Notas sobre (a morte d)o liberalismo, por Heldo Siqueira

por Heldo Siqueira

A crise econômica de 2008 e seus evidentes desdobramentos já mostravam pistas de seus resultados na política há algum tempo. Os conflitos internos na zona do Euro e o Brexit podem ser interpretados por essa perspectiva. A eleição de Donald Trump, independente dos discursos machistas, xenófobos e classistas, me parece mais uma prova cabal de que a visão (neo)liberal está ultrapassada. Enquanto o Brasil continua debatendo como tornar nosso modelo fiscal mais atrativo para o investimento estrangeiro através da PEC do Novo regime fiscal.

Algumas das análises mais importantes sobre os problemas econômicos pelos quais o Brasil passou nos anos 1980 dão conta de que, em verdade, o país optara, alguns anos antes, em permanecer com o desenvolvimentismo/protecionismo. Essa visão havia baseado o II PND, a despeito de ter dados sinais claríssimos de desgaste. A versão da moda é que as políticas desenvolvimentistas haviam tornado-se anacrônicas. O endividamento proveniente do Plano e sua lógica protecionista impuseram ao país dificuldades que nos fizeram “perder” toda uma década. Enfatizava-se, naquele momento, que as políticas liberais que tiraram os países desenvolvidos da crise.

A generalização do discurso liberal nos anos 1990 permitiu que se passassem quase duas décadas fazendo reformas liberalizantes, todas insuficientes para a aplicação completa do receituário. A caracterização dessas reformas, a despeito de não representaram qualquer tipo de abertura do mercado de trabalho, eram terceirizações de fábricas para países de mão-de-obra barata e estado enxuto (também barato) e desregulamentações para a atração de capitais. No plano nacional, a imposição dos mercados para a manutenção dos investimentos produtivos implicava em diminuição do custo do Estado e da mão-de-obra.

Assim como a crise dos anos 1980 mostrara a farsa do que representava o desenvolvimento com poupança externa, a crise de 2008 mostrou que a liberalização financeira estimulava muito mais a especulação que o desenvolvimento. Muito mais rápido que o discurso econômico, (a meu ver) o debate do dia a dia parece radicalizar em relação à negação do liberalismo. O resultado sem filtro são os discursos machistas, xenófobos e classistas. Trata-se de uma interpretação da eleição de Donald Trump.

Como a repetição farsesca da história parece fadar o Brasil dos últimos tempos (no que se refere a chegar ao poder sem necessidade de voto), o governo brasileiro parece determinado a apostar nas políticas de enxugamento do Estado e barateamento da mão-de-obra. Se essa insistência se mostrará anacrônica o tempo dirá…

Por fim, o papel dos pensadores nesse momento parece ser o de construir um discurso alternativo ao (neo)liberalismo que não seja machista, xenófobo e classista, mas não reformá-lo. Parece uma tarefa tão difícil quanto instigante.

Redação

43 Comentários

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  1. Sair do capitalismo

    Sari do capitalismo (e não só do liberalismo) é o único jeito, mas é considerado loucura. Estamos num ponto em que é impossível um capitalismo “humanizado” , como foi o da social-democracia, mesmo porque, com a indústria 4.0, robôs e web não há trabalho para todo mundo. 

    Não precisamos de alternativas ao liberalismo, mas ao capitalismo.

    Não precisamos distribuir renda, mas acabar com o dinheiro.

    Não precisamos libertar o trabalho do capital, mas nos libertar do trabalho.

    Não precisamos rearrumar mercado e estado, mas extingui-los.

    Não precisamos refundar a política e os partidos, mas acabar com ambos.

    Mas dizem que essas ideias aí são loucura. Paciêcia.

    1. Então vamos para o mato

      Então vamos para o mato viver de caçar pássaros e catar frutinhas. Assim não há capitalismo, nem dinheiro, nem mercado, nem estado, nem política nem partidos.

      Vejo que a esquerda, depois de mais um malogro no poder, está voltando para a velha “masturbação ideológica” de teses ingênuas, inexequíveis e inócuas. Melhor assim.

  2. Sinais dos tempos

    O Brasil, como sempre, é um país retardatário. Quando os EUA, país berço do neoliberalismo, abandonam sua criatura, pois esta já está caduca, o Brasil a adota.

    Atualmente, está nascendo uma tendência internacional de negação da política. Doria se elegeu Prefeito de  São Paulo no primeiro turno, apresentando-se como administrador e não como político. Trump repete a dose. Se esses administradores falharem, talvez a classe trabalhadora se dê conta de que o problema não é político, mas econômico, e que a solução não é o fim do neoliberalismo, já que este não é o problema, mas apenas um agravante, mas o fim capitalismo.

    E eu acho que tanto Dória quanto Trump vão falhar. O Trump vai falhar porque não vai conseguir girar para trás a roda da história, fazendo-a recuar para antes de 1972, e o Dória porque não vai fazer a referida roda girar para a frente, já que ela enguiçou.

  3. Apenas meio passo atrás.

    O Trump e outros como os que defendem o Brexit, querem apenas o velho capitalismo. O ideal globalizante e o fetiche do mercado dos neoliberais  parece não ter dado bons resultados. Dos tais ideais financeiros do  mercado restou  apenas uma crise internacional que não desaparece. Na Europa  as imposições do mercado se junta a uma xenofobia latente e isto perigosamente namora com o nacionalismo extremo ( fascismo e nazismos ressurgem) e aponta na destruição do Euro. Veremos se a social democracia vai saber contornar tudo isto. Mas não se enganem Trump trabalhou apenas a saudade do velho capitalismo, cheio de multinacionais Americanas, sediadas e produzindo em solo americano mas vivendo do mercado nos outros países. A working class da antiga e pujante industria dos grandes lagos, tem saudades dos velhos tempos.

    1. Sobre o novo e o velho capitalismo

      Independente das concepções alternativas sobre o capitalismo, não as vejo como viáveis ou mesmo as apoio.

      A questão fundamental é que competitividade no capitalismo não diz respeito à produtividade da mão de obra. Isso nunca aconteceu e nunca acontecerá! Ser competitivo no capitalismo diz respeito à produtividade do capital. Os países desenvolvidos são mais ricos porque o capital lá é mais barato e produz mais. A mão de obra nos países desenvolvidos é muito menos produtiva que nos países pobres (alguém que queira tirar dúvida experimenta contratar uma empregada doméstica no Brasil e na Suécia para limpar a mesma casa e compara qual é mais barata).

      Por isso o protecionismo se dá no mercado de trabalho e não no mercado de capital (qualquer multinacional de país pobre que queira investir em países rico terá incentivos e tapete vermelho).

      A questão fundamental é que o Brasil está tentando abrir mão do restante da produtividade do capital (infraestrutura, sistema de governança e aparato institucional) para explorar a mão de obra. Ao invés de tentar baixar o preço do capital para incentivar a troca de trabalho por mão de obra (o que efetivamente aumenta a produtividade), incentiva-se a precarização do trabalho e, ao mesmo tempo, a utilização de mão de obra. O resultado são a desindustrialização (alguns classificariam como precoce mas não acho que exista momento certo para fazer burrice) e a preponderância de setores especializados em trabalho.

      Resumindo, a superação do capitalismo somente possa se dar com o aumento da produtividade do capital, o que representa bonança e não com a disseminação da pobreza através das políticas de precarização do trabalho.

      1. O capital não produz, portanto, o capital não é produtivo

        Sr. Heldo,

        O capital não produz, portanto, o capital não tem produtividade. Quem produz é apenas o trabalhador. Em sendo assim, se o capital não produz, ele apenas torna o trabalho mais produtivo. Quando uma máquina é introduzida no processo de produção, o número de empregados diminui porque menos trabalhadores produzirão, através da nova tecnologia, a mesma quantidade antes produzida por todos os empregados.

        À medida que as máquinas são usadas no processo de produção elas se desgastam na mesma proporção. Portanto, elas não produzem, já que elas próprias são um produto.

