Ronaldo Bicalho
Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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A crise elétrica e a falta de coordenação

Do Blog Infopetro

Por Ronaldo Bicalho

Em postagem recenteRenato Queiroz chamou a atenção para a necessidade de decisões colegiadas no setor elétrico. Esse fato está relacionado a um traço essencial da operação e expansão desse setor que é a necessidade de coordenação: coordenação técnica, coordenação econômica e coordenação política.

Complexidade e Coordenação no setor elétrico

Em termos físicos, a característica fundamental de um sistema elétrico é a dramática interdependência que existe entre as partes que o compõem. Essa interdependência radical nasce de dois atributos básicos da eletricidade e dos processos associados a ela.

1) Como a eletricidade não pode ser, economicamente, estocada, os processos de geração, transmissão/distribuição e utilização devem ocorrer simultaneamente.

2) Como todos esses processos, no limite, estão no mesmo campo elétrico, o que acontece em qualquer um deles tem impacto instantâneo sobre os outros, e vice-versa.

Assim, em função da não-estocabilidade do seu produto e do caráter sistêmico dos seus processos, o setor elétrico apresenta uma interdependência entre os seus processos – geração, transmissão, distribuição e utilização -, que não será encontrada em outros setores da economia.

Essa interdependência física entre os processos se estende aos agentes econômicos que detêm o controle sobre eles – geradores, transportadores, distribuidores e consumidores. Dessa forma, à interdependência física entre os processos corresponde uma interdependência econômica entre os agentes.

Sistemas que apresentam graus de interdependência como os encontrados no setor elétrico adquirem um atributo crucial: a complexidade.

Complexidade, nesse caso, implica na dificuldade de se prever os efeitos de um evento que ocorre em uma parte do sistema sobre o sistema como um todo. Na medida em que o resultado final desse evento vai ser fruto da sua interação com todos os outros eventos que estão ocorrendo no sistema, qualquer previsão baseada na simples linearidade dos efeitos perde a serventia.

Desse modo, a previsibilidade sobre os resultados de uma ação física ou econômica, resultante de uma decisão técnica ou econômica, torna-se tão difícil que acaba impedindo a própria ação ou decisão.

Diante disso, a redução da imprevisibilidade se colocou desde os primórdios como uma questão-chave para o desenvolvimento do setor elétrico. Sem trazer essa imprevisibilidade/complexidade para níveis manejáveis pelos agentes, não seria possível desenvolver esse setor.

A solução encontrada foi a coordenação. A compatibilização prévia das ações e decisões dos agentes foi o mecanismo utilizado para viabilizar, historicamente, a operação e a expansão do setor elétrico. Compatibilizar ações e decisões significa acertar antes o que pode e o que não pode ser feito, quem pode e quem não pode fazê-lo, quais são as penalidades para quem descumprir o trato e quem as aplica.

Dessa maneira, o setor elétrico é uma atividade econômica em que um gerador não produz eletricidade exclusivamente a partir da sua decisão individual, mas depende da decisão de um agente especial, que representa os interesses acordados entre todos os elementos que compõem o sistema, de colocá-lo para gerar no sistema; ou seja, de despachá-lo. Graças a isto, a entrada desse gerador é compatível com o conjunto de ações/decisões dos outros agentes que estão presentes no sistema – outros geradores, transmissores, distribuidores e usuários -, e, portanto, não coloca em risco a integridade desse imenso condomínio que é o setor elétrico.

Note que essa coordenação já é necessária para as decisões de curto prazo – as decisões de produzir. Quando as decisões envolvem o longo prazo – decisões de investir –, a demanda por coordenação aumenta significativamente.

Dessa forma, não há operação e expansão de setor elétrico sem coordenação. E não é apenas coordenação técnica; é coordenação técnica e econômica. No contexto do setor elétrico, elas são indissociáveis.

A partir da percepção da sociedade de que a eletricidade era essencial para o seu desenvolvimento e para o seu bem-estar, a natureza pública prevaleceu sobre a natureza privada da atividade elétrica, e o objetivo, o espaço e os agentes da coordenação passaram a ter um caráter público, portanto, sujeitos ao interesse público.

Nesse sentido, coube, e ainda cabe, ao Estado o papel de definidor em última instância da coordenação técnica e econômica que vai prevalecer no setor elétrico, incorporando, de forma inescapável, a dimensão política à atividade elétrica.

