Entenda

Notas críticas às controvérsias sobre a Dívida Pública: tropeços à esquerda e à direita, por Nathan Caixeta

Notas críticas às controvérsias sobre a Dívida Pública: tropeços à esquerda e à direita

Nathan Caixeta[1]

A secretária do tesouro dos EUA, Jannet Yellen alarmou o mundo das finanças ao anunciar sua visão sobre o teto da dívida pública, argumentando a favor da expansão. Curiosamente, a questão da dívida já estava na baila do debate, quando o Evergrande anunciou suas dificuldades financeiras. Desde então, muitas páginas foram escritas para reabastecer o embate sobre a dívida pública, opondo os que verificam em sua dinâmica a perversidade do Estado “glutão”, ou, por outro lado, o instrumento responsável pela margem de manobra dos governos para a recuperação do crescimento econômico. Nesse terreno, pouco importa quem está com a razão, mas qual teoria será capaz de arrendar um assento nos palanques políticos.

No Brasil, dizem os magos da Faria Lima, a regra é clara: salvar o teto de gastos para evitar a explosão da dívida, pressão sobre os juros e desestimulo ao caminho mágico entre a valorização dos ativos e a confiança dos investidores. Não por menos, o ministro Paulo Guedes aproveitou as cabeçadas entre os presidentes da Petrobrás e do Banco Central, para trazer novamente a cena seu projeto de privatizações que incluem, segundo ele, todas as estatais que conseguir privatizar.

O que por vezes é esquecido e, presencialmente, ignorado é o papel precípuo que a dívida pública desempenha na reprodução do capital, antes mesmo de ser alvo dos açougueiros da “dominância fiscal”. Mesmo entre os regulacionistas que aplaudiram o esmero do governo chinês em conter a crise do Evergrande, a expansão do endividamento público é tratada como sintoma de um sistema financeiro compartimentado e intrinsicamente sustentado pela posição externa amplamente favorável das finanças chinesas.

Vejamos, em síntese, a dinâmica entre a reprodução do capital, do dinheiro e do endividamento do Estado:

A reprodução do capital respeita a sobredeterminação de sua próprio autorreferência sobre as órbitas da realização, da valorização e da acumulação de capital, atuando, portanto, como “valor que se valoriza” referido, necessariamente, ao dinheiro. Logo, a transformação da força de trabalho em trabalho-abstrato, e estes cristalizado na mercadoria durante o processo de trabalho tem por pressuposto na criação de valor-trabalho, a realização do valor em dinheiro, perfazendo a reprodução ampliada do capital. Absorvendo a esfera da realização, o capital é valorizado em todas as suas órbitas – comercial, produtiva e financeira – perseguindo no âmbito concreto a realização de seu conceito, isto é, dinheiro inicialmente aportado com a finalidade de se tornar mais dinheiro, quaisquer que sejam os meios de valorização. A acumulação de capital é a instância onde a valorização do capital ocorre ad aeternum, ou seja, onde todas as órbitas são fundidas e referidas aos estoques de riqueza cujo valor é definido por sua qualidade de liquefação, portanto, de os valores investidos em cada órbita de reprodução encontrarem equivalência presente na forma monetária. Verifica-se, então, a centralidade do dinheiro no processo de reprodução do capital, pois tanto a criação de riqueza, quanto sua valorização fixam-se em termos de sua referência potencial que pode ser transformada em qualquer coisa, e é aquela em que todas as coisas pretendem se transformar.

O dinheiro nasce como necessidade lógica da circulação de mercadorias, não como mero reflexo equivalente dos preços relativos, mas como pressuposto da criação de valor, supondo, desde logo, a essencialidade do crédito, isto é, relações de troca consumadas à vista, ou a prazo sob determinado “preço” para se desfazer do dinheiro na data presente, ou futura. O dinheiro, conforme assinalou Keynes, preserva uma característica especial em relação a qualquer outro bem ou ativo, pois a relação de crédito implícita na troca monetária oferece a preservação do valor em relação as demais mercadorias, físicas ou financeiras. Tal característica deve-se ao fato de o dinheiro absorver em sua forma os valores de troca de todas as demais mercadorias, sendo capaz de manter seu valor, a despeito da flutuação dos preços relativos, logo, gerando segurança ao seu detentor, distinção preferível a qualquer outro ativo, salvo as circunstâncias em que os riscos assumidos ao abandonar o dinheiro sejam recompensados pela valorização do estoque de riqueza. Portanto, o dinheiro sobredetermina tanto a criação de riqueza pela exploração da força de trabalho, quanto a circulação de mercadorias, completando seu reinado ao referir a reprodução do capital à sua própria forma, enquanto riqueza potencial.

