Ronaldo Bicalho
Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Exposições ao risco hidrológico no sistema elétrico brasileiro – evolução e perspectivas

 

Do Blog Infopetro

Por Diogo Lisbona Romeiro

Em um sistema predominantemente hidrelétrico, todos estão sujeitos ao risco hidrológico de não haver água suficiente para garantir o suprimento de eletricidade. No entanto, dependendo das regras de comercialização de energia, a exposição ao risco hidrológico pode resultar em diferentes desdobramentos financeiros para os agentes do setor.

No sistema elétrico brasileiro, as regras de comercialização evoluíram ao longo do tempo, reconfigurando as exposições dos agentes ao risco hidrológico. Mas, historicamente, os riscos foram encobertos pela elevada capacidade de armazenamento dos reservatórios hídricos. A tendência de maior intermitência na matriz, no entanto, torna o risco cada vez mais concreto. É neste contexto que se situam as discussões atuais sobre o repasse do risco hidrológico das geradoras hidrelétricas para os consumidores, suscitadas pela Media Provisória nº 688/2015.

Evolução das exposições ao risco hidrológico dos agentes

Até a reforma liberalizante dos anos 1990, as geradoras hidrelétricas eram remuneradas pelo custo do serviço. A operação e a expansão do sistema eram coordenadas centralizadamente e o parque gerador hidrelétrico era dimensionado a partir da energia firme que cada usina podia gerar. Inicialmente, o conceito “firme” indicava a quantidade máxima de energia capaz de ser gerada considerando a pior afluência já registrada.

Posteriormente, passou-se a adotar um critério probabilístico, calculando a produção máxima assegurada em uma determinada fração de afluências hidrológicas simuladas (KELMAN et al., 2002). As energias firmes (ou asseguradas) constavam nos contratos de suprimento, mas tinham consequências comerciais limitadas para as geradoras, já que as tarifas as remuneravam pelo custo do serviço. A operação do sistema era centralizada pela Eletrobrás, através do Grupo Coordenador da Operação Interligada, que otimizava a gestão dos reservatórios de modo a repartir benefícios, custos e riscos (hidrológicos) entre todos.

A partir da reforma liberalizante da década de 1990, a tarifa pelo custo do serviço foi abolida. O diagnóstico era que a remuneração garantida resultava em sobre-investimentos ineficientes, enquanto o prognóstico era que a competição no mercado entre futuros geradores desverticalizados e consumidores libertos induziria menor custo, maior eficiência e bem-estar. A coordenação da expansão foi descentralizada, mas a operação permaneceu centralizada sob o comando do Operador Nacional do Sistema (ONS), que passou a ser o responsável pelo despacho ótimo do parque hidrotérmico, determinando o montante e o momento da geração de cada usina por ordem de mérito crescente de custo.

Com a reforma, os certificados de energia assegurada atribuídos a cada usina passaram a ser determinantes para a remuneração das geradoras, por limitarem a quantidade de energia apta a ser comercializada contratualmente. Assim, as geradoras passaram a ficar expostas ao risco hidrológico de não terem água suficiente para honrarem os seus contratos. Porém, como a operação permaneceu centralizada e determinada pelo ONS, as geradoras ficaram sem controle sobre as decisões de geração, inviabilizando a gestão descentralizada da exposição financeira ao risco hidrológico assumido. A solução encontrada foi compartilhar o risco entre todas as usinas hidrelétricas despachadas centralizadamente pelo ONS, através do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE).

O MRE realoca, para efeitos de contabilização e comercialização, toda a energia gerada pelo pool hidrelétrico entre as usinas participantes, considerando a energia assegurada de cada usina. Desta forma, quando a geração total é equivalente ao somatório das energias asseguradas, o MRE transfere o excedente das usinas que geram acima de suas energias asseguradas para as que geram abaixo. Quando a geração total é superior ao somatório das energias asseguradas, após compensar os participantes deficitários, há uma sobra de energia – denominada de “energia secundária”. Quando a geração total é inferior, a energia alocada para cada usina é menor que suas energias asseguradas. A razão entre a energia total efetivamente gerada e o somatório da energia assegurada de todas as usinas, que representa o “ajuste do MRE”, é conhecida por generation scaling factor – GSF. As sobras ou déficits de energia são liquidadas no mercado de curto prazo, configurando a exposição financeira das geradoras hídricas ao risco hidrológico.