        1. Raciocínio confuso

          O capital não produz, quem produz é o trabalhador? Está comparando conceitos distintos. A função do capital não é produzir. O capital é uma relação social, um pacto que garante que a força de trabalho será alocada para produzir da forma planejada pelos detentores do capital. Quem acredita que pode haver produção sem capital também acredita que os trabalhadores são como abelhas em uma colméia, geneticamente programados para trabalhar sem o comando de ninguém.

          As máquinas podem ser um produto, caso sejam vendidas, mas quem as produz são outras máquinas. Portanto, elas podem opu não ser um produto, mas sempre produzem, do contrário não serviriam para nada. As máquinas aumentam a produtividade e liberam a mão-de-obra substituída para outras atividades.

          1. Economia é uma ciência, portanto, não uma religião.

            Economia não é uma religião, é uma ciência. Em sendo assim, não se trata de acreditar ou deixar de acreditar mas de descobrir suas relações, suas leis e descrevê-las.

            Nada obstante a economia não ser uma questão de fé, mas de fato, quem acredita que só pode haver produção capitalista, acredita que os patrões foram geneticamente programados para comandar trabalhadores e estes, por sua vez, foram geneticamente programados para produzir sob as ordens dos capitalistas.

          2. “O capital é uma relação

            “O capital é uma relação social, um pacto que garante que a força de trabalho será alocada para produzir da forma planejada pelos detentores do capital.” Essa é a questão fundamental… 

            Acrescentaria dois elementos:

            i) o fator de produção não é o trabalhador, mas a força de trabalho. Por um lado, independente da produção, o trabalhador é apenas uma pessoa. O que faz dele produzir qualquer coisa é aplicar sua força ao processo produtivo. A força de trabalho é uma mercadoria produzida como qualquer outra. Nesse sentido, o trabalhador também não tem produtividade se não estiver incluído no processo produtivo.

            ii) Faltou dizer que o capital é a relação social de produção orientada para a obtenção do lucro. É possível conceber relações sociais de produção que não sejam orientadas para o lucro.

          3. Falou tudo e não disse nada

            “O fator de produção não é o trabalhador, mas a força de trabalho (…) A força de trabalho é uma mercadoria produzida como qualquer outra. Nesse sentido, o trabalhador também não tem produtividade se não estiver incluído no processo produtivo”

            Disse uma porção de coisas óbvias e não acrescentou nada, nem rebaeu meus argumentos.

            “Faltou dizer que o capital é a relação social de produção orientada para a obtenção do lucro. É possível conceber relações sociais de produção que não sejam orientadas para o lucro”

            A obtenção do lucro é condição sine qua non para a produção de riqueza. Nenhum empreendimento é possível sem lucro, assim como não é possível encher 15 garafas de um litro tendo-se apenas 10 litros de água. É possível conceber relações sociais de produção que não sejam orientadas para o lucro, como no caso de ONG´s e associações sem fins lucrativos, mas nesse caso não há incremento algum na quantidade de bens ou serviços produzidos, apenas a redistribuição de alguma coisa já existente.

          4. Excedente econômico não é necessariamente lucro!

            <p>Não tinha intenção de rebater seus argumentos, apenas os complementei.</p><p>

            Produtividade é uma relação de produção e não de distribuição de recursos. É quando se produz mais que a remuneração dos fatores em termos do preço dos fatores no início da produção.</p><p>Contabilmente, o lucro é a diferença da receita (no fim da produção) em relação aos custos adiantados. Ou seja, se a produção adiantasse o pagamento de lucros já na produção, não haveria excedente. Isso implica que o lucro somente pode se materializar na distribuição e não na produção. Ou seja, se há excedente na produção e ele não pode ser lucro!</p><p>Admitindo que há excedente, que ainda não é lucro, pode ser apropriado como aumento de salário (ou benefício social), impostos ou como lucro.</p><p>Em resumo, o lucro está relacionado à distribuição de recursos e não à produção. Associações sem fins lucrativos e instituições públicas, por exemplo, apropriam-se de excedente econômico que não é lucro. Em resumo: nem todo o excedente econômico é lucro, logo pode haver sociedade sem lucro.</p><p>&nbsp;</p>

          5. O lucro é extraído na produção e realizado na circulação

            Haverá excedente, ou seja, haver[a mais-valia na produção capitalista, a diferença entre uma socieade burguesa e a sociedade pós-burguesa é que esse excedente, essa mais-valia produzida pelos trabalhadores será apropriada pela sociedade, e não pelos proprietários privados dos meios de produção, já que os meios de produção serão propriedade da coletividade.

            No Programa de Gotha, escrito por Lassalle, constava que:

            “A libertação do trabalho requer a elevação dos meios de trabalho a bem comum da sociedade e a regulamentação co-operativa do trabalho total com repartição justa do provento do trabalho.”

            Criticando esse ponto Marx escreveu:

            “«Elevação dos meios de trabalho a bem comum»! Deve, sem dúvida, querer dizer a sua «transformação em bem comum». Contudo, isto só de passagem.

            Que é «provento do trabalho»! O produto do trabalho ou o seu valor? E, no último caso, o valor total do produto ou apenas a parte de valor que o trabalho acrescentou de novo ao valor dos meios de produção consumidos?

            «Provento do trabalho» é uma representação vaga que Lassalle pôs no lugar de conceitos económicos determinados.

            Que é repartição «justa»?

            Não afirmam os burgueses que a repartição actual é «justa»? E, de facto, não é ela a única repartição «justa» na base do modo de produção actual? Regulam-se as relações económicas por conceitos jurídicos ou não nascem, inversamente, as relações jurídicas das económicas? Não têm também os sectários socialistas as representações mais diversas sobre repartição «justa»?

            Para saber o que se quer representar, nesta oportunidade, com a frase «repartição justa» temos de confrontar o primeiro parágrafo com este. Este último subentende uma sociedade em que «os meios de trabalho são bem comum e o trabalho total é regulado co-operativamente» e, pelo primeiro parágrafo, vimos que «o provento do trabalho pertence não reduzidamente, por igual direito, a todos os membros da sociedade».

            «A todos os membros da sociedade»? Também aos que não trabalham? Que acontece, então, ao «provento não reduzido do trabalho»? [É] só para os membros da sociedade que trabalham? Que acontece, então, «ao igual direito» de todos os membros da sociedade?

            Mas «todos os membros da sociedade» e «o igual direito» são manifestamente apenas maneiras de dizer. O cerne consiste em que, nesta sociedade comunista, cada trabalhador tem que receber o seu Lassalliano «provento não reduzido do trabalho».

            Se tomarmos, primeiro que tudo, as palavras «provento do trabalho» no sentido do produto do trabalho, então, o provento co-operativo do trabalho é o produto social total.

            A isso há, então, que deduzir:

            Em primeiro lugar: cobertura para reposição dos meios de produção gastos.

            Em segundo lugar: uma parte adicional para expansão da produção.

            Em terceiro lugar: um fundo de reserva ou de seguro contra acidentes, perturbações por fenómenos naturais, etc.

            Estas deduções ao «provento não reduzido do trabalho» são uma necessidade económica e há que determinar a sua grandeza segundo os meios e as forças disponíveis, em parte por cálculo de probabilidades, mas de modo nenhum elas são calculáveis a partir da justiça.

            Fica a outra parte do produto total, destinada a servir de meio de consumo.

            Antes de se chegar à repartição individual, retira-se de novo dela:

            Em primeiro lugar: os custos de administração gerais, não directamente pertencentes à produção.

            Esta parte será, desde o início, limitada do modo mais significativo, em comparação com a sociedade actual, e diminui na mesma medida em que a nova sociedade se desenvolve.

            Em segundo lugar: o que está destinado à satisfação comunitária de necessidades, como escolas, serviços sanitários, etc.

            Esta parte cresce significativamente, desde o início, em comparação com a sociedade actual e cresce na mesma medida em que a nova sociedade se desenvolve.

            Em terceiro lugar: fundo para os incapazes de trabalho, etc, para o que hoje pertence à chamada assistência aos pobres oficial.