Se o dinheiro é uma relação de crédito que permite fluidez para as investidas do capital sobre as órbitas de realização, toda relação monetária constitui uma dívida, cessada imediatamente no caso da circulação de mercadorias, e somente compensada quando a criação de valor pela exploração do trabalho é sancionada pelo mercado ao absorver as mercadorias produzidas. A circulação do capital no sistema bancário, permite que volumes de capital sejam adiantados pelos agentes capitalistas para quaisquer fins, inclusive para prospectar o valor futuro de um determinado ativo, comprando, vendendo, ou prometendo comprar e vender esse ativo em determinado prazo, mediante a determinação da remuneração esperada por quem se desfaz do dinheiro no tempo presente. Portanto, o sistema capitalista é movido pela dívida, pois sua dinâmica é nucleada pela referência da realização, valorização e acumulação de capital ao dinheiro.

A dívida pública aparece, logicamente, como fundamento da valorização privada da riqueza, porque entidade elementar da criação monetária pelo Estado. As tentativas históricas e recentes de criação privada de moeda acabam sempre no mesmo circuito invencível: criam-se ativos incapazes de preservar valor, apenas de flutuar conforme as expectativas de remuneração de seus detentores e potencial consumidores. A moeda estatal garante seu monopólio nas transações comerciais, produtivas e financeiras, porque ancoradas na relação de dívida entre o Estado e a sociedade, contemporaneamente operacionalizada por Bancos Centrais e Tesouros Nacionais. O Estado adianta recursos, “gastando” na montagem de sua infraestrutura física, bélica e burocrática, e para tanto, cria a moeda que circulará nos setores comerciais, produtivos e financeiros, deixando como contraparte a dívida pública concentrada nos Bancos que realizam a transformação da dívida pública em dívida bancária acessada por toda a sociedade para o financiamento de suas operações de gasto. Contudo, todas as operações de dívida criadas por agentes privados têm por ancora o endividamento público que opera no financiamento, em primeira instância, da criação de crédito pelos bancos, e salvaguarda do valor dos estoques de riqueza, em última instância. Logo, todos os ativos são referidos à moeda, e a moeda tem em sua salvaguarda a dívida pública capaz de expandir-se autonomamente, conforme a necessidade de crédito dos agentes econômicos, ou em momentos de crise e diluição dos valores dos estoques de riqueza.

O crescimento dos níveis de investimento, produção e consumo, portanto, da atividade econômica, prescindem da expansão das relações de crédito para o adiantamento dos recursos, gastos no presente para formarem a renda conjunta da sociedade. Isso não representa, necessariamente, volumes maiores de dinheiro em circulação no comercio e na produção, pois a medida em que o crédito bancário é expandido para atender as demandas dos agentes econômicos, parte desses recursos continuam no sistema bancário na forma de aplicações, ou retornam a ele quando os valores adiantados são pagos no prazo devido, guardando alguma margem de segurança. O sistema bancário somente pode operar dessa maneira, pois suas operações de captação e concessão de recursos ao público são asseguradas, primeiro pela possibilidade do empréstimo interbancário, e em último caso, pela possibilidade de o Estado injetar recursos nos balanços bancários, criando dívida pública.

Nota-se nesta síntese que o crescimento da economia está inerentemente relacionado a expansão da dívida público cujos compromissos são “rolados” para o futuro de modo a garantir liquidez ao sistema de crédito centrado nos bancos. O estabelecimento de “teto” para a dívida pública funciona como a aparição de uma nuvem para encobrir as estrelas, sem nada impactar a capacidade de serem superadas por foguetes. De igual forma, as metas para as taxas de juros, servem para sinalizar as pretensões da autoridade monetária a respeito do manejo da liquidez, podendo suas vontades serem contrariadas pelos bancos. Entra em cena, então, o aspecto político que regue a expansão da dívida pública, pois tanto os esforços fiscais para redução do endividamento público, quanto a “negociação” do Estado pela soberania na determinação das condições em que será processada a circulação da liquidez interbancária, e por fim, concedida ao público, são termos contraditórios de uma mesma coisa: o capital para consigo mesmo. Qualquer movimento de retração do endividamento público leva a desaceleração da dinâmica econômica que impactara em maior, ou menor grau a renda do conjunto da sociedade, a depender do impacto que os gastos que a classe empresarial pretende realizar terão sobre o nível de emprego.

