Ronaldo Bicalho
Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[email protected]

A privatização da Eletrobras e as viúvas do fracasso, por Ronaldo Bicalho


Foto: Divulgação

Por Ronaldo Bicalho

A privatização da Eletrobras, as viúvas do fracasso e os oportunistas de plantão

Do Instituto Ilumina

Discutir a privatização da Eletrobras é discutir o setor elétrico brasileiro. Discutir o setor elétrico brasileiro é discutir o peso decisivo das suas especificidades no sucesso do passado, nas restrições do presente e nas oportunidades do futuro.

Para isso, é fundamental entender o espaço das especificidades da exploração das diferentes bases de recursos naturais nos distintos padrões setoriais que dirigiram a evolução do setor elétrico no mundo. Esse entendimento ajuda a compreender os avanços e recuos do setor elétrico brasileiro ao longo do tempo e a identificar as grandes oportunidades contidas no novo paradigma setorial nascente baseado nas energias renováveis.

 

O setor elétrico brasileiro tem características únicas no mundo. Nenhum outro setor elétrico avançou tanto na trajetória tradicional que marcou a evolução da indústria elétrica no pós-guerra quanto o brasileiro.

Nesse sentido, as nossas especificidades não representam uma originalidade radical em relação ao resto da indústria, mas a brilhante exploração de um determinado paradigma setorial que permitiu aproveitar ao máximo as possibilidades configuradas pela nossa base de recursos naturais.

A configuração de um modelo institucional baseado na vigorosa exploração do nosso potencial hidráulico, mediante a construção de grandes hidrelétricas com reservatórios de acumulação, operadas de forma centralizada, só foi possível porque havia um modelo setorial padrão que sancionava essa centralização.

Visto sob essa perspectiva, o setor elétrico brasileiro é o produto mais bem acabado de um modelo de expansão do setor elétrico que combinava: economias de escala e escopo, verticalização, monopólio regulado e forte intervenção do Estado. Nesse modelo, para lidar com a complexidade técnica, econômica e institucional crescente de um sistema fortemente em expansão – com plantas e sistemas cada vez maiores – se recorreu a uma forte coordenação técnica, econômica e institucional, comandada pelo Estado; de forma a fazer face às fortes imprevisibilidades naturalmente associadas a essa explosiva expansão.

A partir desse paradigma geral, os brasileiros construíram o seu setor elétrico. A diferença fundamental se deu nos elevadíssimos níveis de escala e coordenação praticados no nosso setor. Assim, se por um lado, a base de recursos hidráulicos abriu um conjunto promissor de possibilidades de exploração de economias de escala e escopo; por outro, a capacidade técnica, gerencial e institucional existente no país viabilizou essa exploração.

Em síntese, o setor elétrico brasileiro é fruto da combinação virtuosa entre recursos generosos e competência para aproveitá-los em torno de um paradigma setorial que viabilizou e sancionou essa combinação.

Em outras palavras, nós não inventamos o bolo de banana, mas fizemos o melhor bolo de banana. Tínhamos os melhores recursos, ou seja, as melhores bananas, e incrementamos ao máximo a receita geral existente.

Assim, havia uma receita básica padrão que favorecia os nossos ingredientes e nós fomos capazes de melhorá-la de tal forma a tornar o nosso bolo elétrico uma referência mundial nos anos 1970s.

A mudança do paradigma setorial na direção do mercado nos anos noventa quebrou o modelo brasileiro. A ênfase na descentralização competitiva e na redução do papel do Estado trazida pelo novo paradigma competitivo retirou a sustentação à coordenação centralizada e abriu espaço para a fragmentação de agentes e interesses que desestruturou o modelo brasileiro de setor elétrico.

Andando de lado e perdido entre as vantagens comprovadas da coordenação e aquelas prometidas pelo mercado, entre a afirmação da experiência nacional e o complexo de vira-lata, o setor elétrico brasileiro se adaptou aos novos tempos a marretadas. Surgiram as gambiarras e os puxadinhos, no esforço de aggiornamento do setor elétrico brasileiro às reformas liberais. A redução drástica da capacidade de regularização dos reservatórios desnudou as contradições do modelo e acelerou a sua desinstitucionalização, enredando as relações comerciais no mercado elétrico brasileiro em uma teia de judicializações sem fim.

Desse modo, se a receita tradicional fornecida pela experiência internacional permitiu explorar os nossos recursos hidráulicos de forma extremamente bem-sucedida, a nova receita oferecida pelos liberais noventistas criou uma série de dificuldades para essa exploração. A tentativa de usar as duas entortou o setor com garantias físicas, mecanismos de realocação, energia de reserva e outras que tais; culminando com a MP 579 que, em uma demonstração impressionante de falta de visão estratégica, considerou essa tentativa tão bem-sucedida que definiu uma transferência significativa de recursos das empresas elétricas (basicamente estatais) para os consumidores, via redução de tarifas.