            Só agora chegamos à «repartição» que o programa, sob a influência de Lassalle, tem em vista – [e] apenas de um modo tacanho -, a saber: à parte dos meios de consumo que são repartidos entre os produtores individuais da [sociedade] co-operativa.

            O «provento não-reduzido do trabalho» já se transformou por baixo de mão em «reduzido», se bem que aquilo que não vai para o produtor na sua qualidade de indivíduo privado lhe venha a caber, directa ou indirectamente, na sua qualidade de membro da sociedade.”

          6. Segundo o Pedro, as máquinas não só produzem mas se reproduzem

            De acordo com o comentarista Pedro ABBM, as máquinas não só produzem mas também se reproduzem.

            Achar que as máquinas produzem, e não que apenas aumentam a produtividade do trabalho, é o mesmo que achar que viagra tem relação sexual. Será que as máquinas tomam viagra antes de se prepararem para a reprodução, Pedro?

            Ou a reprodução das máquinas é assexuada?

            Máquinas não trabalham. Ponto

          7. O capital constante se reproduz simplesmente

            As máquinas não produzem máquinas, como deseja o Pedro ABBM. Mas o fato das máquinas não se reproduzirem não quer dizer que não haja reprodução simples do capital constante, desde que irrigado com capital variável, isto é, com trabalho vivo.

      2. Prezado Heldo

        Prezado Heldo

        Espero que não pense que estou defendendo o velho ou o novo capitalismo, apenas o que digo é que Trump está prometendo o velho Capitalismo,  num mundo desigual que ele mesmo ajudou a criar. Suas promessas me parecem apenas eleitoreiras, e não creio que ele vá  sequer tentar  o que prometeu mas isso  só saberemos mais adiante.  Mas com certeza irá destruir a securidade social, e o Obamacare. Isto é, vai precarizar ainda mais a debilitada vida dos desempregados americanos. Quanto a superação do capitalismo, eu ainda não tenho resposta, mas sonho todos os dias com isto.

        1. Capitalismo

          Caro Frederico

          Entendi que não se trata de uma defesa do velho capitalismo. Estou salientando que alguns elementos do (neo)liberalismo não são tão liberais assim, principalmente no que tange ao mercado de trabalho.

          Estamos todos pensando como será a negação do liberalismo e, concordo com você, não será a volta do velho capitalismo protecionista. Na verdade, acho que as pistas estão nos elementos que foram liberalizados nos anos de (neo)liberalismo e não daqueles que não foram. Me refiro aos mercados financeiros e à internacionalização do capital.

          A preocupação com a xenofobia e com liberdades individuais é saudável, e entendo que seja um ponto de recrudescimento, mas não servirão para explicar as tendências do capitalismo.

          A questão é que há uma onda de economistas e outros pensadores sugerindo políticas baseadas em uma nova forma de valorização do capital nacional, enquanto o pessoal que está no poder ainda se interessa por questões que não servirão para nos (lhes) dar competitividade em nível global.

  4. Enxugar o Estado não é “liberalismo”

    Enxugar o Estado não é “liberalismo”, é uma providência indispensável para todo aquele que gasta mais do que arrecada. O neoliberalismo é um conceito dos anos 80, da Inglaterra deThatcher e dos EUA de Reagan, e há muito o termo já se encontra em desuso, exceto na América Latina, onde se tornou sinônimo de tudo o que há de ruim no mundo. Virou um totem, um fetiche. A crise de 2008 não foi a crise do neoliberalismo, e já passou há muito tempo, os países que se creem ainda afetados por ela na verdade apresentam desajustes estruturais que vinham desde antes de 2008, e que se encontravam camuflados pelo período de expansão da economia mundial puxado pela China nos anos 2000. Como diz o ditado, quando a maré baixa é que se vê quem está nadando pelado.

    1. “há muito o termo [neoliberalismo] já se encontra em desuso…”

      “… exceto na América Latina”.

      É o que acontece, quando as fontes de informações sobre economia se restrigem a  Miriam Leitão, Sardenberg e Rodrigo Constantino: o besteirol é inevitável.

      Vai ver que o Joseph Stiglitz mudou-se para o nosso continente, já até incorporou o termo ao seu vocabulário:

      “We’ve gone from a neoliberal euphoria that ‘markets work well almost all the time’ and all we need to do is keep governments on course, to ‘markets don’t work’ and the debate is now about how we get governments to function in ways that can alleviate this”. ¹

      “We’ve given a third of a century to this failed neoliberal ideology. We ought to be striving to look for these alternatives”. ²

      Fontes:

      ¹ Nobel Prize-winning economist Stiglitz tells us why ‘neoliberalism is dead’

      Aug. 19, 2016, 7:00 AM

      http://uk.businessinsider.com/joseph-stiglitz-says-neoliberalism-is-dead-2016-8

      ² “An Utter Failure”: Joseph Stiglitz on the Euro and Europe’s Uncertain Future
       
      The Nobel Prize–winning economist discusses Brexit, globalization, and the perils of austerity.

      By Jeet Heer
      August 18, 2016
      https://newrepublic.com/article/136124/an-utter-failure-joseph-stiglitz-euro-europes-uncertain-future

      Outro que parece ter mudado para cá foi Paul Krugman . Será que eles previam maré ruim com a chegada do Tump?

      Krugman: We need to rein markets and neoliberalism

      15/ 09/ 2016

      “Neoliberalism can mean many things, but if it means letting markets reign without restrains is always the answer then I’m also against neoliberalism”.

      Fonte: http://www.amna.gr/english/article/15098/Krugman:-We-need-to-rein-markets-and-neoliberalism

       

        1. Você fez referência explícita ao desuso do TERMO neoliberalismo:

          “há muito o termo [neoliberalismo] já se encontra em desuso”.

          Não falou do desuso da prática do neoliberalismo propriamente dito. Apesar da euforia com esta prática ser passado, ela é ainda aplicada, com menos euforia no presente, em larga escala por governantes e impostas a demais decisores da área econômica. Numa das matérias que linkei, há uma foto de ilustração com Joseph Stiglitz e Christine Lagarde e a seguinte nota:

          “Joseph Stiglitz with Christine Lagarde, the International Monetary Fund managing director. Lagarde is not one of those within the IMF questioning neoliberalism”.

          Noutras palavras, o FMI permanece hegemônico em torno do neoliberalismo, ou ela não seria Diretora-Gerente.

          Os neoliberais nunca se assumem como tais, sempre procuram passar a imagem, de que suas políticas são determinações racionais e únicas da “ciência” econômica, que apresentam como modelos de rigor matemático e precisão de fazer inveja a boa engenharia. “There Is No Alternative”, na frase clássica lançada por Margareth “TINA” Thatcher.

          O neoliberalismo está moribundo, mas ainda não está morto de morte matada. Em todos os cantos neoliberais tentam pajelanças e lambanças para manter o defunto sob aparelhos e aparatos, sobretudo dos últimos, os aparatos de repressão aos movimentos populares de protesto social.

          Por aqui a novidade é a PEC AI-5, que quer engessar a política fiscal por uma geração, através de medida contrabandeada para a constituição. Não é a primeira vez que se tenta engessar a economia ─ que é política ou não é economia ─ com medidas constitucionais. A constituição é um intrumento adequado para preservação de intituições permanentes, ou que se deseja preservar, não pode impor normas de interesse passageiro ou conjuntural, como são os instrumentos de políticas econômicas. O caso clássico de congelamento da política econômica, através de imposição constitucional, foi a da paridade Peso/Dólar no neoliberalismo portenho, que não faz muito tempo e afligiu os nossos vizinhos. Deu no que deu: uma hecatombe econômica.

    2. Sobre gastar mais do que arrecada

      Só se gasta mais do que se arrecada porque: i) se está gastando muito; ii) se está arrecadando pouco.

      Sintomas de que se está gastando muito: a) economia em pleno emprego e não com 14% de desemprego e com 34% de capacidade ociosa na indústria, b) aceleração da inflação e não perspectiva de queda de 10% ano passado para 6,5% esse ano. Não parece ser o caso.