Essa incorporação significa que a complexidade adquire uma face política, representada pela dificuldade de prever os resultados da interação entre os agentes políticos, na defesa dos interesses dos atores presentes no mercado elétrico.

Nesse contexto, a coordenação política desses interesses surge em resposta à necessidade de reduzir essa imprevisibilidade, de tal forma a reduzir as incertezas associadas à evolução no tempo da intervenção do Estado no mercado elétrico; tanto no seu âmbito micro, representado pelo marco regulatório, quanto no seu âmbito macro, representado pelo conjunto de políticas públicas que envolvem esse mercado.

Assim, se a complexidade é o atributo essencial do setor elétrico, a coordenação é a estratégia crucial para reduzir essa complexidade a níveis manejáveis pelos agentes econômicos e sociais, viabilizando a sua operação e expansão.

Cabe observar que das três, a coordenação política é a que joga o papel decisivo, na medida em que é ela que sustenta o marco institucional de regras, normas e organizações que constituem as coordenações técnica e econômica.

Ou seja, o marco institucional não é auto-sustentável. Ele se apoia em um determinado arranjo resultante da gestão política dos interesses em conflito dos agentes do setor.

Complexidade e Coordenação no setor elétrico brasileiro

A trajetória do setor elétrico brasileiro, do final do século XIX até os dias de hoje, apresenta um crescimento constante e significativo da complexidade. De Marmelos, com os seus modestos 250 kW, a Itaipu, com os seus impressionantes 14.000.000 kW, da bucólica Juiz de Fora até a reunião de vastas áreas de vários estados da federação, o sistema elétrico brasileiro ampliou, de forma continuada e vigorosa, o número de processos, de agentes e de espaços geográficos por ele integrados.

Esse aumento explosivo da complexidade – técnica, econômica e política – só foi possível graças a um aumento impressionante da Coordenação – técnica, econômica e política. Na verdade, foi esse aumento continuado da capacidade de coordenação das instituições ligadas ao setor elétrico brasileiro é que viabilizou a operação e a expansão do setor elétrico no país, com índices de complexidade surpreendentemente elevados.

Nessa trajetória, a coordenação política jogou um papel crucial; dando a sustentação político-institucional às coordenações técnica e econômica. A questão fundamental colocada para o setor elétrico brasileiro hoje diz respeito, justamente, a essa dotação: o país dispõe de uma dotação institucional que seja capaz de gerar uma capacidade de coordenação para fazer face à grande e crescente complexidade que caracteriza as relações no interior do setor elétrico brasileiro atual?

Quando se olha a questão a partir das últimas três décadas, pode-se afirmar que a trajetória do setor elétrico brasileiro tem se caracterizado por idas e vindas, avanços e recuos, crises e recuperações. Em outras palavras, a nossa dotação institucional não tem sido capaz de prover, de forma sustentada e estável, uma coordenação adequada à crescente complexidade do sistema. Ou seja, há um constante déficit institucional que cresce até gerar uma crise, decresce no momento seguinte de recuperação, para tornar a crescer em seguida e produzir uma nova crise. O velho e conhecido stop and go.

Assim, embora a dotação institucional seja capaz de mobilizar os recursos necessários para superar as crises, não é capaz de mobilizá-los quando a questão é justamente antecipá-las e, em última instância, evitá-las.

No setor elétrico brasileiro, o sapo só pula por necessidade.

Se ao final da década de 1970 o país alcançou um equilíbrio entre uma complexidade elevada nas relações técnicas, econômicas e políticas no interior de seu setor elétrico e uma também elevada capacidade de coordenação – técnica, econômica e política -, a década seguinte assistiu uma explosão dessa complexidade e a deterioração dessa capacidade de coordenação que implodiu o modelo setorial vigente até então.

A década de 1990 viu uma tentativa frustrada de reverter esse quadro que gerou um dos maiores desastres setorial que foi o racionamento de energia elétrica no ano de 2001 e início de 2002.

As reformas noventistas ampliaram, por um lado, a complexidade da indústria elétrica brasileira – através da privatização e da tentativa de introduzir a competição – e aprofundaram, por outro, a crise de coordenação setorial – resultante da fragilidade concreta do aparato institucional que se buscou construir.

Dessa maneira, a explosão da complexidade técnica, econômica e política advinda da própria reforma não encontrou um aumento correspondente na capacidade de coordenação técnica, econômica e política das instituições criadas por ela. O déficit institucional foi às alturas, implodindo o novo modelo em implantação.