Assim, a substituição da receita tradicional pela receita liberal, que não valorizava nossos ingredientes, nos anos 1990s, seguida pela tentativa de harmonizar as duas nos anos 2000s, associada ao fato dos nossos cozinheiros terem efetivamente perdido a mão, solaram o bolo elétrico brasileiro. Na medida em que a moda setorial passou a ser o bolo de laranja, o nosso bolo de banana se tornou ultrapassado e partimos então para a tentativa de adaptar as duas receitas e produzir um bolo de laranja a partir das nossas bananas e de toda a nossa infraestrutura (cozinha, panelas, fogão, etc) montada para fazer o velho bolo de banana.

Nesse sentido, as propostas de privatização e ampliação do mercado livre do atual governo são a cereja do bolo solado, na medida em que radicaliza o uso da receita liberal, justamente aquela que desvaloriza os nossos ingredientes. Assim, o governo Temer entre as duas receitas faz uma clara opção por uma delas. Qual? A pior. A do bolo de laranja. Exatamente aquela que desmonta o que resta de unicidade e integralidade no nosso setor.

A questão de fato é que hoje não há no contexto do setor elétrico no mundo uma receita de bolo a ser usadas como padrão. A transição elétrica dos combustíveis fósseis para os renováveis introduz tamanha incerteza que torna impossível, neste momento, a definição de um padrão que seja largamente reconhecido como um caminho de sucesso indiscutível e passível de ser largamente replicável.

No entanto, existem elementos da nossa base de recursos naturais e industrial que nos candidatam a uma posição confortável na transição elétrica. Os grandes reservatórios, o extenso sistema de transmissão, a flexibilidade das hidrelétricas, os potenciais eólico e solar constituem um conjunto de recursos que pode ser extremamente valorizado na configuração do novo paradigma setorial. Dessa maneira, é possível que esteja sendo configurada uma nova receita de bolo na qual os nossos ingredientes recuperem aquele protagonismo da receita tradicional, fazendo com que o nosso setor elétrico no longo prazo volte a ser um fator de competitividade oferecendo energia abundante e barata.

Nesse contexto, a privatização da Eletrobras e a liberalização do mercado elétrico brasileiro são propostas que aceleram a desestruturação do setor elétrico brasileiro, apostam naquela estratégia mais descolada da nossa base de recursos naturais e da infraestrutura industrial do setor, e constituem uma volta aos fracassos do passado, combinando ignorância, arrogância e má-fé.

Contudo, o pior dessa política setorial não é a sua total incapacidade de resolver os problemas do setor, mas o fato de que ao recorrer à queima de recursos e à fragmentação do setor ela torna a solução dos problemas muito mais difícil.

A aliança entre as viúvas do fracasso dos anos noventa com os atuais oportunistas de plantão não resolve os problemas do setor elétrico brasileiro, mas instaura um quadro de desordem e irresponsabilidade institucional que prenuncia crises e momentos difíceis não só para o setor elétrico, mas, dada a relevância desse setor, para o próprio país.

 

Ronaldo Bicalho

Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Que picareta!

    Este cara é um artista em dizer bobagem. 

    Não sei o que a ggn viu nele.

    Nos governos Dilma e Lula fizemos a maior revolução positiva na nossa matriz energética, ligando todo o país por linhas de transmissão, inclusive as maiores linhas de corrente contínua do mundo, madeira; construimos duas da maiores hidroelétrica do planeta, madeira e belomonte e iniciamos o complexo de são manoel; colocamos 7 mil megawats, em 2021 20 MW, de energia eólica, ligamos o eixo norte do amazonas na rede nacional, criamos condição para baratear a energia elétrica sem tirar um tostão da s empresas, tirou taxas  e fundos desnecessários; iniciou-se brilhantemente a geração solar (no dia de hoje a geração solar foi duas vezes a de tres marias 172×90), temos 100 a 200 bi de reais de usinas que voltam ao governo por encerramento da concessão, interligamos o sistema com a argentina e o uruguai, etc, etc.

    Se tem um setor que o país vai otimamente é o setor energético. No passado recente tivemos uma faze terrível de seca sem necessidade de apagão devido as providencias que foram tomadas pela dilam de reforço do sistema.

    É um completo vigarista, este bicalho.

    A ggn não deveria dar palco a um cretino desse. Falso, pomposo e prolífico.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador