Um debate impossível

Durante a disputa pela Prefeitura de São Paulo, em 1985, um jornalista perguntou a FHC se ele acreditava ou não em Deus. FHC engasgou, enrolou, tergiversou, nem afirmou nem negou que acreditava. A crença ou não em Deus é irrelevante para a disputa de qualquer cargo eletivo num país que garante a liberdade de consciência e de religião. Mesmo assim, Jânio Quadros explorou exaustivamente a gafe de FHC e ganhou a eleição. Rejeitado pela maioria carola do eleitorado FHC foi facilmente derrotado.  

Em 1989, Fernando Collor perguntou a Lula se ele sabia a diferença entre a Fatura e a Duplicata. A pergunta era totalmente irrelevante dentro de um contexto político, mas funcionou como uma bomba atômica. Preparado para debater questões muito mais relevantes e profundas, Lula não foi capaz de responder essa questão de Direito Comercial. Sua incapacidade foi interpretada e utilizada como falta de capacidade para ocupar um cargo político relevante. O exercício da presidência não requer conhecimento tão específico, mas esse fato se tornou irrelevante. A falta de resposta produziu um estrago imenso na campanha do petista.

Esses dois exemplos evidenciam como questões não políticas podem interferir numa eleição. Essa interferência, contudo, pode ser apenas aparente. No debate em que Jair Bolsonaro compareceu ele foi chamado de machista, homofóbico e misógino. As afirmações de Guilherme Boulos certamente não fizeram o candidato do PSL perder seu eleitorado cativo. O mais provável é que os eleitores do mito tenham considerado um elogio o que Boulos julga ser uma ofensa. 

Fernando Haddad tem explorado o fato de Bolsonaro não ir aos debates na TV. As justificativas médicas apresentadas pelo candidato do PSL para evitar os debates são, no mínimo, suspeitas. Bolsonaro não interrompeu sua campanha eleitoral frenética. Além disso, os debates na TV podem respeitar as limitações do candidato. Ambos podem ficar sentados, intervalos podem ser feitos a cada 30 minutos, médicos podem ficar nos bastidores para atendê-lo.

Independentemente da ausência de Bolsonaro nos debates ser interpretada como covardia (característica inadmissível em alguém que gosta de dizer que foi e/ou é militar), a pergunta que me ocorre nessa fase da disputa presidencial é outra. Bolsonaro tem condições de debater o que quer que seja com alguém?

O candidato do PSL vive numa bolha de verdades alternativas (1964 não foi um golpe militar, a tortura e o assassinato político não são atos criminosos, a ditadura militar fez mais bem do que mal ao Brasil, ele próprio é um mito e tem condições de ser presidente, o comunismo do PT é um perigo mundial, etc…) reforçadas por fake news criadas e difundidas à exaustão. A campanha de Bolsonaro não é baseada em propostas políticas e/ou num discurso elaborado para convencer racionalmente o eleitorado de que o Brasil ficará melhor nas mãos do PSL do que no do PT.

Tudo que Bolsonaro faz é espalhar mentiras para desqualificar seu adversário. A campanha dele se esforça diariamente para impedir a população brasileira de debater as consequências econômicas desastrosas do que ele disse que fará (mais privatizações, menos direitos) e/ou daquilo que ele pretende fazer sem nem mesmo ter pedido consentimento à população (uso indiscriminado da violência contra adversários, sindicalistas, imprensa, gays, negros, etc…).

Nesse sentido, me parece evidente que Bolsonaro não tem o que debater. Ele não tem nem mesmo quaisquer motivos para ir a um qualquer debate. A campanha dele não visa o convencimento do eleitorado. De fato, a candidatura do PSL pressupõe uma capitulação da maioria da população. No fundo, os estrategistas militares da campanha de Bolsonaro querem que ele seja aceito incondicionalmente pela maioria do eleitorado.

Ao se render ao mito, a população brasileira não poderá mais questionar Bolsonaro. Qualquer decisão dele terá sido automaticamente legitimada. Qualquer discordância ou oposição será inadmissível. A resistência política pacífica será interpretada como traição e, portanto, reprimida de maneira violenta. As notícias ruins não poderão ser divulgadas. Se as notícias boas não existirem elas terão que ser inventadas, caso contrário…

Nenhuma ditadura procura se legitimar pelo debate. Muito pelo contrário. Nos regimes ditatoriais, a primeira coisa que o tirano precisa abolir é justamente o hábito das pessoas de debater economia e política. Não há democracia sem direito à negociação e, quando esta é impossível, à oposição. Uma ditadura só consegue se manter enquanto preserva a hierarquia e a submissão dos governados.

O debate entre Haddad e Bolsonaro é, portanto, impossível. A coexistência entre a democracia e a ditadura é uma impossibilidade lógica. Esses regimes políticos são mutuamente excludentes. Todavia, quem escolhe viver e/ou liderar uma ditadura não pode tolerar a democracia de maneira alguma. Mas quem defende a preservação da democracia se vê constrangido a tolerar os tiranetes mesmo que eles considerem isso irrelevante.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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