Viddy well, little brother, viddy well…, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Viddy well, little brother, viddy well…

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Tenho acompanhado a carreira de Márcia Tiburi basicamente através do Twitter e do Facebook, espaços em que os vídeos e textos dela são compartilhados. Ela estava no lançamento do livro Estado Pós-Democrático.

Num artigo escrito em parceria com Rubens Casara publicado na Revista Cult e reproduzido aqui mesmo no GGN, ela disse que:

“O fascista age em nome da realização do desejo da audiência enquanto, ao mesmo tempo, o manipula” .

O conceito, que também foi explorado no livro Estado Pós-Democrático, evoca um aspecto interessante do fascismo e do nazismo: o espetáculo. Além de cativar suas platéias com discursos que mesclavam emoções básicas a conteúdos pseudo-racionais, Mussolini e Hitler foram líderes políticos que se tornaram mestres no misancene. Fascistas e nazistas se tornaram especialistas em envolver platéias imensas utilizando recursos cênicos e teatrais: uniformes, bandeiras, marchas programadas, exibições teatralizadas de poder militar e grandiosidade política.

À comunhão mística (ou mítica) produzida pelo espetáculo possibilitou a construção de dois grupos irreconciliáveis: nós x outros. Os adversários políticos puderam assim ser transformados em inimigos do Estado. Em consequencia disso, o desejo da audiência me parece intimamente ligado ao principal fenômeno do fascismo e do nazismo: a transformação de ações eticamente desvalorizadas (matar, agredir, ofender, maltratar) em atos esteticamente valorizados.

O culto da beleza antiética foi elevado à condição de instituto criminal pelos juristas alemães. Alguns dos responsáveis pelo atentado contra o führer foram enforcados com cordas de piano e as execuções foram filmadas para serem apreciadas por Hitler.

Nossa constituição assegura a integridade física e moral do detento e proíbe penas corporais, mas o espetáculo penal retornou ao Brasil pelas mãos da imprensa. Rachel Sheherazade se notabilizou por exibir e incentivar os linchamentos de suspeitos (atos de legítima defesa coletiva, segundo ela). Todavia, Sheherazade não foi a primeira a fazer isto. Antes dela vários jornalistas fizeram suas carreiras exibindo e elogiando a violência policial.

Seduzido pelo desejo da audiência o judiciário parece ter aderido à moda quando Joaquim Barbosa mandou a PF transportar José Dirceu para Brasília sem necessidade para que ele pudesse ser filmado algemado. Lula foi conduzido coercitivamente de maneira ilegal, mas a ilegalidade do ato sequer foi mencionada pelos jornalistas exibiram o espetáculo patrocinado pela PF em que o ex-presidente se tornou coadjuvante.

Márcia Tiburi e Rubens Casara tem razão quando afirmam que o fascismo se infiltrou nas instituições brasileiras por causa do caldo de cultura construído pela imprensa. O problema é que a valorização estética da violência não é um fenômeno especificamente político. Digo isto pensando em dois fenômenos: as brigas de torcidas agendadas pela internet e pelo WhatsApp, que sempre resultam na divulgação de vídeos dos encontros. Mais recentemente se tornou moda queimar um amigo dormindo com água quente.

Estes subprodutos do capitalismo neoliberal se tornaram comuns durante a guerra do Iraque. Impossível esquecer as fotos de sevícias praticadas por soldados norte-americanos em Abu Graib ou o vídeo do Collateral Murder que transformou o Wikileaks num fenômeno global.

Todos estes episódios se caracterizam pelo desejo de platéia e ilustram a valorização estética da violência, mas alguns deles não podem ser considerados manifestações programáticas do fascismo. Muito embora contribuam para legitimar a violência estatal e política, as brigas de torcidas e o desafio da água quente parecem estar mais ligados à fixação neurótica pela publicidade.

Vivemos num mundo em que a imagem diz mais do que qualquer coisa que possa ser pensada e dita. O processo de individuação pelo autoconhecimento e pelo compartilhamento de indagações deixa de ter valor. A única válida é a certeza de que nossas imagens serão vistas, pouco importando como elas serão julgadas. Sou visto, logo existo substituiu o Cogito ergo sum de René Decartes.

A ambiguidade da imprensa completa o quadro. É fato, a mídia tem uma predileção pelo grotesco. Se uma partida de futebol termina empatada sem gols e sem nenhum incidente, a notícia ocupará alguns segundos num programa esportivo. Se ela terminar com gols, o tempo de reexibição do espetáculo será maior e despertará interesse apenas dos torcedores dos dois clubes. Mas se ocorrer uma briga na arquibancada com dezenas de feridos e alguns mortos, o espetáculo poderá ser explorado à exaustão inclusive nos telejornais noturnos.

Mesmo indesejada, a violência faz o espetáculo se tornar mais rentável. Inclusive e principalmente porque ao contrário dos jogadores, agressores e vítimas não podem cobrar direito de imagem das redes de TV.

A exibição ou não das cenas da execução de Saddan Hussein e de Muamar Kadafi produziu debates interessantes. Mas no final quase todas as redes de TV resolveram transmitir aqueles episódios sangrentos porque os concorrentes iriam transmiti-lo.

Viddy well, little brother, viddy well… Mais do que ser uma manifestação específica de um programa político fascista a frase dita pelo protagonista do romance distópico de Anthony Burgess se transformou no único fundamento metafísico da civilização ocidental.

Fábio de Oliveira Ribeiro

3 Comentários

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  1. “Consumo, logo existo”

    Como não repensar naquele livrinho que apareceu pela primeira vez em 67 chamado “A Sociedade do Esptaculo”? Guy Debord analisa naqueles primeiros tempos televisuais, mas ja tendo o cinema como propaganda e o fascismo e nazismo como experiências de sociedade, o que viria a ser o nosso admiravel mundo das representações que se esvaem como fumaça. 

    “O nosso mundo, sem duvida, prefere a imagem à coisa, a copia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser…”

  2. O buraco é maias embaixo

    Acho que é por aí, mesmo. Mas, é preciso acentuar as cores da crueldade, aumentar o volume dos atos violentos para que o desejo da espetacularização da violência possa fazer algum sentido. Isto não se consegue sem a colaboração hedionda de estruturas deixadas pela ditadura e que sempre foram toleradas pelas clases prvilegiadas, por uma crença absurda de qeu a violência institucional geraria a não violência marginal. E que a esqierda não se exima deste cacoete. Nenhuma instituição de segurança no país deixou de ser o que sempre foi durante os governos de esquerda. Tão aguerridos contra a ditadura e tão coniventes com a estrutura deixada por ela! Pergunte a um morador de periferia e, com certeza os relatos irão além da mera reclamação contra a polícia. Tanto esta, quanto o crime organizado (também filho do autoritarismo) sempre foram trataos como forças políticas ou categorias respeitáveis pelas lideranças locais. Injustificável! Pra quem tem alguma dúvida de que isto ocorreu, busque alguma explicação melhor para o advento do fascismo no Brasil. Ele só cresceu. Mas, nunca deixou de existir.-***

  3. https://apnews.com/0652e7201e

    https://apnews.com/0652e7201e6f443796e004e7b5e49a00

    A notícia acima confirma minha tese. O culto da violência e das armas de fogo não encontra mais qualquer oposição nos EUA. A civilização afunda enquanto o barbarismo se expande alimentado pelo medo. Paranoia for all, inclusive para os gays norte-americanos, que não por acaso querem ser vistos dando tiros como se fossem iguais aos nazistas e fascistas que estão acostumados a agredi-los.

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