A crise atual

O modelo institucional nascido em 2004 procurou enfrentar o problema da coordenação, mediante a criação um conjunto de regras – garantia do suprimento -, mecanismos – leilões – e organizações – EPE, CMSE.

E, em certa medida, essa estratégia foi bem-sucedida durante a década de 2000.

Contudo, mais uma vez a complexidade entrou em uma nova espiral de crescimento e uma sequência de eventos, já sobejamente conhecida pelo próprio setor, começou a ser engendrada.

Nesse quadro, a forte e continuada perda de capacidade de regularização dos nossos reservatórios estressou a agenda do setor e deu a hidraulicidade um explosivo potencial de geração de desequilíbrios técnicos, econômicos e políticos.

No que diz respeito à cadeia produtiva e às empresas, o processo iniciado nos anos noventa de desverticalização e fragmentação do controle econômico seguiu aumentando o número de distintos agentes econômicos na atividade elétrica, tornando mais difícil a coordenação econômica.

O mesmo fenômeno aconteceu com os agentes sociais e políticos, desenhando uma fragmentação de interesses que torna a gestão dos conflitos mais dura e custosa; abrindo espaço para uma judicialização que só aumenta a incerteza e os custos do setor, tendo impactos desastrosos sobre o investimento e a expansão.

Nesse quadro de capacidade de regularização limitada e crescente complexidade, um regime hidráulico extremamente desfavorável produziu efeitos econômicos e sociais negativos que se propagaram de forma imprevisível e incontrolável pelo sistema. (…) O texto continua no Blog Infopetro. 

Ronaldo Bicalho

Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

13 Comentários

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  1. Aneel

    Qual seria o papel da agência reguladora Aneel e da EPE – Empresa de Planejamento Enérgetico? São só apreciadoras do setor elétrico?

    1. A ANEEL regula as diretrizes

      A ANEEL regula as diretrizes definidas pelo MME que é auxiliado pela EPE na definição destas diretrizes.

      Basicamente é isso.

       

      Mas a EPE ainda não existe direito. É acéfalo, não tem sede e está espalhado.

      Vc imagina um órgão desta importância sem um supercomputador? Eles não tem nem sede…não sabem o que fazer ainda.

  2. Estoque

    Caros

    Quais as formas de estocar energia? Para as termo-eletricas, tanques de combustiveis ou montanhas de carvão ou ainda caixas de chumbo com uranio enriquecido,  para as hidroeletricas reservatorios nas barragens, para as heolicas, infelizmente não há, temos que contar mesmo com a boa vontade do vento, e para a fotovoltaicas idem, teremos que contar com o dia e melhor que seja dia ensolarado.

    Como vemos, se nossos amigos ambientalistas não nos permite construir reservatorios para as barragens, temos poucas alternativas de estocagem.

     

    1. Sebastiao!

      Um ponto eh nao permitir construir reservatorios.

      Outro ponto em minha opiniao aquela velha senhora natureza esta mudando,em novo ciclo, ai morre o perigo das antigas barragens e as novas sem grandes lagos. Ainda acredito que as pequenas usinas nucleares com mais segurancas sao a solucao de menor mal.

       

  3. Muito  boa a análise. A

    Muito  boa a análise. A partir da privatização,  ONS, Aneel, e , posteriormente  EPE  têm  papeís enfraquecidos,  o Ministério de  Minas e Energia e a Eletrobrás  emfraquecidos,   a Presidenta,  por ter trabalhado no setor e ser  autossuficiente  interfere  nas diversas áreas….

          Uma  a´rea  que era  de excelência,  antes  da privatização e fracionamento  das entidades  virou  um diálogo de surdos….

  4. Cuidado felipão

    Acho que este artigo é cifrado, só consegui ler os dois primeiros parágrafos, e na verdade deve estar dando instrução ao felipão de como ele deve comandar o escrete canrinho. Só pode!

  5. Acrescento:

    Nassif, não verdade não li nem um parágrafo, porque aqui em casa, como em todo este brasilsão, está faltando energia há dois meses, que apagão terrível, e fica impossível ligar o computador.  

  6. Piada ou curto-circuito?

    Texto bem arrumadinho, densidade aparente, técnica inquestionável. Coisa de “iniciados”.

    Porcaria nenhuma.

