Sobre o perdão, do filósofo Érico Andrade

Sugestão de Antonio Nelson

Sobre o perdão

por Érico Andrade

Num regime de julgamento e condenação, tanto política quanto moral, o perdão é desfocado. Entregamo-nos muito pouco e dificilmente de modo completo, como sugere a origem latina da palavra perdão: per-donare (dar-se por completo). Temos em geral uma dificuldade em conceber, sobretudo para quem reconhecemos como diferente da gente. Para esses casos, o exercício da tolerância já não é, em geral, uma atividade fácil, ainda que seja muitas vezes recomendável. O exercício do perdão, contudo; dificilmente cogitamos.

Mas, acontece que o diferente não apenas está do nosso lado, em nossas famílias e entre nossos amigos, como também já esteve conosco. Esteve? Sim. Dificilmente alguém que está lendo este texto deixou de incorrer, pelo menos alguma vez em sua vida, em práticas preconceituosa, condenáveis, como, por exemplo; atitudes racistas, sexistas e heteronormativas, nem muito menos está completamente livre dessas práticas. Contudo, não titubeamos em condenar, com veemência, aqueles que não consideramos mais como nós mesmos; o diferente de mim. Somos capazes de esquecer nossas memórias, o passado, quando calorosamente atacamos o outro, o estranho; aquele com o qual não me reconheço mais: o abjeto.

É como se a condenação do outro implicasse a minha absolvição, moral e política. A absolvição diante do tribunal público dos que são supostamente como eu sou. Ao condenar o outro eu retiro de mim toda responsabilidade, pela construção social do preconceito e projeto no outro a culpa. Expurgo-me, como assere Butler, quando acuso e julgo.

Sem dúvida, é um enorme ganho estarmos vigilantes quanta a práticas nefastas e inaceitáveis; difundidas em nosso tempo, difícil tempo. Não se trata aqui de ser leniente, nem muito menos conivente com essas práticas. Práticas que são, quando não sempre, muitas vezes, criminosas. Mas, o que proponho é sairmos um pouco do punitivismo de Crime e Castigo.

Atualmente temos acentuado uma tendência a não reconhecer no outro aquilo que fomos. Vemos nele apenas aquilo que nunca queríamos ter sido. Se há positividade em não se reconhecer mais como figura abjeta, sinal que somos capazes de criticar nossas posturas, essa positividade se dissipa quando nos autorizamos a traçar uma distinção, por assim dizer, essencial entre quem julga e quem é julgado; como se houvesse uma diferença tão radical que tornasse inviável que o outro, assim como nós, também pudesse mudar. Preferimos, muitas vezes, a condenação – o castigo – a procurar ver no outro aquilo que também nos constituiu, pelo menos em algum momento de nossas vidas.

Assim, a menos que queiramos fugir para ilhas desertas (cercadas apenas de pessoas boas como nós), é preciso fazer o esforço não apenas de nos descontruir a nós mesmos, mas de não sedimentar uma compreensão tão cristalizada do outro que nos impeça de reconhecê-lo, pelo menos, como alguém que fomos e oferecer a ele a possibilidade do diálogo. É evidente que nem todas as pessoas estão dispostas a dialogar, nem muito menos estamos plenamente de acordo sobre o que significa dialogar. Mas, isso não nos exime do exercício de nos perdoamos, por não termos sabido fazer diferente quando incorremos nas referidas atitudes abjetas. E, por conseguinte, ver no outro não uma opacidade radical, mas o reflexo do que fomos e que muitas vezes, mesmo contra nossa vontade, ainda somos.

Érico Andrade – Filósofo e professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco / Sócio do Círculo Psicanalítico de Pernambuco / Crítico de cinema – [email protected]

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