A reestruturação dos anos 2000 preservou grande parte do arcabouço institucional-regulatório instituído nos anos 1990. Mesmo após o racionamento enfrentado em 2001, o desafio da reforma não foi equacionar potencial exposição ao risco hidrológico dos agentes, mas estruturar mecanismos capazes de viabilizar a expansão da capacidade instalada. Nesta perspectiva, preservou-se a operação centralizada sob o comando do ONS e o compartilhamento do risco hidrológico das hidrelétricas realizado pelo MRE, porém recuperou-se a coordenação centralizada da expansão. A competição passou a ser pelo mercado futuro das distribuidoras, cuja expansão é atendida por contratos de longo prazo firmados (no mercado regulado) com os vencedores dos leilões de energia. Assim, a coordenação centralizada garante a expansão, mas a configuração da matriz ainda depende da competição entre as fontes. No mercado livre, os consumidores (livres) podem negociar preços e prazos em contratos bilaterais com geradores ou comercializadores. Em ambos ambientes de contratação, todos consumidores devem manter suas demandas totalmente contratadas. As diferenças entre os montantes contratados e os efetivamente gerados ou consumidos são apuradas e liquidadas mensalmente na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), pelo preço de liquidação de diferenças (PLD).[1]

Com a reestruturação, a noção de energia assegurada foi estendida a todas as fontes. Deste modo, mesmo para as térmicas, a energia contratável é limitada não pela potência efetivamente instalada, mas por certificados atribuídos no ato da outorga, a garantia física. O contrassenso de estender o conceito de energia assegurada a fontes que não estão expostas à intermitência tem origem na idiossincrasia de medir e condicionar as contribuições das potências instaladas ao custo de oportunidade da água. É evidente que a determinação das garantias físicas passa a ser crucial para o sistema, afetando a operação física, as relações contratuais, os resultados comerciais e a própria expansão do sistema. D’Araujo (2015) critica o alto grau de subjetividade por trás da determinação da garantia física, alertando que, atualmente, a energia assegurada pelas potências instaladas não é física, nem garantida. As garantias físicas podem e devem ser revistas periodicamente, mas a revisão ainda não foi posta em prática. Para reduzir a incerteza dos geradores quanto a revisões significativas, a lei estabelece um limite de redução máximo de 10% durante toda a outorga.

A garantia física pode ser comercializada em contratos de quantidade de energia ou dedisponibilidade de energia. Nos contratos de quantidade de energia, os custos decorrentes do risco hidrológico são assumidos pelos geradores. Já nos contratos dedisponibilidade, a exposição financeira ao risco hidrológico é assumida pelos consumidores. Em geral, a modalidade de quantidade é voltada para as geradoras hidrelétricas, que compartilham os riscos no MRE. Já modalidade de disponibilidade é direcionada para as térmicas, que não possuem meios de mitigar o risco hidrológico. Nestes contratos, estipula-se uma parcela de remuneração fixa e outra de remuneração variável, aplicada quando a central é despachada.

Do ponto de vista dos consumidores, evitar a disponibilidade térmica é vantajoso, já que a geração hídrica é potencialmente menos custosa. Portanto, o “risco” de não utilizar a disponibilidade é ficar exposto à liquidação no mercado de curto prazo a preços menores do que a parcela variável contratada. Desta forma, os contratos de disponibilidade se constituem como um seguro para os consumidores, que pagam um prêmio (parcela fixa) para terem a opção de energia menos custosa (parcela variável) em cenários hidrológicos adversos, quando o custo de oportunidade de usar a água nos reservatórios aumenta significativamente. Portanto, os contratos de disponibilidade mitigam a exposição financeira ao risco hidrológico suportado pelos consumidores.

Do ponto de vista dos geradores térmicos (e do sistema como um todo), os contratos de disponibilidade de energia representam um mecanismo de remuneração de capacidade. Como a reserva hídrica é muito significativa, a expectativa de geração térmica é baixa, comprometendo a remuneração do investimento. A incapacidade de centrais voltadas para backup, com baixo fator de carga, recuperarem seus custos a partir da venda direta de energia é conhecida na literatura por “missing money” (JOSKOW, 2008). A remuneração da capacidade instalada viabiliza a remuneração dos geradores térmicos, ao suprimir a exposição ao risco hidrológico, garantindo a disponibilidade de reserva para o sistema.

Pode-se concluir, portanto, que a exposição dos agentes ao risco hidrológico evoluiu ao longo do tempo, paralelamente à evolução do arcabouço institucional-regulatório. Ao mesmo tempo em que as geradoras hidrelétricas ficaram mais expostas aos rebatimentos comerciais das variações hidrológicas, o MRE foi constituído para mitigar (parcialmente) o risco. Para garantir expansão da reserva térmica no sistema, os consumidores contrataram este “seguro” e assumiram a exposição financeira de liquidar no curto prazo a disponibilidade evitada. Portanto, o risco hidrológico sempre existiu e cada agente esteve mais ou menos exposto ao seu possível desdobramento financeiro.