      A visão neoliberal prega corte de gastos nessa situação porque não consegue admitir a possibilidade de a economia estar com capacidade ociosa indesejada. Falo neoliberal em termos pejorativos mesmo, porque é uma visão econômica míope da economia que não consegue perceber o óbvio: não é possível todo mundo economizar ao mesmo tempo!!

      1. Redução da arrecadação, apesar do aumento da carga triburária

        A arrecadação capitalista foi reduzida sob o neoliberalismo, até mesmo em países nos quais houve aumento da carga tributária:

        “Por um período de mais de cem anos, os sectores do serviço público e da infra-estrutura social foram reconhecidos em toda parte como o necessário suporte, amortecimento e superação de crises do processo do mercado. Nas últimas duas décadas, porém, impôs-se no mundo inteiro uma política que, exactamente às avessas, resulta na privatização de todos os recursos administrados pelo Estado e dos serviços públicos. De modo algum essa política de privatização é defendida apenas por partidos e governos explicitamente neoliberais; há muito ela prepondera em todos os partidos. Isso indica que não se trata aqui só de ideologia, mas de um problema de crise real. Seguramente, desempenha um papel nisso o facto de a arrecadação pública de impostos retroceder com rapidez por conta da globalização do capital. Os Estados, as Províncias e as comunas super-endividadas em todo o mundo tornaram-se factores de crise económica, ao invés de poderem ser activos como factores de superação da crise. Uma vez delapidadas as “pratas” dos sistemas socialmente administrados, as “mãos públicas” acabam por assemelhar-se fatalmente às massas de vítimas da velhice indigente, que nas regiões críticas do globo vendem nos mercados de segunda mão a mobília e até a roupa para poderem sobreviver. Porém o problema reside ainda mais no fundo. No âmago, trata-se de uma crise do próprio capital, que, sob as condições da terceira revolução industrial, esbarra nos limites absolutos do processo real de valorização. Embora ele deva expandir-se eternamente, pela sua própria lógica, ele encontra cada vez menos condições para tal, nas suas próprias bases. Daí resulta um duplo acto de desespero, uma fuga para a frente: por um lado, surge uma pressão assustadora para ocupar ainda os últimos recursos gratuitos da natureza, por fazer até mesmo da “natureza interna” do ser humano, da sua alma, da sua sexualidade, do seu sono o terreno directo da valorização do capital e, com isso, da propriedade privada. Por outro, as infraestruturas públicas de propriedade do Estado devem ser geridas, também, por sectores do capitalismo privado.” – Roberto Kurz, A Privatização do Mundo

        O endividamento público decorre da redução da arrecadação, não em razão do aumento dos gastos. Com o desmantelamento do estado de bem-estar social, os gastos foram reduzidos e mesmo assim o endividamento público em todos os países do capitalismo central cresceu.

        1. Aumentar a carga tributária não garante aumentar a arrecadação

          Se a carga tributária for alta, o empresário vai diminuir os investimentos, vai faturar menos e por conseguinte pagar menos imposto. O montante arrecadado, então, será menor, ainda que a alíquota seja maior.

          1. “Se a carga tributária for

            “Se a carga tributária for alta, o empresário vai diminuir os investimentos, vai faturar menos e por conseguinte pagar menos imposto.”

            Se a economia estiver em pleno emprego… Com a economia debilitada você tributa recursos parados e os investe.

      2. Capacidade ociosa sempre tem, mas…

        Sempre há uma sobra de mão-de-obra capaz de produzir. Mas é preciso produzir alguma coisa que alguém queira consumir. A grande crise de 1930, a maior até hoje, aconteceu devido à insistência de manter a economia com aquecimento máximo mesmo bem depois da demanda já haver desaquecido. Apenas em 1952 o número de automóveis produzido nos EUA igualou o número de 1929.

        1. Produzir coisa que alguém queira consumir…

          No Brasil de 2016, cheio de pobres e desempregados, me parece ser bem fácil escolher algo que as pessoas queiram consumir…

          1. O problema é que…

            O problema é que aquilo que as pessoas querem consumir, pode ser que não haja capacidade produzir, e essa capacidade só exista para o que as pessoas não desejam consumir.

            Sempre que um problema sério parecer que tem uma solução simples, pode ter certeza de que é uma falsa impressão.

          2. Diagnóstico perfeito do problema!!

            “O problema é que aquilo que as pessoas querem consumir, pode ser que não haja capacidade produzir, e essa capacidade só exista para o que as pessoas não desejam consumir.”

            Exatamente!! Daí você tributa as pessoas que não desejam consumir e gasta (preferencialmente ajudando aqueles que querem consumir e não tem capacidade) sem nenhum prejuízo para o sistema econômico em termos de inflação… Chama-se política anticíclica e já existe na literatura econômica há pelo menos 70 anos…

             

          3. Pq a capacidade produtiva seria incompatível com o consumo?

            Se a produção for canalizada para a satisfação das necessidades sociais, e não para a obtenção de lucro privado, a capacidade produtiva terá necessariamente que guardar estreita relação com as necessidades sociais. A canalização da produção para a satisfação das necessidades sociais pressupõe o fim das classes sociais e consequentemente o fim do antagonismo entre essas classes sociais.

            Em Miséria da Filosofia, Marx escreveu:

            “El uso de los productos se determina por las condiciones sociales en que se encuentran los consumidores, y estas condiciones reposan en el antagonismo de clases.

            El algodón, la patata y el aguardiente son artículos del uso más común. La patata ha dado origen a la escrófula; el algodón ha desplazado en gran parte el lino y la lana, a pesar de que la lana y el lino son, en muchos casos, mas útiles aunque sólo sea desde el punto de vista de la higiene; por último, el aguardiente se ha impuesto a la cerveza y al vino, pese a que el aguardiente, empleado en calidad de producto alimenticio, este considerado generalmente como un veneno. Durante todo un siglo, los gobiernos lucharon en vano contra este opio europeo; la economía prevaleció dictando sus leyes al consumo.

            ¿Por qué, pues, el algodón, las patatas y el aguardiente son la piedra angular de la sociedad burguesa? Porque su producción requiere la menor cantidad de trabajo y, por consiguiente, tienen el más bajo precio. ¿Por qué el mínimo de precio determina el máximo de consumo? ¿Será tal vez a causa de la utilidad absoluta de estos artículos, de su utilidad intrínseca, de su utilidad en el sentido de que satisfacen de la manera mejor las necesidades del obrero como hombre y no del hombre como obrero? No, es porque, en una sociedad basada en la miseria, los productos más miserables tienen la prerrogativa fatal de servir para el consumo de las grandes masas.

            Decir que, puesto que las cosas que menos cuestan son las de mayor consumo, deben ser las de mayor utilidad, equivale a decir que el uso tan extendido del aguardiente, determinado por su bajo coste de producción, es la prueba mas concluyente de su utilidad; equivale a decir al proletario que las patatas son para él más saludables que la carne; equivale a aceptar el estado de cosas vigente; equivale, en fin, a hacer con el señor Proudhon la apología de una sociedad sin comprenderla.

            En una sociedad futura, donde habrá cesado el antagonismo de clases y donde no habrá clases, el consumo no será ya determinado por el mínimo de tiempo necesario para la producción; al contrario, la cantidad de tiempo que ha de consagrarse a la producción de los diferentes objetos será, determinada por el grado de utilidad social de cada uno de ellos.”

        2. Demanda Reprimida

          Certamente havia demanda pelos carros produzidos em 1929, só que, por falta de emprego ou por insuficiência dos salários, essa demanda ficou reprimida. Mas é claro que existem as crises de superprodução, as quais são agravadas pelo subconsumismo da classe trabalhadora.

          Se a oferta supera a demanda, você, Pedro, é favorável à redução da jornada de trabalho dos empregados, sem prejuízo dos salários, ou é a favor do patrão desempregar os trabalhadores em excesso?

          1. Proposta irrealizável

            A redução da jornada de trabalho sem redução de salários é um contrassenso. O patrão está faturando menos, então não pode sustentar a folha de pagamento. Só é possível a redução de jornada com a correspondente redução dos salários. Mas isso todos têmque concordar, do contrário a solução será a demissão mesmo.

