi prontamente apropriado e assimilado pelo discurso político. A cooptação da fala religiosa na conjuntura política brasileira atual desafia reflexão a partir do próprio discurso religioso. Seguem algumas linhas com esta intenção.

O que de plano aflora é o paradoxo da utilização da tradição cristã que sempre afirmou valores como amor, verdade e liberdade para legitimar um discurso de ódio, de falsificação e de discriminação, de matiz inequivocamente autoritário.

A gritante contradição não é nova. Basta lembrar a Inquisição. Em nome da fé cristã e na defesa dela foi arquitetado um engenho de horror, martírios e crueldades. Aqueles reconhecidos como hereges penaram sob a tortura dos inquisidores cristãos e arderam em suas fogueiras. Como explicar essa degeneração do ideal e da pregação cristã?

Experiência histórica mais recente pode ser também evocada. Na década de 30 do século XX, a Alemanha passava por uma crise devastadora. A inflação era gigantesca, o desemprego generalizado. Uma ideia foi tomando força. Ela não nasceu da cabeça de Adolf Hitler. Era difusa. Ele apenas soube catalisar os ódios, eleger inimigos a serem eliminados, apelando ao “espírito alemão”, uma espécie de patriotismo exacerbado e triunfante. A insatisfação e o ódio generalizados foram canalizados contra os judeus, os comunistas, os ciganos, os homossexuais e outras minorias. Ao mesmo tempo se exaltava a Nação como uma abstração: “Alemanha, Alemanha acima de todos os ares”!

Esta onda avassaladora ganhou expressão simbólica no Führer. A solução reducionista da complexidade dos problemas sociais carece de um líder forte e inquestionável para por em ordem o caos social.

Especialmente a partir de 1933, as hierarquias eclesiásticas das Igrejas Protestantes da Alemanha cederam ou foram cooptadas integralmente pela ideologia do Reich. O discurso nazista foi assumido por suas lideranças religiosas de forma massiva. Todavia, houve resistência vigorosa pela chamada Igreja Confessante (em alemão, Bekennende Kirche). A oposição não era de uma Igreja propriamente dita, mas, sim, de um movimento cristão minoritário de resistência ao Partido Nazista na Alemanha. Na fundação deste movimento estavam teólogos da envergadura de Karl Barth e lideres como o pastor Luterano Martin Niemöller, que acabou preso e enviado a um campo de concentração.

Neste tempo de cegueira e abandono generalizado da memória da História recente, merece menção o nome de Dietrich Bonhoeffer, um dos maiores teólogos do Século XX e um cristão extraordinário. Ele participou ativamente com outros tantos pastores da “Igreja Confessante” da oposição às atrocidades perpetradas pelo autoritarismo nazista. Foi preso em 1943 e enforcado por ordem expressa e direta de Hitler em 09 de abril de 1945, poucos dias antes da derrota ser imposta definitivamente aos nazistas.

A memória da resistência de cristãos como Dietrich Bonhoeffer à intolerância, ao ódio às minorias, à violência, à força bruta deve ser recuperada para não repetirmos equívocos tão graves e trágicos.

Mesmo que não haja exata correspondência, é certo que algo muito semelhante ocorre no Brasil. Um projeto fundado no ódio a determinadas pessoas, grupos políticos e minorias, que adota idêntico slogan nazista “O Brasil acima de tudo” – “Deutschland über alles” (Alemanha acima de tudo) tem recebido apoio massivo de muitos evangélicos. Este erro não pode ser cometido novamente de forma inadvertida. A memória de Dietrich Bonhoeffer e de milhares de outros cristãos que lutaram contra o totalitarismo clama contra esta aberração. Um mínimo de História implica um rotundo não à toda pretensão política fundada no ódio, na farsa e no autoritarismo, ainda que travestida em discurso religioso. É hora de lembrarmos a chamada insistente de Dietrich Bonhoeffer à ação responsável que a autêntica fé cristã reclama. Ele dizia: “Não somos Cristo, mas se quisermos ser cristãos, tal importaria que participássemos da amplitude do coração de Cristo em ação responsável, que em liberdade apanha a hora exata e enfrenta o perigo e se dispõe a um comparecer autêntico, que não é ditado pelo medo, mas brota do amor libertador e redentor de Cristo para com todos os que sofrem”.

