Thomas S. Kuhn e a crise do paradigma constitucional não escrito brasileiro, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Thomas S. Kuhn e a crise do paradigma constitucional não escrito brasileiro

por Fábio de Oliveira Ribeiro

A crise constitucional em que o Brasil se encontra é evidente. Mas não podemos dizer que ela nasceu em 2016. De fato, o golpe jurídico-midiático-parlamentar foi apenas o sintoma de uma ferida antiga e pré-existente que começou a se tornar purulenta com a eleição e reeleição de Lula e de Dilma Rousseff.

Apesar de todas nossas constituições republicanas conterem dispositivos assegurando o princípio da igualdade perante a Lei, as instituições políticas brasileiras foram criadas e aperfeiçoadas para assegurar a exclusão política de índios, escravos negros, mestiços pobres e seus descendentes. No momento em que o PT ousou incluir no orçamento e, portanto, na política, a parcela excluída da população a reação daqueles que se consideram legítimos donos do país se manifestou. A imprensa se encarregou de espalhar o ódio de classe requentando o discurso anti-comunista para criar sua variante pós-moderna (o anti-petismo).  

O milagrinho econômico represou os ódios senhoriais. Mas eles se tornaram manifestos em razão da crise econômica, cuja culpa não pode ser atribuída exclusivamente aos petistas. De fato, a crise política iniciada pela recusa de Aécio Neves de aceitar a derrota eleitoral contaminou a economia. A imprensa aplaudiu Dilma Rousseff por ter escolhido um Ministro da Fazenda neoliberal, mas culpou a presidenta e não o neoliberalismo pelo agravamento da crise econômica. 

 

A partir de 2015 as regras constitucionais que garantem o Estado de Direito, muitas das quais já haviam sido fragilizadas durante o julgamento do Mensalão – impossível não lembrar que Luiz Fux condenou José Dirceu porque ele não provou sua inocência quando a CF/88 diz exatamente o oposto, ou seja, que o réu é presumivelmente inocente até o órgão de acusação provar a materialidade do delito, a autoria e a culpabilidade do acusado – foram substituídas por um simulacro.

O sistema de justiça, que deveria funcionar de maneira impessoal para garantir o regime constitucional democrático, se tornou um aparelho político-ideológico a serviço dos interesses senhoriais (e salariais) dos promotores e juízes. A tendência de transformar o Processo Penal num instrumento de barganha, pressão e exclusão política (iniciado durante o julgamento do Mensalão) se intensificou. A racionalidade jurídica, que limita a oferta e recebimento de denúncias quanto existem indícios seguros de materialidade do crime, autoria e culpabilidade, foi substituída pela paranoia persecutória fundada em convicções.

Desde o PowerPoint de Deltan Dellagnol, que foi considerado meio de prova por Sérgio Moro, o processo é a continuação da guerra política por outros meios. Atendendo os promotores do espetáculo (tanto do MPF quanto da imprensa), na prática juízes de primeira, segunda e última instância passaram a reescrever a Constituição e a legislação penal e processual penal para tentar garantir o resultado das eleições presidenciais de 2018.

Lula foi afastado da disputa mediante uma condenação injusta proferida por um juiz incompetente. A condenação foi mantida pelo TRF-4. STJ e STJ rejeitaram a tese de que o réu tem direito de aguardar o trânsito em julgado da sentença condenatória em liberdade. A imprensa e os juízes parecem ter acreditado que a prisão do sapo barbudo e sua manutenção no cárcere levaria o PT a escolher um candidato inexpressivo, o que facilitaria a vitória de um candidato ‘mais legítimo’ aos olhos daqueles que se consideram proprietários do Brasil.

Ledo engano. O PT apostou no aprofundamento da crise. Os petistas indicaram Lula como candidato e ele obteve uma importante vitória na ONU. A crise constitucional local se tornou um fenômeno mundial. A pressão sobre o sistema de justiça se tornou irresistível. Se respeitar a decisão da ONU o STF sofrerá consequências indesejadas dentro do país até mesmo pelos Ministros que não são abertamente reacionários e anti-petistas. Se não fizer isso, ou seja, se manter o sequestro político de Lula contra uma decisão jurídica válida e eficaz que deve ser cumprida pelo Brasil, o STF também irá comprometer sua imagem fora do Brasil.

