Letícia Sallorenzo
Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.
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Fake News e a suposta morte de Elizabeth II, por Letícia Sallorenzo

O problema dessa antecipação de texto é que texto existente, por mais embargado que seja, sempre corre o risco de ser publicado por engano. A morte de Betinha não foi o primeiro erro desses, e certamente não será o último.

Fake News e a suposta morte de Elizabeth II

por Letícia Sallorenzo

Daí que as hordas bolsonaristas estão com fogo na raba com a Falha da Folha (desculpem, o trocadilho foi mais forte que eu). Estão chamando a Folha de propagadora de Fake News. Mas ela não deve receber essa alcunha, e eu vou explicar o porquê.

Primeiro, vamos começar com o rebosteio da Folha de S.Paulo. Na manhã da segunda-feira 11 de abril, o jornal da Alameda Barão de Limeira foi atualizar o obituário de Betinha e, em vez de salvar e guardar, mandou publicar.

É necessário explicar, nessas horas, que jornalista é um bicho que, quando consegue, é precavido. Todas as personalidades relevantes para a atualidade, cuja idade já é meio avançada, já têm o obituário pronto. O próprio obituário de Roberto Marinho foi preparado pela Globo antes de sua morte – com anuência dos próprios filhos.

Esse hábito de deixar obituários prontos rende inclusive alguns folclores deliciosos, como o autor do obituário do comediante americano George Burns, morto em 1996 aos 100 anos, ter morrido 10 anos antes do “obituado”.

Então, não se iludam: todos os jornais já têm obituários prontos de Elizabeth II, Lula, Papa Francisco, Jimmy Carter, Bill Clinton, Donald Trump, Fernanda Montenegro e mesmo [insira aqui a personalidade de idade avançada que vier à sua mente].

Se você está achando isso absurdo, não ache: é uma questão de organização. Um obituário é texto que requer pesquisa e tempo para ser produzido. Se, quando você tem a notícia, o texto está quase pronto e só falta acrescentar os últimos dados referentes à morte, então o trabalho sai mais rápido – e agilidade é um dos requisitos básicos do jornalismo moderno.

Essa antecipação de obituários já rendeu histórias folclóricas, como o obituário do comediante americano George Burns, morto em 1996 aos 100 anos. O jornalista q redigiu o texto havia morrido 10 anos antes do “obituado”.

O problema dessa antecipação de texto é que texto existente, por mais embargado que seja, sempre corre o risco de ser publicado por engano. A morte de Betinha não foi o primeiro erro desses, e certamente não será o último.

Mas o nome disso é barriga. No jornalismo, barriga significa você dar uma notícia errada, ou dar uma morte antes de ela acontecer, ou dar o início de uma guerra antes de ela, de fato, ser deflagrada.

A barriga acaba de forma sempre vexaminosa: o jornal reconhece e aponta seu erro, corrige e pede desculpas.

Fake News é outra coisa

A expressão Fake News é abominada pela comunidade acadêmica. Para os estudiosos do tema, o termo é vulgarizado – vulgarização esta que também é estudada. Bolsonaro (ou Trump) chamam qualquer coisa que não os agrade de Fake News. Então, não dá pra usar essa nomenclatura – não em ambiente acadêmico.

Mas, se ao usar esse sintagma nominal, o leitor entende que se trata de “uma mentira que chega pelo celular e que quer te fazer de otário”, então o sistema linguístico foi devidamente acionado para expressar a ideia com clareza e correção.

Claire Wardle é uma das estudiosas do fenômeno que, embora odeie a expressão “Fake News”, reconhece que existe um fenômeno típico e específico, ao qual ela batizou de “desordem da informação”.

Então, Wardle categorizou as formas de desordem da informação, e chamou-as de “misinformation, disinformation e malinformation”. Como essa nomenclatura saiu numa publicação da Unesco já traduzida para o português, temos o trio “informação equivocada (misinformation), desinformação (disinformation) e má-informação (malinformation).

Mis e Dis information são muito parecidas. Imagine que você está com sintomas de Covid. Está ao telefone com a sua tia, que insiste horrores contigo para que você tome cloroquina e ivermectina, sob o argumento de que “o pastor que disse que faz bem, não faz mal, e cura tudo quanto é Covid, meu filho! Toma logo esse remédio pra ficar bom logo!”

Percebe-se, na fala da sua tia, que ela está aflita contigo. Ela te ama, te quer bem, então ela diz isso para o seu bem. Ela realmente acredita que isso é para o seu bem. Não há dolo na fala da sua tia. Então, sua tia propagou uma “misinformation”, ou informação equivocada: tá errado, mas não foi por mal.

Peguemos novamente seus sintomas de Covid, e vamos ao balcão de uma farmácia. Você relata os sintomas, e o balconista te diz: ‘Pode tomar isso, vai sarar logo!”. Ao contrário da sua tia, o balconista não te conhece. Ele tá pouco se lixando pra você, e só quer saber de bater a meta do dia. Logo, existe dolo no ato do balconista. É disinformation, ou desinformação: tá errado, e foi por mal, sim, foi pra te fazer de otário.

A malinformation é a pior forma de desinformação. É quando uma fala que, muitas vezes, é particular porque assim deve ser, é retirada de contexto e adulterada. O dolo é claro e inconteste. Um exemplo disso é um vídeo do ministro Alexandre de Moraes, em que ele relata as ameaças sofridas por ele e por sua família por parte de extremistas de direita. O vídeo, editado e corretamente contextualizado pelo UOL (  https://www.facebook.com/watch/?v=304613257229224), vem sendo adulterado por extremistas de direita, que dão a entender que o próprio ministro defende algo que, na realidade, ele execrou. O dolo é nítido, claro e inquestionável. É mentira, tá errado, foi tirado de contexto de forma incontestavelmente proposital, e o objetivo final foi te prejudicar.

É importante que entendamos isto para que saibamos identificar todas as falsidades que já estão surgindo e que tendem a se intensificar à medida que outubro se aproximar.

Fake News não é apenas “mentira”. É uma mentira com planejamento, função e objetivo. Pra quê eu vou mentir? Sobre o quê eu vou mentir? Sobre quem eu vou mentir? Como eu vou mentir? Qual a consequência da minha mentira? Eu consegui o que pretendia com minha mentira?

Se você usar esse roteirinho pra ler a imagem abaixo, já vai começar a acender um monte de luzinha.

Letícia Sallorenzo

Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.

1 Comentário

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  1. Em épocas normais, o presente texto seria bastante esclarecedor. Infelizmente estamos em tempos sombrios, então textos como este se fazem necessários.

    Muitas pessoas andam alienadas em sua própria bolha e têm nenhum interesse em ver o outro lado. Neste caso, o dos jornalistas e seus obituários.

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