          2. Mas o problema não é técnico, é político

            A proposta é pereitamente exequível do ponto de vista tecnológico, o problema é que os meios de produção são voltados para a obtenção de lucro e não para a satisfação das necessidades dos trabalhadores. Desse poto de vista a proposta é inexequível. O nível tecnológico é suficiente para dar tempo livre e dignidade para toda a humanidade.

            A redução da jornada de trabalho sem o comprometimento do padrão de vida é demonstrada com clareza meridiana nos trechos abaixo transcritos:

            “O lazer é essencial à civilização, e em outros tempos o lazer para uns poucos somente era possível pelo trabalho de muitos. Mas seu trabalho era valioso não porque o trabalho seja bom, mas porque o lazer é bom. E com a técnica moderna seria possível distribuir o lazer de forma justa, sem prejuízos à civilização. A técnica moderna tornou possível diminuir enormemente a quantidade de trabalho necessário para assegurar as necessidades vitais para todos. Isto se tornou óbvio durante a Primeira Guerra Mundial. Naquele tempo todos os homens nas forças armadas, e todos os homens e mulheres envolvidos na produção de munição, e todos os homens e mulheres envolvidos com espionagem, propaganda de guerra ou escritórios governamentais relacionados com a guerra foram tirados de ocupações produtivas. Apesar disto, o nível geral de bem-estar entre assalariados não-qualificados do lado dos aliados era mais alto do que antes ou mesmo depois da Guerra. O significado deste fato era escondido pelas finanças: empréstimos fizeram parecer que o futuro estava nutrindo o presente. Mas isto, é claro, seria impossível; um homem não pode comer um pão que não existe. A guerra mostrou conclusivamente que, através da organização científica da produção, é possível manter as populações modernas em razoável conforto com uma pequena parte da capacidade de trabalho do mundo moderno. Se, ao final da guerra, a organização científica que foi criada para liberar homens para as guerras e produção de munição fosse preservada, e as jornada de trabalho fosse reduzida para quatro horas, tudo teria ficado bem. Aos invés disto, o antigo caos foi restaurado, aqueles cujo trabalho era necessário voltaram às longas horas de trabalho, e o restante foi deixado à míngua no desemprego. Por quê? Porque o trabalho é um dever, e um homem não deveria receber salários proporcionalmente ao que produz, mas proporcionalmente à virtude demonstrada em seu esforço.  Esta é a moral do Estado escravista, aplicada em circunstâncias totalmente diferentes daqueles na qual surgiu. Não é surpresa que o resultado tenha sido desastroso. Façamos uma ilustração. Suponha-se que em um dado momento um certo número de pessoas esteja envolvido na produção de alfinetes. Elas fazem tantos alfinetes quanto o mundo precisa, trabalhando (digamos) oito horas por dia. Alguém faz uma invenção através da qual o mesmo número de pessoas pode fazer duas vezes o número original de alfinetes. Mas o mundo não precisa de mais alfinetes, dificilmente seriam comprados mais por um preço menor. Em um mundo sensato, todos os envolvidos na fabricação de alfinetes passariam a trabalhar quatro horas ao invés de oito, e tudo continuaria como antes. Mas no mundo real, isto seria considerado desmoralizante. Os homens ainda trabalham oito horas, há excesso de alfinetes, alguns empregadores quebram, e metade dos homens previamente ocupados em fabricar alfinetes são despedidos. Há, ao final, exatamente a mesma quantidade de lazer do outro plano, mas a metado dos homens fica totalmente ociosa enquanto a outra metade ainda está sobrecarregada. Deste modo, é assegurado que o ócio inevitável deva causar miséria no mundo inteiro ao invés de ser uma fonte universal de felicidade. Pode ser imaginado algo mais insano?” – Bertrand Russell, Elogio ao Ócio

             

            “É interessante constatar a que grau a atitude dos homens face ao trabalho se modificou ao longo do tempo. Quando Adão foi punido, escutou: “Ganharás o teu pão com o suor do teu rosto”. O trabalho foi-lhe imposto como castigo e foi por isso considerado como uma maldição. O castigo do Adão moderno é o de ser desocupado e privado do seu trabalho. Aquele que tem um trabalho suscita a inveja. Se considerarmos o progresso económico da humanidade deste ponto de vista lá se acaba essa bela altivez tanto dá a impressão de termos, ao longo dos séculos, evoluído.

            O desemprego é particularmente cruel em período de crise económica. Muitas pessoas têm por isso tendência a crer que uma vez ultrapassadas as crises, o desemprego tenderá também a desaparecer. Isto parece-me, no entanto, incorrecto. Mesmo em períodos de prosperidade o desemprego é significativo. É por isso que penso que podemos, sem riscos de errarmos, abstrair-nos do fenómeno das flutuações quando reflectimos nas causas do desemprego.

            Parece-me que a maneira mais convincente de elucidarmos a questão será recorrer a um modelo simplificado ao extremo. Imaginemos uma ilha isolada do resto do mundo, na qual a terra possui um rendimento suficiente para nutrir os seus 300 habitantes. Supondo que existem 100 campos nessa ilha e que 100 habitantes possuem um campo cada um, com a condição de que todos os cultivem produz-se mesmo à justa para sustentar os trezentos habitantes.

            Para que todo este sistema funcione de maneira satisfatória aqui está o que deve passar-se: cada camponês cultiva o seu campo com dois empregados, a quem paga para o ajudarem. Com o seu salário estes compram aquilo de que têm necessidade para viver. Deste modo, tudo está em ordem.

            É então que um dos camponeses inventa uma ferramenta de trabalho particularmente eficaz que lhe permite obter do seu campo o rendimento habitual com a ajuda de um só empregado. Resultado: temos um desempregado e um camponês para o qual o lucro é mais importante que aqueles seus colegas, porque este último pode vender os seus produtos mais baratos dado que tem que desembolsar menos em salários.

            A satisfação é de curta duração. Ele faz, de facto, aos outros camponeses uma concorrência desmesurada. Estes vêem-se, deste modo, constrangidos a utilizar por seu turno a nova ferramenta que ele inventou, o que lhes permitirá também obter doravante com um só empregado o mesmo rendimento do costume.

            Mas algo de grave se passou entretanto. Cem homens são forçados ao desemprego e os camponeses não mais chegam a desfazer-se de um terço da sua colheita, tanto mais que não existe mercado exterior. Produzir do mesmo modo de futuro não tem mais sentido algum. Não existe “procura” correspondente àquilo de que cem homens têm necessidade para viver. Pode-se, entretanto, produzir quanto muito um pouco mais que dois terços da quantidade normal a fim de evitar que os 100 desempregados morram de fome e se revoltem.

            Eis que vejo os meus sensatos leitores torcerem o nariz de desdém e dizerem que nada percebo de economia. Esses cem desempregados, pensam, acabarão na realidade por descobrir na sua miséria um meio de fazer frutificar o seu trabalho utilmente e de receber em troca dinheiro e pão. Eles poderão, por exemplo, tornar-se cabeleireiros, actores, enfermeiros, etc., e dessa forma suavizar a vida da comunidade. Eis o que é perfeitamente verdadeiro. Mas que este processo não logra, contudo, compensar o facto de que a necessidade de mão-de-obra baixou em virtude do aperfeiçoamento do processo, eu o vejo revelar-se na nossa economia de verdade e não neste exemplo um pouco simplista que escolhi para clarificar a ideia.

            Voltemos ainda ao nosso exemplo! Os nossos trezentos insulares quebraram a cabeça para encontrar uma forma de se desenvencilharem do desemprego de modo a recriarem o seu paraíso perdido. Para começar, é evidente que um só camponês não pode contratar duas pessoas e dividir o tempo de trabalho por dois. Isto porque lhe seria necessário gastar tanto dinheiro com os salários destes dois empregados que se tornava impossível a ele sustentar a concorrência dos outros camponeses.

