EUA e a redefinição dos Direitos Humanos, por Hannah de Gregório Leão

Qual seria a legitimidade jurídica de uma única nação para redefinir o significado de direitos garantidos não somente na DUDH, mas em tratados internacionais de direitos humanos?

Eleanor Roosevelt com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948

do OPEU – Observatório Político dos Estados Unidos

EUA e a redefinição dos Direitos Humanos

por Hannah de Gregório Leão

Em fevereiro de 2020, o governo estadunidense anunciou sua intenção de redefinir os direitos humanos. Também aclamada pelo atual governo brasileiro, a medida pode ter impacto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e nos demais tratados de direitos humanos. A mesma nação que impulsionou o estabelecimento da DUDH em 1948 por parte da ONU, a partir da figura de Eleanor Roosevelt, busca hoje, contraditoriamente, fazer uma releitura de seu texto e de seus direitos, em mais uma tentativa de redefinir os direitos humanos para sua própria agenda política.

Em A Era dos Direitos (Elsevier, 2004), Norberto Bobbio afirmava que os direitos do homem são de per si direitos mutáveis, redefinidos por cada “geração” (“dimensão”, ou “categoria”, a depender do doutrinador), como direitos históricos. Segundo este filósofo e historiador, os direitos do homem nascem de forma gradual, sendo resultado de lutas e de movimentos históricos. Não haveria, portanto, uma concepção estática desses direitos, construídos histórica e politicamente. Como adverte Bobbio, na página 25 do livro mencionado acima,

A quem pretenda fazer um exame despreconceituoso do desenvolvimento dos direitos humanos depois da Segunda Guerra Mundial, aconselharia este salutar exercício: ler a Declaração Universal e depois olhar em torno de si. Será obrigado a reconhecer que, apesar das antecipações iluminadas dos filósofos, das corajosas formulações dos juristas, dos esforços dos políticos de boa vontade, o caminho a percorrer é ainda longo. E ele terá a impressão de que a história humana, embora velha de milênios, quando comparada às enormes tarefas que está diante de nós, talvez tenha apenas começado.

Em primeiro lugar, deve-se ressaltar os limites e as fronteiras entre a concepção de constante (re)nascimento dos direitos humanos, elaborada por Bobbio, e a política americana de releitura dos direitos humanos. Bobbio enunciava sua teoria sobre a constante mutação dos direitos humanos enquanto fator direto das transformações sociais, sobretudo, pela atualização das lutas e das demandas dos movimentos sociais e da sociedade civil. No caso da releitura estadunidense, trata-se de uma redefinição unilateral do governo americano, não se encaixando na teoria exposta por Bobbio.

Qual seria a legitimidade jurídica de uma única nação para redefinir o significado de direitos garantidos não somente na DUDH, mas em tratados internacionais de direitos humanos?

Apesar de a DUDH não possuir efeito vinculante — por não ser um tratado internacional —, é considerada direito costumeiro internacional. Dessa forma, possui efeito vinculante para os Estados, pelo fato de expor práticas estatais reiteradas e uma opinião comum desses mesmos Estados sobre esses direitos (opinio juris). Portanto, ainda que se seja apenas uma Declaração, a DUDH possui certo efeito vinculante perante os Estados.

Direitos sob risco

Grande parte dos direitos assegurados na DUDH também são assegurados no Pacto dos Direitos Civis e Políticos (1966). Tem-se como exemplo o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, o qual é assegurado pelo artigo 3º da DUDH e, ao mesmo tempo, assegurado nos artigos 6 e 9 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos. De acordo com o artigo 31 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT), “um tratado deve ser interpretado de boa-fé segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade”.

Nesse sentido, fazer uma revisão unilateral dos direitos humanos não significa somente fazer uma releitura da DUDH, mas de diversos tratados internacionais de direitos humanos. Além disso, o próprio caráter costumeiro das normas definidas na DUDH, demonstrando seu caráter vinculante, já evidencia uma incapacidade de qualquer releitura unilateral que tenda a esvaziar a força protetiva e efetiva de seus direitos e a desprezar o “sentido comum” de interpretação previsto no artigo 31 da CVDT.

Deve-se ressaltar que a posição estadunidense como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU não concede uma capacidade jurídica de dizer o Direito. Historicamente, os Estados Unidos demonstram posições controversas no Direito Internacional, ressaltando-se a tentativa de caracterização de intervenções humanitárias como sendo de direito costumeiro e a tentativa constante de legitimar suas ações militares com base na legítima defesa preventiva, a qual é considerada ilegal pelo Direito Internacional. Ambos os casos citados evidenciam ocorrências de tentativas estadunidenses de legitimar ataques armados ilegais, claramente violando os direitos humanos e a obrigação essencial de proteger civis.

Uma redefinição unilateral dos direitos humanos — em especial se considerarmos trajetória e antecedentes dos EUA com relação ao Direito Internacional — demonstra um possível perigo e tentativa desses direitos serem esvaziados. Também é um risco, como pontua Boaventura de Sousa Santos, de que esses direitos adquiram uma tonalidade puramente política, para serem utilizados como arma defensiva e polarizada de determinada nações, como ocorreu na Guerra Fria.

Os direitos humanos são, antes de tudo, conquistas históricas árduas de movimentos sociais, de grupos minoritários e da sociedade civil, e não armas políticas das nações hegemônicas.

Hannah de Gregório Leão é graduanda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), membro do PILLS (Public International Law Litigation Society) PUC-Rio e pesquisadora do Programa de Educação Tutorial (PET) do Departamento de Direito da PUC-Rio na área de Direito Constitucional. Texto revisado por Tatiana Teixeira.

Redação

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