Como, porém, explicar o ardor de imensos segmentos dos evangélicos na defesa do anticristo, isto é, de tudo que é contrário à misericórdia, ao amor e à generosidade??? Como entender o apoio incondicional a alguém que hasteou a bandeira do ódio e da violência como seus signos distintivos??? Como conceber, pelo menos com alguma clareza, a razão e o porquê de os símbolos de tudo que é contrário à fé cristã, como a xenofobia, a homofobia, o racismo, a misoginia, o desprezo pelo diferente serem assumidos com normalidade e sem susto por pessoas sinceras que confessam a fé em Cristo???

Algum exercício de inteligência do fenômeno de tamanha magnitude e efeitos precisa ser encarado. Levanta-se, aqui, apenas uma hipótese, não como de quem que vê tudo de fora, como um observador distante e isento, mas, a partir das entranhas deste mundo chamado evangélico.

A hipótese é de que os neopentecostais, mas não somente eles, os evangélicos em geral souberam captar bem quais são os dois demônios que habitam a alma dos nossos dias: o medo e a intolerância (ódio). Repita-se, não que essas tentações sejam novas na História do Cristianismo. Não dá para esquecer a Inquisição. Não é possível ignorar os horrores promovidos por Torquemada, na Espanha, para citar um católico e não dá para olvidar a morte horrenda de um Servetus na fogueira calvinista de Genebra. Não é possível fechar os olhos à bênção que as Igrejas deram a regimes totalitários que destroçaram homens, mulheres e crianças em séculos recentes.

O fenômeno assustador que agora assistimos é potencializado por uma horda de pastores ensandecidos que se entregam de corpo e alma à crença em absurdos e fábulas, as mais elementares, que, com ar de modernidade, são chamadas de fake news. Neste clima de medo (do outro) a razão escapa. O medo é o ingrediente incendiário do ódio e da desfiguração do outro, do diferente, inimigos são criados e são indispensáveis como objetos do ódio.

O que é disseminado no “mundo dos evangélicos”, mas não somente nele, para atiçar os dois demônios??? Não é possível desprezar a força dos bens simbólicos, especialmente no mundo religioso. As palavras mágicas que enfeitiçam o imaginário coletivo dos evangélicos são: “Fórum São Paulo”, “Kit Gay”, “Ursal”, “Comunistas”, “Ideologia de Gênero”, etc. A mentira e o deliberadamente falso foram repetidos intensamente até converterem-se em verdade de fé, em um dogma. Essa é a trilha sonora dos medos submersos que devem ser trazidos à tona. O medo e o desprezo pelas pessoas estigmatizadas do mundo são moradores fixos do canto mais obscuro da alma humana. Eles podem ser atiçados e os dois demônios vêm à tona verborrágicos e atuantes: o Medo e a Intolerância.

Pessoas boas e de fé singela que dificilmente sucumbiriam à tentação da intolerância e à discriminação de outros seres humanos, quando tomadas pelo medo se desfiguram. Parece não haver razão que lhes chame à razão. Como praga, o medo e a repulsa ao diferente e o ódio àqueles que foram erigidos como inimigos da fé alastraram-se entre os evangélicos. E por incrível que possa parecer, aquele que hoje representa tudo que é anticristo — isto é, contrário à compaixão, à generosidade, à solidariedade, à tolerância — soube atiçar os demônios do medo e despertar os diabos do ódio, cooptando o apoio massivo de crentes de boa-fé. O que é evidentemente falso converteu-se em dogma, em matéria de fé e como tal passou a ser defendido.

A própria afirmação de Cristo, “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” tornou-se mote de campanha daquele que, em termos bíblicos, poderia com muita propriedade ser cognominado de “o pai da mentira”, o “pai do fake news”. Exorcizar esses demônios em tempo tão exíguo é, de fato, exercício hercúleo. Todavia, a esperança é uma virtude imantada de força para a fé cristã. É o momento de reafirmar e seguir crendo no que ensinou Dom Hélder Câmara: “A razão não adere ao erro total”. Lamentável é que, como no século passado, a humanidade só foi chamada à razão depois que o regime nazista havia praticado atrocidades inomináveis. Para quem crê, todavia, sempre haverá tempo. Pode crer, é incrível…

Marcos Alves da Silva – Pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil. Graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Independente de São Paulo, Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Advogado em Curitiba – PR.
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. Democracia e religião

    Que bom ver lucidez em tempos tenebrosos. Parabéns ao pastor pela preocupação com os rumos que muitos cristão estão tomando. 

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