            De facto, sozinho um camponês não pode resolver o problema! Mas, todos juntos poderiam consegui-lo, e eis o que eles determinaram: cada um deles contrataria duas pessoas a meio tempo, mas com salário completo. A bem dizer, não era indispensável exigir um salário normal, porque se as pessoas passassem a receber um salário reduzido a metade os preços dos cereais teriam forçosamente que baixar, eles também, para metade, e seria oportuno evitar este choque no mundo dos negócios..” Einstein, o Perigo Fascista e o Desemprego

             

            “Há um grande facto, característico deste nosso século XIX, um facto que nenhum partido ousa negar. Por um lado, despontaram para a vida forças industriais e científicas, de que nenhuma época da história humana anterior alguma vez tinha suspeitado. Por outro lado, existem sintomas de decadência que ultrapassam de longe os horrores registados nos últimos tempos do Império Romano.

            Nos nossos dias, tudo parece prenhe do seu contrário. Observamos que maquinaria dotada do maravilhoso poder de encurtar e de fazer frutificar o trabalho humano o leva à fome e a um excesso de trabalho. As novas fontes de riqueza transformam-se, por estranho e misterioso encantamento, em fontes de carência. Os triunfos da arte parecem ser comprados à custa da perda do carácter. Ao mesmo ritmo que a humanidade domina a natureza, o homem parece tornar-se escravo de outros homens ou da sua própria infâmia. Mesmo a luz pura da ciência parece incapaz de brilhar a não ser sobre o fundo escuro da ignorância. Todo o nosso engenho e progresso parecem resultar na dotação das forças materiais com vida intelectual e na redução embrutecedora da vida humana a uma força material”. Karl Marx

             

            “Dir-se-á talvez: Seis horas de trabalho por dia não são suficientes para as necessidades do consumo público, e a Utopia deve ser um país muito miserável.

            Mas não é este realmente o caso. Ao contrário, as seis horas de trabalho produzem abundantemente para todas as necessidades e comodidades da vida, e ainda um supérfluo bem superior às exigências do consumo.

            Compreendereis facilmente se refletirdes no grande número de pessoas ociosas existentes nas outras nações. Antes de tudo, são essas quase todas as mulheres, que em si já constituem a metade da população, e a maioria dos homens, ali onde as mulheres trabalham. Em seguida, esta imensa multidão de padres e religiosos vagabundos. Somai ainda todos esses ricos proprietários vulgarmente chamados nobres e senhores; acrescentai também as nuvens de lacaios e outro tanto de malandros de libré; e o dilúvio de mendigos robustos e válidos que escondem sua preguiça sob o disfarce de enfermidades. E achareis, em resumo, que o número dos que, por seu trabalho, provêm ao gênero humano de todas as necessidades é bem menor do que imaginais.

            Considerai também como são poucos aqueles que a trabalhar estão empregados em coisas verdadeiramente necessárias. Porque, neste século de dinheiro, onde o dinheiro é o deus e a medida universal, grande é o número das artes frívolas e vãs que se exercem unicamente a serviço do luxo e do desregramento. Mas se a massa atual dos trabalhadores estivesse repartida pelas diversas profissões úteis, de maneira a produzir mesmo com abundância tudo o que exige o consumo, o preço da mão de obra baixaria a um ponto que o operário não poderia mais viver de seu salário.” – Thomas More, Utopia

            “Uma nação que procura desenvolver-se espiritualmente com maior liberdade não pode continuar vítima das suas necessidades materiais, escrava do seu corpo. Acima de tudo, precisa de tempo livre para criar e usufruir da cultura. Os progressos da organização do trabalho facultam esse tempo. Um simples trabalhador na indústria do algodão produz agora frequentemente, com a ajuda de novas forças motrizes e das máquinas aperfeiçoadas, tanto como antes produziam 100 ou mesmo 250-350 trabalhadores. Iguais realizações há, embora não na mesma escala, em todos os ramos da produção, como conseqüência necessária do fato de as forças da natureza se verem progressivamente forçadas a colaborar com o trabalho humano. Se a quantidade de tempo e de esforço humano, que em época anterior se necessitava para satisfazer determinada soma de necessidades materiais, foi reduzida pela metade, então o tempo disponível para criação e usufruto da cultura, sem qualquer redução no bem-estar material aumentou em igual medida. Mas a divisão das vantagens que conquistamos ao velho Cronos no seu próprio campo é ainda determinada pelo jogo dos dados do acaso cego e injusto. Calculou-se já que na França, no presente nível de produção, a média de um trabalho de cinco horas diárias por cada pessoa capaz de trabalhar seria suficiente para obviar todas as necessidades materiais da sociedade {…} apesar de a economia de tempo por meio do maquinário, a duração do trabalho servil nas fábricas aumentou para grande parte da população.”-Wilhelm Schultz

            “Aquilo que o povo, logrado na sua ingenuidade pelos moralistas, nunca ousou, ousou-o um governo aristocrático. Desprezando as elevadas considerações morais e industriais dos economistas, que, como as aves de mau agouro, cacarejavam que diminuir uma hora ao trabalho das fábricas era decretar a ruína da indústria inglesa, o governo de Inglaterra proibiu por lei, estritamente observada, trabalhar mais de dez horas por dia; e, depois disso tal como antes, a Inglaterra continua a ser a primeira nação industrial do mundo.
            Eis a grande experiência inglesa, eis a experiência de alguns capitalistas inteligentes, ela demonstra irrefutavelmente que, para reforçar a produtividade humana, tem de se reduzir as horas de trabalho e multiplicar os dias de pagamento e os feriados, e o povo francês não está convencido. Mas se uma miserável redução de duas horas aumentou em dez anos a produção inglesa em cerca de um terço, que ritmo vertiginoso imprimiria à produção francesa uma redução geral de três horas no dia de trabalho? Os operários não conseguem compreender que, cansando-se excessivamente, esgotam as suas forças antes da idade de se tornarem incapazes para qualquer trabalho; que absorvidos, embrutecidos por um único vício, já não são homens, mas sim restos de homens; que matam neles todas as belas faculdades para só deixarem de pé, e luxuriante, a loucura furiosa do trabalho.” – Paul Lafargue, Direito á Preguiça

            Com o nível tão avançado das forças produtivas, o sobretrabalho deixou de ser a solução e passou a ser o problema, sendo ele a causa da superprodução e de todas as suas consequencias inevitáveisl.

          3. Além de assumir que todo o

            Além de assumir que todo o excedente econômico é lucro você ainda assume que no mercado os fatores de produção são remunerados de acordo com sua produtividade? Realmente essa me parece uma visão muito torta do ambiente econômico. 

            http://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/15/internacional/1436969584_789417.html

            http://epocanegocios.globo.com/Inspiracao/Vida/noticia/2015/10/jornada-de-trabalho-reduzida-pode-aumentar-produtividade.html

             

  5. Falso dilema

    Afirmar que ou há capitalismo ou a sociedade se torna caçadora e coletora equivale a estabelcer um falso dilema. Eu conheço caçadores e coletores cujos produtos são destinados ao mercado. É perfeitamente possível a existência de uma economia industrial sem capitalismo.

    Pedro, porque você acha que se não houver capitalismo temosnecessariamente que retornarmos a uma economia primária?

    Você acha que meios de produção só podem existir numa sociedade burgesa-capitalista, ou seja, os meios de produção tem necessariamente de tomar a forma de capital?

    1. Possível é, mas…

      Não, a alternativa ao capitalismo não é necessariamente uma economia primária. Temos o exemplo da ex-URSS, uma economia comunista e fortemente industrial. Só que fracassou, apesar de toda a tecnologia e capital humano de que dispunham.

      Uma fórmula que deu errado deve ser repetida até que dê certo?