A última década, demonstrou a perversidade da austeridade fiscal que visa reduzir os níveis de dívida pública até um patamar “aceitável” em relação ao PIB, solvendo as separações entre a produtividade dos setores econômicos e seu congraçamento pelo místico produto potencial. Do mesmo modo, houveram pressões declinantes para as taxas de juros, na tentativa de incitar os sistema bancário a emprestar. Se até aqui a lógica seguiu o bom senso: se ninguém pede emprestado por não verificar possibilidade de vender o produto, ou serviço futuramente produzido, nada adianta, não importando que a dívida pública supere a profundidade do solo, ou ao contrário, os limites da estratosfera.

Na mesma esteira, ao reduzirem os volumes de investimento, os empresários demitem, ou não contratam mais trabalhadores. “Um para de comprar do outroe vice-versa”, reduzindo a renda total da sociedade. Sem o Estado para dar o pontapé inicial, criando dívida e gastando, verificou-se estagnação, ou no caso brasileiro, uma brutal recessão.

A comparação entre dívida pública e PIB tornou-se o parâmetro de saúde atestado pelos analistas financeiros sobre a situação fiscal de um determinado país. Ainda que, via de regra, esta seja a mesma comparação possível entre uma torneira e um copo, sua utilização alastrou-se como febre para determinar o “risco” de solvência dos países. Mais ainda, além da dívida pública, os magos das finanças agregam ao volume da dívida pública, a dívida de empresas e famílias, para indicar os sinais de ruptura entre a dinâmica econômica e sistema de crédito. Sem pretender superar a hercúlea lembrança da progressão geométrica, me contentarei com a álgebra elementar:

Dívidas constituem estoques de riqueza compromissados com uma contraparte, enquanto o produto interno bruto (PIB) é o soma liquida da produção, igualada ao total da renda e dos gastos da sociedade em um determinado período do tempo, constituindo um “fluxo”. O estoque de dívida habitante do numerador é conhecido, bem como, sua tendência de evolução a depender do volume de recursos aportados aos tesouros nacionais, ou direcionados pelos bancos centrais ao sistema bancário. A totalidade da renda da sociedade, equivalente ao PIB, é formada após a consumação dos gastos em consumo e investimento, permanecendo como incógnita inacessível à razão do empresário ao determinar seu volume de investimentos, logo, a quantidade de trabalhadores que empregará. Contudo, não reside na “escorregada” temporal o absurdo dessa medida, mas na suposição de que tal medida expressa a capacidade de solvência de um país, ou seja, a capacidade do Estado de “honrar” com sua dívida para com a sociedade. Me permitam a extravagância: A EXPANSÃO DA DÍVIDA PÚBLICA OCORRE AUTONOMAMENTE AO RITMO DOS RECURSOS DISPENDIDOS, ao contrário de qualquer relação de dívida privada que sofre da restrição orçamentária imposta pelos riscos envolvidos na operação de crédito. Se o Estado pode trocar dívida por dinheiro e se todos querem dinheiro, como o Estado pode “quebrar”, cara pálida?

O bom financista, responderia: “ora, mas as expansões da dívida pública sinalizam aumento de impostos”, e completaria: “haveriam menores fluxos de capitais estrangeiros e pressão para a elevação dos juros”. As três preposições sofrem do mesmo equivoco analítico: uma vez que as expansões da dívida pública têm por consequência o adiantamento de recursos para a sociedade, diretamente via gastos governamentais, e indiretamente via sistema bancário, as expectativas dos empresários sobre suas vendas futuras se eleva, fazendo-os investir, contratar trabalhadores que, por sua vez, consumiram o que será produzido. A consequência é: a elevação do gasto pelo Estado aumenta a renda do conjunto da sociedade, portanto, sua própria arrecadação tributária, sem necessitar de expansões na carga tributária quanto progressiva, ou seja, mais proporcional a renda esta seja. Igualmente, crescendo a atividade econômica, os fluxos de capitais são estimulados pelas perspectivas de lucro, e além disso, as taxas de juros apresentaram tendência de queda á medida em que os recursos tomados para impulsionar os investimentos e o consumo terão como resultado uma renda maior. Deve-se a advertência de que o circuito aqui descrito tem maior, ou menor, efetividade a depender do nível de desigualdade, levantando a questão central quanto aos esforços estatais de estimulação da atividade econômica.

