Sanders, o voto jovem de 75 anos nos EUA, por Dorrit Harazim

Jornal GGN – No jornal O Globo, Dorrit Harazim analisa o início das prévias eleitorais nos Estados Unidos, que dura cinco meses e escolherá os candidatos para a sucessão de Barack Obama. Para ela, a campanha deste ano tem o candidato com o perfil mais radical para os padrões americanos, o senador democrata Bernie Sanders, que disputa contra Hillary Clinton nas prévias. 

Harazim diz que o inesperado Sanders, nascido no Brooklyn, em Nova York, é a cara da geração dos anos 60, e que seu “esdrúxulo” é que e Bernie acredita nas mesmas coisas dos tempos de juventude. A candidatura de Sanders depende do comparecimento dos jovens às urnas, “a faixa etária de comportamento eleitoral menos confiável”, diz Harazim.

Do O Globo

O voto jovem de 75 anos
 
Dorrit Harazim
 
O esdrúxulo em Sanders, ou Bernie, é que ele acredita nas mesmas coisas dos tempos de juventude
 
Começa amanhã nos Estados Unidos a complexa e, para quem não é americano, incompreensível temporada de múltiplas prévias eleitorais. Ela dura cinco meses e visa depurar o terreno para, ao final, desaguar nos candidatos à sucessão de Barack Obama nas eleições de novembro próximo.
 
Na eventualidade de o cenário vier a se revelar mais atípico do que já é, melhor não apostar em ninguém por enquanto. Cada um dos quatro mais bem colocados até agora — Donald Trump e Ted Cruz do lado republicano, Hillary Clinton e Bernie Sanders do lado democrata — tem pontos de vulnerabilidade agudos e podem sofrer implosões no percurso.

 
Apenas uma coisa é possível afirmar com absoluta certeza: a campanha presidencial de 2016 tem o candidato à Casa Branca de perfil mais radical para os padrões americanos e mais inesperado para os tempos atuais. Não, não se trata do astutíssimo reality showman/magnata Donald Trump, que calibra à perfeição seus rompantes via Twitter e retrata como ninguém o moderno desprezo pelo diálogo.
 
Fala-se aqui do senador Bernie Sanders, do Vermont, o candidato descartado de antemão por todos aqueles que não conseguem mais levar a sério ideias nas quais acreditavam quando eram jovens. O esdrúxulo em Sanders, ou Bernie, como é chamado há 75 anos, é que ele acredita nas mesmas coisas dos tempos de juventude. Foi aprimorando conceitos e conhecimento e somando experiência em quatro mandatos como prefeito de Burlington, mais 16 anos como deputado federal em Washington e outros seis anos como senador.
 
Bernie é geração 60 pura. Garoto nascido no Brooklyn, usava cabelão estilo jewfro, a versão judaica do estilo afro popularizado pelos Panteras Negras. Também foi objetor de consciência da Guerra do Vietnã. Perdeu o pai caixeiro-viajante cedo e, depois de formado pela Universidade de Chicago, investiu os US$ 2.500 que recebera no Bar Mitzvah num terreno rural com cabana no Vermont.
 
Apesar de não ter eletricidade nem água corrente, Bernie achava aquele lugar espetacular. “Cresci num apartamento de três cômodos e meio, nunca tive nada meu, então ter um pedaço de terra em que pudesse caminhar, uma árvore minha foi incrível”, contou à revista “Atlantic”.
 
Não tardou a arrumar um emprego comunitário, expandiu a cabana que passou a abrigar crianças desassistidas e reatou amizades de inclinações afins. Do primeiro casamento sobrou o divórcio no México, corriqueiro naquela época das uniões perecíveis. Da segunda relação duradoura e livre, vivida entre Nova York e Vermont, nasceu o seu filho único.
 