      1. O fracasso decorreu do atraso das forças produtivas russas

        O triunfo do socialismo pressupõe o elevado grau de avanço das forças produtivas. O fracasso do socialismo no Leste Europeu decorreu do atraso das forças produtivas russas:

        “Esta ‘alienação’ – para que a nossa posição seja compreensível para os filósofos – só pode ser abolida mediante duas condições práticas. Para que ela se transforme num poder ‘insuportável’, quer dizer, num poder contra o qual se faça uma revolução, é necessário que tenha dado origem a uma massa de homens totalmente ‘privada de propriedade’, que se encontre simultaneamente em contradição com um mundo de riqueza e de cultura com existência real; ambas as coisas pressupõem um grande aumento das forças produtivas, isto é, um estádio elevado de desenvolvimento. Por outro lado, este desenvolvimento das forças produtivas (que implica já que a existência empírica atual dos homens decorra no âmbito da história mundial e não no da vida loca]) é uma condição prática prévia absolutamente indispensável, pois, sem ele, apenas se generalizará a penúria e, com a pobreza, recomeçará paralelamente a luta pelo indispensável e cair-se-á fatalmente na imundície anterior. Ele constitui igualmente uma condição prática sine qua non, pois é unicamente através desse desenvolvimento universal das forças produtivas que é possível estabelecer um intercâmbio universal entre os homens e porque, deste modo, o fenômeno da massa ‘privada de propriedade’ pode existir simultaneamente em todos os países (concorrência universal), tornando cada um deles dependente das perturbações dos restantes e fazendo com que finalmente os homens empiricamente universais vivam de fato a história mundial em vez de serem indivíduos vivendo numa esfera exclusivamente local.

        Sem isto: 1.) o comunismo só poderia existir como fenômeno local; 2.) as forças das relações humanas não poderiam desenvolver-se como forças universais e, portanto, insuportáveis continuando a ser simples ‘circunstâncias’ motivadas por superstições locais; 3°) qualquer ampliação das trocas aboliria o comunismo local. O comunismo só é empiricamente possível como ação ‘rápida’ e simultânea dos povos dominantes, o que pressupõe o desenvolvimento universal das forças produtivas e as trocas mundiais que lhe estejam estreitamente ligadas.” – Karl Marx

        O nível das forças produtivas da Rússia não foi suficiente para evitar a restauração da imundície anterior à Revolução Russa. Além disso, as potencias ocidentais em peso se uniram para agredir e esmagar a Revolução Proletária.

        Os países centrais do capitalismo triunfam mas esse triunfo pressupõe a pilhagem dos países pobres pelos países ricos e, mais recentemente, o capitalismo se zumbificou, só conseguindo sobreviver às custas da socialização dos seus prejuízos, como ocorreu de 2008 em diante, através da corrupção, a fim de se apropriar dos recursos públicos, da obsolescência programada, da falsificação de produtos (como adicionar formol ao leite), através das bolhas. O triunfo do capitalismo é o triunfo de um morto-vivo.

        1. A Rússia czarista era avançada tecnologicamente

          A Rússia do início do século 20 era considerado um país atrasado, mas vamos e venhamos, produzia veículos, navios e submarinos a ponto de ser uma potência militar. Tinha analfabetos, mas também cientistas e literatos de peso. Não era exatamente um país de terceiro mundo. As potências ocidentais se uniram em peso para esmagar a revolução proletária, mas não conseguiram. E após a 2a guerrra mundial, a URSS se tornou uma superpotência. Com tudo isso a seu favor, a Rússia malogrou e hoje é apenas um país “emergente”, como nós. Não é possível culpar outra causa desse malogro além da ineficácia inerente ao regime comunista. Um malogro que não foi só da Rússia: 70 anos atrás, Portugal e Espanha eram muito mais pobres e atrasados que os países do leste europeu, como a Romênia e a Hungria. Hoje, imigrantes do leste europeu lavam as privadas de portugueses e espanhóies, ombro a ombro com imigrantes do terceiro mundo. Tudo isso graças ao comunismo.

          A tese de que o sucesso dos países centrais do capitalismo se dá à custa da pilhagem dos países pobres é uma generalização apressada do fenômeno do colonialismo, e examinada de perto, não se sustenta. Os países que mais exploraram suas colônias no pasado, Portugal e Espanha, terminaram pobres e só recentemente se reergueram. Vários países que jamais tiveram uma colônia, como Áustria, Suécia e Suíça, são tão ou mais ricos do que os países que no passado foram potências colonialistas. Quando houve a descolonização na segunda metade do século 20, os países que perderam suas colônias não empobreceram, e suas ex-colônias não enriqueceram. Portugal, o último país colonialista, só melhorou de vida após perder suas últimas colônias.

          Supor que a crise de 2008 matou o capitalismo é um imenso wishful thinking. Os chineses não concordariam.

          1. “Supor que a crise de 2008

            “Supor que a crise de 2008 matou o capitalismo é um imenso wishful thinking.”

            Não faço a mínima ideia de onde você leu que a crise de 2008 matou o capitalismo… Ninguém nunca falou isso e, que eu saiba, pelo menos na cidade onde eu moro, em 2016, o capitalismo está muito bem…

            Mesmo assim, se você acha que é possível uma economia aumentar o excedente econômico com todo mundo economizando  (isso sim é wishful thinking) pode escrever sua tese e mandar direto para a academia sueca de ciência que é nobel garantido! Até eu voto a seu favor… 

          2. A Rússia era avançada tecnologicamente falando?

            A Rússia tinha uma tecnologia avançada mas quando comparada aos países pioneiros da revolução industrial, ela era tão avançada tecnologicamente quanto o Eike Batista é rico comparado ao Bill Gates.

  6. Revolução Ind 4.0 e tempo livre ou desemprego

    Segundo Karl Marx:

    “Desde que o trabalho, na sua forma imediata, deixou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem que deixar, de ser a sua medida, e o valor de troca deixa também de ser a medida do valor de uso. O trabalho excedente da massa deixou de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não trabalho de poucos deixou de ser a condição do desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano. Por essa razão se desmorona a produção baseada no valor de troca, e o processo de produção material imediato perde também a forma da miséria e do antagonismo. Ocorre então o livre desenvolvimento da individualidade. (…) O capital é uma contradição em processo, pelo fato de que tende a reduzir o tempo de trabalho ao mínimo, enquanto, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. (…) As forças produtivas e as relações – simples faces diferentes do desenvolvimento do individuo social – aparecem ao capital unicamente como meios para produzir a partir de sua base limitada. Mas, de fato, são estas condições materiais que fazem explodir esta base.”

    Essa citação de Marx do teu último email é do chamado “Fragmentos sobre as máquinas” dos Grundrisse. Ele é citado naquele artigo (Reality check: Are We Living In An Immaterial World?) que me chamou atenção para os tais superlucros. Abaixo, traduzi essa parte, que me parece a principal desse artigo:

    Fim do valor enquanto medida?

    Como mencionado anteriormente, uma das características distintivas do pós-obreirismo [derivado de um ramo do marxismo italiano chamado operaismo] é a rejeição da assim chamada “lei do valor” de Marx. George Caffentzis nos lembra que o próprio Marx raramente falava de uma tal lei, mas que também não há dúvida sobre sua opinião de que, sob o domínio do capital, a quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário para produzir mercadorias em última instância determina seu valor [20]. Rompendo com Marx a este respeito, os pós-obreiristas se inspiram em uma passagem dos Grundrisse conhecida como “Fragmento sobre as Máquinas”. Este prevê uma situação, alinhada com a tentativa perene do capital de se livrar da sua dependência do trabalho, onde o conhecimento se tornou o fluido vital do capital fixo, e o input direto de trabalho na produção é meramente incidental. Nestas circunstâncias, Marx argumenta, o capital efetivamente destrói a base que o sustenta, pois “Tão logo o trabalho na sua forma direta deixou de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser sua medida e, portanto, o valor de troca [deve deixar de ser a medida] do valor de uso” [21].