As consequências do risco hidrológico

No sistema elétrico brasileiro, a construção de hidrelétricas com grandes reservatórios de armazenagem, interconectadas em um sistema interligado nacional, tornou a realização do risco hidrológico uma possibilidade remota. Porém, com o crescimento contínuo do consumo e as dificuldades de ampliação da reserva hídrica, a capacidade de regularização dos reservatórios se reduz gradativamente. Consequentemente, a garantia de suprimento passa a estar cada vez mais condicionada à realização de hidrologias favoráveis e o acentuado e recorrente deplecionamento dos reservatórios torna o risco mais palpável. Neste novo contexto, os desdobramentos financeiros da exposição ao risco hidrológico passam a ser concretos e cruciais, colocando à prova a alocação de riscos pré-estabelecida.

Desde fins de 2012, o país voltou a enfrentar incertezas quanto à garantia de fornecimento de energia. Todo o parque térmico contratado para atuar esporadicamente foi acionado, atendendo quase 30% da carga, ante a uma participação média inferior a 10%. O seguro contratado revelou-se inadequado e extremamente custoso. As distribuidoras não conseguiram repassar os custos da exposição ao risco hidrológico dos consumidores, recorrendo a empréstimos bancários e à ajuda do Tesouro. O realismo tarifário de 2015 apresentou a conta aos consumidores cativos e as bandeiras tarifárias passaram a expressar mais claramente a cor do risco hidrológico antes oculto.

Todos os possíveis recursos já foram obtidos para equacionar a custosa exposição ao risco hidrológico assumido pelos consumidores, embora o saldo ainda esteja negativo. Neste contexto, o novo capítulo da crise apresenta a conta do risco hidrológico assumido pelas geradoras hidrelétricas, que passaram a conviver desde 2013 com geração inferior às suas garantias físicas, como mostram as Figuras 1 e 2.

Figura 1 – GSF médio anual

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*Média entre janeiro e setembro

Fonte: Elaboração própria com dados da CCEE

Figura 2 – Elevação do déficit do MRE entre 2014 e 2015

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Fonte: Elaboração própria com dados da CCEE

Com energia alocada inferior à garantia física, as geradoras hidrelétricas devem liquidar as posições contratuais deficitárias no mercado de curto prazo, ao PLD vigente. Em 2015, para amenizar as exposições ao risco hidrológico de todos os agentes, a ANEEL reduziu o teto do PLD em mais de 50%, para R$ 388/MWh. Ainda assim, o PLD menor não foi suficiente para garantir a liquidação da exposição dos agentes no mercado. Entre janeiro e agosto, a inadimplência média de todo os agentes no mercado de curto prazo saltou de 10% em 2014 para 27% em 2015. Em julho e agosto de 2015, a inadimplência alcançou 56% dos R$ 4,2 bilhões a ser liquidado. Enquanto em 2014 as distribuidoras eram as principais responsáveis pela inadimplência, em 2015 o montante não liquidado pertence principalmente às geradoras hídricas, que estão recorrendo a liminares judiciais para não arcarem com a exposição ao risco hidrológico. Como as geradoras estão obtendo decisões judiciais favoráveis que as isentam de liquidar os débitos no mercado de curto prazo, a CCEE suspendeu a liquidação de setembro.

Figura 3 – Liquidação financeira no Mercado de Curto Prazo

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*Valores referentes a julho e agosto

Fonte: Elaboração própria com dados da CCEE

Repactuando o risco hidrológico das geradoras hídricas

A Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Energia (APINE) e a Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica (ABRAGE) solicitaram à ANEEL compensação dos consumidores pelas perdas financeiras incorridas pelas geradoras hídricas. Em linhas gerais, as Associações alegaram que, afora a hidrologia desfavorável, um conjunto de fatores imprevisíveis reduziu a geração hídrica, dentre os quais se destacam a geração térmica fora da ordem de mérito e a geração da energia de reserva. Sob a perspectiva alegada, a geração hídrica foi deslocada por outras fontes por fatores extraordinários, incapazes de serem precificados pelos agentes, afetando o equilíbrio contratual estabelecido e, consequentemente, ensejando compensação pelos danos causados.

Diante das alegações apresentadas pelas Associações, no âmbito da Audiência Pública nº 32/2015, a ANEEL firmou entendimento que os prejuízos enfrentados pelas geradoras decorreram da concretização ordinária do risco hidrológico e não da manifestação de um risco impossível de ser precificado ou da extrapolação do risco por medidas extraordinárias e intervencionistas. Portanto, as geradoras não teriam direito a compensação financeira pelas perdas enfrentadas. (…) O texto continua no Blog Infopetro.

Ronaldo Bicalho

Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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