Em “Why Bernie Sanders Matters”, a oportuna biografia não autorizada do senador democrata, Harry Jaffe atribui o indissolúvel elo de Bernie com Vermont à contracultura dos anos 60. O movimento se dividia em três tribos bastante distintas: os mais politizados e voltados para a defesa dos direitos civis concentravam-se nas universidades de Berkeley e Columbia; os “paz e amor” de flor nos cabelos e viagens de LSD para expandir a mente se aglutinavam na região de São Francisco; e os adeptos de um retorno à Mãe Natureza e a uma vida autossuficiente encontraram refúgio em Vermont, o Estado das Montanhas Verdes, em meio a uma população agrícola que, por necessidade, também era autossuficiente. Entre eles, Bernie. Em 1970 a população hippie do estado chegou a 33% na faixa etária de 18 a 34 anos.
 
Bernie não pode ser acusado de socialista por ser o primeiro a se definir como tal, para perplexidade de um país onde ser apenas liberal já é considerado pecado. Tem mais. Numa campanha encharcada de proclamações de fé e juras religiosas, Bernie já deixou claro que ninguém o verá entrar numa sinagoga para fins eleitorais.
 
A bandeira que o elegeu prefeito pela primeira vez é a mesma de hoje. Trinta e cinco anos atrás ele falava contra “os 1% mais ricos que tomam as decisões que afetam todas as nossas vidas”. Hoje, ele repete que a política de Washington foi tão corrompida por interesses, corporações, apadrinhamentos e dinheiro que nenhuma reforma profunda conseguirá ser feita a menos que ocorra algum movimento como o dos direitos civis, da emancipação da mulher ou do casamento gay e diga: “Chega!”
 
Com um discurso desses, é óbvio que sua campanha passa longe dos grandes financiadores democratas que têm candidata estelar: Hillary Clinton. Em contrapartida, segundo a última pesquisa de opinião NBC/Marist, o senador sem marqueteiro leva vantagem de 64 a 29 sobre a adversária entre eleitores de menos de 45 anos.
 
Bernie é pop, é cultuado pela garotada, injeta frescor à campanha, mas nada tem de folclórico. Apenas sua participação se assemelha mais a um movimento do que a uma candidatura convencional. E depende maciçamente do comparecimento dos jovens às urnas.
 
O que nos Estados Unidos, onde o voto não é obrigatório, costuma ser a faixa etária de comportamento eleitoral menos confiável. Na eleição de 2012, por exemplo, apenas 45% dos eleitores entre 18 e 29 anos compareceram às urnas, enquanto na faixa etária acima dos 65 anos a presença foi maciça: 72%.
 
É provável que a candidatura de Bernie teria caído como uma luva nos idos de 1972 para disputar a Casa Branca com Richard Nixon. Assim, os Estados Unidos teriam tido o candidato da geração dos anos 60 que nunca teve — o honrado George McGovern fez as vezes, embora seu perfil fosse outro.
 
Quatro décadas depois, Bernie está aí. Pelo menos a juventude americana de 2016 terá tido um lampejo do que é fazer campanha para um candidato que lembra no que acredita. Sorte dela.
 
Dorrit Harazim é jornalista
Redação

4 Comentários

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  1. contra wall street, numa

    contra wall street, numa dessas a filosofia hippie renasça 

    e a juventude norte-americana volta a viajar!!!

    ou reforça uma candidatura menos forte do que a hillary

    para enfrentar o temeroso tramp, talvez o desejo de consumo da globo…….

  2. Se houvesse um contingente um

    Se houvesse um contingente um pouquinho maior de jovens conscientizados politicamente nos EUA,  seria dado um grande passo para a melhora no planeta.

    ( A política norte americana é a locomotiva do mundo ).

    Um dia chegaremos onde precisamos chegar, a esperança está viva.

     

     

    1. É sempre um prazer deparar

      É sempre um prazer deparar com um texto escrito por Dorrit Harrazim, de quem fui colega nos bons tempos de Veja.

      Dorrit conhece como poucos a grande cena e os bastidores da política americana.

      E além disso, é dona de um texto primoroso, que é direto, objetivo e elegante.

      Graaaande Dorrit! 

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