    Negri, entre outros, tem insistido há muitos anos, e de várias maneiras, que o capital hoje atingiu esse estágio. Conclui que nada além da pura dominação mantém o domínio do capital: “a lógica do capital não mais funciona para o desenvolvimento, ela é simplesmente comando para sua própria reprodução” [22]. Na verdade, uma série de comentaristas sociais têm evocado o “Fragmento sobre as Máquinas” nos últimos tempos – aparte tudo o mais, tem mantido uma certa popularidade entre aqueles (como o reacionário futurologista Jeremy Rifkin) que nos dizem que vivemos em uma sociedade cada vez mais livre do trabalho. É uma pena, então, que, destes escritores, pouquíssimos seguiram a lógica do argumento de Marx nos Grundrisse até suas conclusões. Pois enquanto ele indica que o capital, de fato, busca “reduzir o tempo de trabalho a um mínimo”, Marx também nos lembra que o próprio capital não é nada mais do que o tempo de trabalho acumulado (trabalho abstrato enquanto valor) [23]. Em outras palavras, o capital é obrigado pela sua própria natureza, e durante o tempo que estamos presos a ele, a pôr o “tempo de trabalho … como única medida e fonte de riqueza”.

    Em seu esforço para escapar do trabalho, o capital tenta uma série de coisas que, cada uma à sua maneira, joga lenha aos argumentos que fazem o tempo de trabalho parecer como irrelevante como a medida do desenvolvimento do capital. Considerada com mais cuidado, no entanto, cada uma dessas coisas pode ser vista de um modo um tanto diferente. Para começar, o capital tenta externalizar ao máximo seus custos laborais: para dar um exemplo banal (embora não tão banal se você for um ex-empregado do banco), incentivando o serviço bancário online e máquinas de autoatendimento e desativando o atendimento de balcão. Quanto ao regime de trabalho de nós mesmos, muitos de nós levam para casa cada vez mais trabalho (até mesmo para o trem, ou o carro). Parecemos ter de oferecer uma prontidão cada vez maior, sempre acessíveis através da internet ou telefone. Somadas, estratégias desse tipo (que, para acrescentar confusão a tudo isso, pode muito bem cruzar com nossas próprias aspirações individuais por mais flexibilidade) ajudam em grande medida a explicar esse apagamento da separação entre os componentes “trabalho” e “não trabalho” em nosso cotidiano. Por outro lado, elas mostram essa separação sob uma perpectiva diferente da do colapso do tempo de trabalho como medida do valor, uma perspectiva em que – precisamente porque a quantidade de tempo de trabalho é crucial para a existência do capital – o máximo de trabalho possível passa a ser executado na sua forma não paga.

    Em segundo lugar, na tentativa de diminuir os custos laborais dentro de organizações individuais, o capital também reformula o processo pelo qual os lucros são distribuídos em uma escala setorial e global. Em uma série de ensaios nos últimos 15 anos, George Caffentzis delineou a idéia, primeiramente elaborada no terceiro volume de O Capital de Marx, de que as taxas médias de lucro sugam a mais-valia dos setores de trabalho intensivo para aqueles com um investimento maior em capital fixo:

    “Para que haja uma taxa média de lucro em todo o sistema capitalista, os ramos da indústria que empregam muito pouco trabalho, mas muita maquinaria devem ser capazes de ter o direito de reivindicar a reserva de valor que os ramos com low-tech e muito trabalho criam. Se não houvesse tais ramos ou tal direito, então a taxa média de lucro seria tão baixa nas industrias de alta tecnologia e pouco trabalho que todo o investimento pararia e o sistema chegaria ao fim. Consequentemente, “novos cercamentos” no campo devem acompanhar o aumento de “processos automáticos” na indústria, o computador requer o sweat shop, e a existência do ciborgue é baseada na escravo” [24].

    Neste exemplo, se não parece haver correlação imediata entre o valor de uma mercadoria individual e o lucro que ela retorna do mercado, a resposta pode bem ser que não há nenhuma: o quebra-cabeça só pode ser resolvido através da análise do setor como um todo, em uma extensão que vai muito além dos horizontes de trabalho imaterial. Aqui também, é uma questão de qual parâmetros escolhemos para emoldurar nossa investigação.

    Em terceiro lugar, e na sequência do acima, a divisão do trabalho em muitas organizações, indústrias e empresas atingiu o ponto em que é difícil – e provavelmente sem sentido – determinar a contribuição de um empregado individual para a massa de mercadorias que ele ajuda a produzir [25]. Novamente, isso pode favorecer a sensação de que o tempo de trabalho envolvido na produção de tais mercadorias (tangíveis ou não) é irrelevante para o valor que elas contém. Marx, por sua vez, argumentou que para tratar tudo isso, a questão central é de perspectiva:

    “Se considerarmos o trabalhador agregado, ou seja, se tomarmos em conjunto todos os membros que compõem a oficina, então vemos que a atividade combinada deles resulta materialmente num produto agregado que é ao mesmo tempo uma quantidade de bens. E aqui é totalmente indiferente se o trabalho de um operário em especial, que é meramente um membro desse trabalhador agregado, está a uma distância maior ou menor do trabahador manual real” [26].

    Notas

    20 Caffentzis, G. (2005) ‘Immeasurable Value?: An Essay on Marx’s Legacy’, The Commoner 10, Spring/Summer

    21 Marx, K. (1973) Grundrisse. Hardmondsworth: Penguin, p.705

    22 Negri, (1994), op. cit., 28

    23 Marx, op. cit., 706

    24 Caffentzis, G. (1997) ‘Why Machines Cannot Create Value or, Marx’s Theory of Machines’, in J. Davis, T. Hirschl & M. Stack (eds.) Cutting Edge: Technology, Information, Capitalism and Social Revolution. London: Verso

    25 Harvie, D. (2005) ‘All Labour is Productive and Unproductive’, The Commoner 10, Spring/Summer

    26 Marx, K. (1976) ‘Results of the Immediate Process of Production’, now in Capital Vol. I. Hardmondsworth: Penguin, quoted in H. Cleaver, H. Cleaver (2001) Reading Capital Politically. Second Edition. Antithesis”

    A Revolução 4.0 vai possibilitar mais tempo livre ainda sem prejuízo do padrão de vida, pelo contrário

    1. A classe parasita perdeu sua razão de existir

      Tanto Marx, na citação do comentário acima, quanto Bertrand Russell, no trecho que transcreveremos abaixo, chegam à conclusão que o sobretrabalho da maioria e o ócio de uma pequena parte perdeu sua razão de existir:

      “No passado havia uma pequena classe ociosa e uma grande classe trabalhadora. A classe ociosa desfrutava de vantagens para as quais não havia base em justiça social; isto necessariamente as fez opressivas, limitou sua simpatia, e levou à invenção de teorias para justificar seus privilégios. Isto fez diminuir enormemente a sua excelência, mas apesar disto elas contribuíram com quase tudo do que chamamos de civilização. Ela cultivou as artes e descobriu as ciências; escreveu os livros, inventou as filosofias, e refinou as relações sociais. Mesmo a libertação dos oprimidos foi geralmente iniciada de cima. Sem a classe ociosa, a humanidade nunca teria emergido da barbárie.

       O método da classe ociosa sem deveres, entretanto, gerou enormes desperdícios. Nenhum de seus membros tinha que aprender a ser trabalhador, e a classe como um todo não era excepcionalmente inteligente. A classe podia produzir um Darwin, mas a ele se opunham dezenas de milhares de proprietários rurais que nunca pensavam em nada mais inteligente do que caçar raposas e punir invasores de propriedades. No presente, espera-se que as universidades forneçam, de forma mais sistemática, o que a classe ociosa fornecia acidentalmente e como um subproduto. Isto é um grande avanço, mas tem certas desvantagens. A vida universitária é tão diferente da vida do mundo exterior que os homens que vivem no meio acadêmico tendem a ficar alheios às preocupações e problemas de homens e mulheres comuns; além disso, suas formas de se expressar são geralmente tais que roubam de suas opiniões a influência que elas deveriam ter no público em geral. Outra desvantagem é que nas universidades os estudos são organizados, e o homem que pensa sobre alguma pesquisa original provavelmente será desencorajado. As instituições acadêmicas, portanto, úteis como são, não são guardiãs adequadas para os interesses da civilização em um mundo onde todos fora de seus muros estão ocupados demais para objetivos não-utilitários.” Bertrand Russell – Elogio ao Ócio

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