Contrariando os retalhos costurados por certa parcela dos economistas progressistas como Randall Wray e André Lara Resende, para comporem a colcha teórica da Moderna Teoria Monetária, notamos que a atuação do Estado ao expandir a dívida pública e guiar autonomamente a retomada econômica ante ao contexto de estagflação da última década e a recessão do cenário pandêmico, a questão coloca-se em termos um tanto mais complexos do que o autofinanciamento do gasto público pelo “taxes drives money“. Retornemos a álgebra elementar: uma sociedade desigual ao experimentar crescimento econômico apresenta grande mobilidade social pela via do mercado de trabalho, contudo, a distância entre ricos e pobres diminui marginalmente, pois se os pobres ficam menos pobres, os ricos ficam muito mais ricos, assim foi, a experiência brasileira entre 2003-2011. Por outro lado, sociedades com menor concentração de renda, franca igualdade de oportunidades e expansão de direitos civis e identitários apresentam, concomitante, crescimento da renda nas diferentes classes ocupacionais.

O lema do “gastar para crescer” é uma parlenda tão facilmente aceita em períodos como o que atravessamos, quanto fora a sinfonia dos açougueiros da austeridade fiscal. O único entrave para o crescimento da dívida pública é estabelecido pelo embate entre as autoridades monetárias e os grandes bancos, não pela expansão da dívida, mas por suas repercussões sobre o sistema de crédito governado pela queda de braço entre as exigências bem justificadas dos bancos por maior margem de manobra em suas operações especulativas tão recobertas que acabam desnudas pelo risco sistêmico, e o estimulo do Estado em direcionar os recursos para os setores produtivos. Quando a “banqueirada” tira o corpo fora, o Estado atua como financiador da especulação, como demonstraram as sucessivas rodadas de injeção monetária (Quantitative Easing – QE) desde 2008. Portanto, apenas “gastar” é como esperar pela salvação do deus mercado, algo não muito distinto da esperança de qualquer liberal. A questão fundamental está em duas indagações: “gastar aonde” e “receber de quem”, o que implica na indagação seguinte: qual o efeito sobre a distribuição de renda? – Fazendo com que o gasto estatal reverbere sobre todas as classes sociais e que as classes sociais mais beneficiadas, aquelas detentoras da propriedade, contribuam mais em proporção de sua renda para que no computo geral: “taxes drives money” deixe de ser uma parlenda e se transforme em mecanismo efetivo de equacionamento entre a expansão da dívida pública e o crescimento econômico.

Antes de me despedir, gostaria ainda de tecer alguns comentários sobre o Caso Evergrande e a questão da regulação financeira:

  • Porque a China foi capaz de segurar o estouro de uma crise que guarda relação aparente com a implosão imobiliária entre 2007-08? Os chineses aprenderam duas coisas que o ocidente já praticou com grande esmero entre 1950-1980: 1) por trás de toda operação que envolve grande aporte financeiro e longo prazo de maturação não pode estar misturadas fontes de financiamento e compromissos de remuneração crescentes ao ritmo de expansão do investimento. Não por isso, lá existem não apenas um, mas diversos canais de crédito semelhantes ao BNDES; 2) A regulação dos sistemas financeiros não se trata de “aprisionar” o capital bandido, mas de criar regras de funcionamento que favoreçam a interdependência entre grandes empresas e grandes bancos. A mais importante delas é quase uma heresia para os financistas ocidentais: controles de capitais na entrada e na saída. Desse modo, os chineses conseguem manejar, em simultâneo, sua posição externa levando a uma taxa de câmbio historicamente competitiva e a liquidez bancária compartimentada por diferentes regras de operação para instituições com diferentes graus de exposição e alavancagem. Assim, na ocorrência de casos como o Evergrande, o sistema financeiro chinês está protegido contra uma debacle sistêmica, pois é possível isolar o risco da instituição com problemas e trata-lo diretamente, impedindo o contágio sobre todo o sistema. Fica claro para os defensores apaixonados pela tese do “prenda que o bicho tá solto” que no capitalismo, o Estado não combate o capital, alia-se a ele pretendendo desenvolver social e materialmente a sociedade.

[1] Pós Graduando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/UNICAMP e Pesquisador Colaborador do NEC/FACAMP

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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