Ronaldo Bicalho
Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Setor elétrico: ano novo, vida velha, por Ronaldo Bicalho

Do Instituto Ilumina

Setor elétrico: ano novo, vida velha, por Ronaldo Bicalho

Começa o novo ano, inicia-se o novo governo e o campeonato do setor elétrico segue o mesmo. Parafraseando o velho Millôr, o setor elétrico tem um enorme passado pela frente.

No jogo jogado, que é aquele que realmente importa, o imbróglio continua. Existe uma verdade que até mesmo as pedras das ruas têm a capacidade de reconhecer: a base sobre a qual o edifício elétrico brasileiro foi construído simplesmente não existe mais. Portanto, não há muito que se discutir sobre qual deve ser a agenda tupiniquim para esse setor. Definir uma nova base e a partir dela construir um novo setor. Também, parece óbvio, mesmo para as pedras menos perspicazes, que essa transformação radical deve ser realizada sob a perspectiva do processo da transição energética em curso no mundo.

Porém, diante da ameaça real à segurança do edifício, quais as propostas colocadas na reunião de condomínio? Basicamente duas: o administrador propõe vender a cobertura e mudar o estatuto do uso da garagem. A primeira visa tapar uma pequena parte do buraco fiscal das contas do prédio e a segunda busca melhorar a eficiência geral do uso dos recursos disponíveis. Com relação aos problemas estruturais urgentes? Nada. Não vem ao caso.

É isto aí senhores. Diante do grave quadro do setor elétrico nacional, o máximo que a Intelligentsia setorial nativa foi capaz de propor foi a privatização da Eletrobras e a ampliação do mercado livre.

Tamanha lucidez deixa as citadas pedras perplexas. Quer dizer que, diante de uma transformação estrutural radical, o melhor que se conseguiu foi uma agenda recauchutada da década de noventa? A adoção dessa agenda problemática, duvidosa, difícil de replicar, marcada pelo fracasso californiano, pela quebra da Enron e pelos diversos blecautes na Europa e Estados unidos na década de 2000, evidencia que, o setor elétrico brasileiro resolveu, literalmente, correr atrás do prejuízo. Portanto não bastaram os inquestionáveis prejuízos do apagão de 2002, são necessários novos fracassos para alimentar o nosso irresistível fascínio pelo rebaixamento vira-lático e fora de hora.

No meio do samba atravessado e desafinado do coro setorial, das lamúrias individualizadas e das agendas de curto prazo marcadas por uma visão estratégica que não vai além de um palmo diante do nariz, anuncia-se a possibilidade de se construir de quatro a oito novas usinas nucleares no país, além de Angra 3.

E aqui até as pedras das ruas se constrangem com a desarmonia do samba cantado pela nova escola na avenida. O programa nuclear brasileiro tem um caráter estratégico e vem ao longo do tempo conseguindo desenvolver uma trajetória sustentável em termos de articulação entre desenvolvimento tecnológico e segurança nacional. A construção de Angra 3 e de outras usinas se enquadram dentro de uma visão soberana e independente de país que sustenta, ao fim e ao cabo, o conjunto de esforços envolvidos no nosso programa nuclear, agregando civis e militares em um projeto de longo prazo de folego.

É evidente que essa visão não coaduna com a estratégia curto-prazista das lideranças do setor elétrico brasileiro. A conta que junta privatização da Eletrobras, expansão do mercado livre com expansão sustentada do nuclear não fecha. Somada às ambições fiscalistas do ministério da economia, a crença em uma estratégia que junta esses balaios tão diversos é ingênua. Sem dúvida, alguém vai ficar, em bom português, pendurado na broxa no final.

Uma expansão sustentável do nuclear só encontra chão dentro de um projeto estratégico de longo prazo para o setor elétrico brasileiro que contemple uma articulação forte e coordenada entre renováveis e reservatórios no contexto da transição para uma economia de baixo carbono. Somente um projeto como esse abre o espaço para o nuclear; na medida em que não só aposta nas renováveis ancoradas pelos estoques de energia dos reservatórios, como limita a participação das térmicas convencionais – emissoras de CO2 – a um espaço restrito e pré-definido.

No entanto, não há a menor sombra de um projeto como esse no horizonte oficial do setor elétrico hoje. Atolado em uma briga de foice no escuro entre interesses diversos e conflitantes, com lobistas se estapeando nos corredores de Brasília, a chance de se construir uma estratégia de longo prazo que permita enfrentar os problemas estruturais do setor dando a ele as condições de servir como uma alavanca para a retomada do desenvolvimento econômico e social do País é, simplesmente, nenhuma.

Assim, diante de uma final de Champions League contra o Barcelona no Camp Nou, nos comportamos como se estivéssemos no carioquinha enfrentando o Volta Redonda no Raolino de Oliveira.

É dura a vida de quem tenta analisar o setor elétrico brasileiro com o mínimo de senso e esperança nestes tempos em que os especialistas setoriais falam com poses de Guardiolas e conteúdos de Chamuscas.

E vamos que vamos.

PS1: Nada contra os Volta Redondas, os Raulinos de Oliveira e os Chamuscas que têm o seu lugar no futebol. Porém, no setor elétrico brasileiro neste momento são o caminho mais curto para o desastre. Desastre anunciado e cantado em prosa e verso por aqueles que gostam do futebol elétrico bem jogado, e não essa mixórdia que está aí.

PS2: Este texto foi publicado originalmente no site do Instituto Ilumina

Ronaldo Bicalho

Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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