    Coisas que o amigo não fala (ou fala pelas metades):

    01- O setor privado e a sereia do Estado mínino (só para os pobres) não deu conta de organizar aquilo que chamavam de elefante branco (o Estado).

    02- Não se coordena nada com o apetite voraz dos capitalistas, com cada setor puxando a brasa para sua sardinha, em um país que esteve estagnado durante 20 anos em investimentos no setor, e em alguns anos mais de 94 até 2002, desmontou suas precárias estruturas, amarrando qualquer chance de desenvolvimento.

    03- A histeria ambientalista solapou possibilidades de uso de energia nuclear no maior produtor de urânio do planeta (O Brasil), confinando a matiz energética à imprevisibilidade hidrelétrica. Assim como não faz sentido afastar os a queima de hidrocabonetos para gerar energias com as reservas de gás que se anunciam com a chegada do pré-sal.

    A alegada coordenação que teria permitido o nosso crescimento desde Marmelos até Itaipu continua aí, com as contradições de praxe.

    Lendo o texto imaginamos que um ser descerá do disco voador e nos legará a fórmula mágica da coordenação. Ou seja, se não tem coordenação, adivinhem de quem é a culpa?

    Ganha um doce quem responder.

    Não tem coré-coré. Se quiser energia tem que investir e deixar a capacidade de geração ociosa, ou seja: muito mais hidrelétricas e muito mais térmicas, eólicas, o escambal.

    A pergunta é: quem vai pagar a conta?

  7. Problemas do setor

     

    Os problemas do setor no início dos anos 90 se resumiam ao não pagamento da energia comprada pelas distribuidoras estaduais, na verdade puro estelionato,  já que cobravam dos consumidores, e em muito menor escala, algum uso da tarifa para segurar a inflação por certos ministros, delfins do sistema capitalista, inclusive o próprio Delfim.

    Problemas de relativo fácil saneamento havendo vontade política.

    Os neoliberais no entanto, na segunda metade da década de 90,  em sua sina de destruição do estado nacional preferiram o desmembramento do setor, o afogamento financeiro e econômico das estatais federais, a venda a qualquer preço dos ativos ao mercado, a criminosa transferência do planejamento determinativo para as empresas privadas, essas que chamam de players do setor, como se esse neologismo de colonizado lhes fornecesse alguma credibilidade ou honorabilidade.

    Pior que o fizeram de forma pensada a quase impedir, face o enorme custo, um retorno a situação anterior.

    As alterações introduzidas em 2004 apenas minoraram os danos irreversíveis implantados, retornando o planejamento ao estado e algumas outras medidas paliativas, mas o dano fundamental permanece pois a correção implicaria em medidas politicamente muito mais corajosas e custosas do que a chamada esquerda moderada que governa o país está disposta a pagar ou tenha apoio e coragem de realizar.  

    Parabéns pois aos neoliberais demotucanos, vocês fizeram um serviçinho bem feito!

     

     

     

     

  8. E essa agora:

    “Assim, em função da não-estocabilidade do seu produto e do caráter sistêmico dos seus processos, o setor elétrico apresenta uma interdependência entre os seus processos – geração, transmissão, distribuição e utilização -, que não será encontrada em outros setores da economia.”

    blábláblá …blábláblá …blábláblá …blábláblá …blábláblá 

    Então para que servem os lagos artificiais em nossas barragens ? Respondo: ora bolas, é para estocar água que pode ser usada para gerar energia em tempos de seca. Ou seja, estoque de energia, sim, de maneira indireta. Isto é “matéria prima” para ser usada em caso de necessidade. Entregue pelo maior operador logístico, que trabalha de graça: Sâo Pedro.

    E em fábricas bem administradas, não se costuma estocar o produto final, mas sim as matérias primas, entre outros motivos, porque estas, não tendo sido beneficiadas, não “estocam” como aquelas, o trabalho envolvido e a consequente tributação, o que encarece o estoque. Ou então se estoca produto acabado numa quantidade mínima, apenas o suficiente para um atendimento ágil do cliente.  E fábricas são muitíssimo mais interdependente de seus fornecedores, compradores e fornecedores de serviços do que no setor elétrico. A todo instante as fábricas, fornecedores e compradores comunicam entre si. Não o fazendo, a fábrica pode ser fechada.

    Em resumo, o autor da frase destacada não sabe o que é uma barragem e talvez nem o que é uma fábrica e muito menos o que é geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. 

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