“Na medida em que se dedica à ciência normal, o pesquisador é um solucionador de quebra-cabeças e não alguém que testa paradigmas. Embora ele possa, durante a busca da solução de um quebra-cabeça determinado, testar diversas abordagens alternativas, rejeitando as que não produzem o resultado desejado, ao fazer isso ele não está testando o paradigma. Assemelha-se ao enxadrista que, confrontado com um problema estabelecido e tendo à sua frente (física ou mentalmente) o tabuleiro, tenta vários movimentos alternativos na busca de uma solução. Essas tentativas de acerto, feitas pelo enxadrista ou pelo cientista, testam a si mesmas e não as regras do jogo. São possíveis somente enquanto o próprio paradigma é dado como pressuposto. Por isso, o teste de um paradigma ocorre comente depois que o fracasso persistente na resolução de um quebra-cabeça importante dá origem a uma crise.” (A Estrutura das Revoluções Científicas, Thomas S. Kuhn, Perspectiva, São Paulo 13ª edição, 2017, p. 242)

O fenômeno que Thomas S. Kuhn estudou na ciência também ocorre na política:

“As revoluções políticas visam realizar mudanças nas instituições políticas, mudanças essas proibidas por essas mesmas instituições que se quer mudar. Consequentemente, seu êxito requer o abandono parcial de um conjunto de instituições em favor de outro. E, nesse interim, a sociedade não é integralmente governada por nenhuma instituição. De início, é somente a crise que atenua o papel das instituições políticas, do mesmo modo que atenua o papel dos paradigmas. Em números crescentes os indivíduos alheiam-se cada vez mais da vida política e comportam-se sempre mais excentricamente no interior dela. Então, na medida em que a crise se aprofunda, muitos desses indivíduos comprometem-se com algum projeto concreto para a reconstrução da sociedade de acordo com uma nova estrutura institucional. A essa altura, a sociedade está dividida em campos ou partidos em competição, um deles procurando defender a velha constelação institucional, o outro tentando estabelecer uma nova. Quando ocorre essa polarização, os recursos de natureza política fracassam. Por discordarem quanto à matriz institucional a partir da qual a mudança política deverá ser atingida e avaliada, por não reconhecerem nenhuma estrutura suprainstitucional competente para julgar diferenças revolucionárias, os partidos envolvidos em um conflito revolucionário devem recorrer finalmente às técnicas de persuasão de massa, que seguidamente incluem a força. Embora as revoluções tenham tido um papel vital na evolução das instituições políticas, esse papel depende do fato de aqueles serem parcialmente eventos extrapolíticos e extrainstitucionais.” (A Estrutura das Revoluções Científicas, Thomas S. Kuhn, Perspectiva, São Paulo 13ª edição, 2017,  p. 179)

A Constituição Federal pode ser considerada um paradigma político-jurídico-civilizatório do Estado de Direito que se pretendeu fundar em 1988 e que deveria ser assegurado pelos juízes. Na prática ele foi substituído por um simulacro constitucional em razão do atavismo judicial que instrumentaliza a exclusão política dos eleitores de Lula. A estratégia do PT e a vitória de Lula na ONU provocaram uma crise do simulacro. Portanto, se enganam tanto os juristas que pensam que o Brasil tem uma “constituição escrita em 1988” ou que a validade e eficácia dela pode ser reestabelecida quanto aqueles que admitem a hipótese de que a “constituição não escrita desde os tempos coloniais” poderá continuar em vigor indefinidamente.

A crise em que nós nos encontramos é muito mais grave do que imaginam os juristas de direita, de centro e de esquerda. A julgar pelo que disse Thomas S. Kuhn ela não irá ser solucionada antes ou durante as eleições de 2018. As eleições deixaram de ser livres e soberanas e o resultado delas será inevitavelmente questionado quer Lula seja eleito quer ele não possa concorrer à presidência. De fato, com ou sem Lula na urna eletrônica o abismo que sempre existiu entre os dois povos que habitam esse imenso território chamado Brasil terá que ser preenchido e/ou definitivamente solucionado.

O espaço para a conciliação de classes e para a construção de pontes entre elas foi definitivamente rompido (de um lado pelos juízes e pela imprensa; de outro pelo PT e pela ONU). O surgimento de um novo paradigma constitucional terá que ocorrer com ou sem violência fundadora. Aqueles que apostarem na preservação ou ampliação do abismo social (refiro-me especialmente aos promotores e juízes) irão inevitavelmente colher os frutos podres que tem plantado. Em algum momento eles mesmos começarão a ser tratados de acordo com os padrões bestiais que utilizam para perseguir as lideranças populares.

Fábio de Oliveira Ribeiro

2 Comentários

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  1. É isso. Não há volta

    É isso. Não há volta possivel. Uma revolução depende de ruptura do tecido social. No curto prazo, vale o escrito pelos senhores da casa grande. A crise econômica, no Brasil e no mundo, é profunda e sua superação, se ocorrer, será no longo prazo. OS elementos de uma tempestade perfeita estão no horizonte.

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