A apatia dos europeus com as eleições do Parlamento

Sugerido por Paulo F.

Do Diário de Notícias de Lisboa
 
A Europa, de saída da história?
 
por MANUEL MARIA CARRILHO 
 
Europeu é aquele que vive na nostalgia da Europa, disse uma vez com a acutilância que o carateriza Milan Kundera. A apatia com que os europeus têm vivido o processo das eleições europeias, cujo desfecho se conhecerá no domingo, são não só um corolário desta ilusão nostálgica, mas também das suas consequências mais funestas: a incompetência das suas elites, a indiferença dos seus cidadãos, a indigência das ideias apresentadas.
 
No preciso momento em que a Europa conhece a sua mais grave crise desde a sua criação, uma crise que abala os seus alicerces fundamentais, nenhuma proposta se destacou, por parte dos principais candidatos, para a enfrentar e vencer. Como se a Europa, afinal, se resignasse a ir saindo de uma história cujo sentido deixou de dominar, incapaz de compreender o mundo de hoje e de se adaptar às suas novas exigências.
 
A Europa aparece, e isto acontece no discurso eleitoral de todas as forças políticas, como algo que ninguém consegue mudar, como algo que escapou completamente – não se sabe bem como – à vontade política dos governos e dos cidadãos. E os políticos reforçam constantemente este sentimento, ao falarem dela mais em termos de prece do que de ação.

 
O sonho europeu tornou-se assim, para uns num pesadelo, para outros numa irrelevância, mas em ambos os casos ele perdeu todo o élan que o caracterizou durante décadas, tornando-se agora no pasto fácil das demagogias mais ou menos populistas, que vão certamente fazer do Parlamento eleito no próximo domingo uma assembleia fragmentada, conflitual, inútil e talvez mesmo perigosa.
 
Um dos textos mais estimulantes que surgiram neste período foi o manifesto Pour une Union Politique de l”Euro”, em grande parte inspirado nos trabalhos de Thomas Piketty, subscrito por muitos intelectuais europeus e que eu também assinei. Thomas Piketty é o economista francês que anda agora nas bocas do mundo, sobretudo depois da tradução americana do seu livro Le Capital au XXI Siècle. Falei dele aqui nestas páginas quando foi publicado, em outono passado, tendo previsto que, apesar das suas desafiadoras quase mil páginas, se tratava de uma obra destinada a marcar o nosso tempo.
 
E é o que está a acontecer, com traduções em curso em todo o mundo. Nos EUA o livro está mesmo na lista de best-sellers da Amazon, economistas como J.Stiglitz ou R. Sollow têm-se multiplicado em elogios às suas ideias, tendo Paul Krugman considerado que se trata do mais importante livro da década.
 
Vale a pena lembrar duas das ideias centrais de Thomas Piketty, uma sobre as desigualdades, outra sobre o crescimento. Começando por esta, a campanha eleitoral europeia tem mostrado que se continua à espera, para sair da crise, de um crescimento mais ou menos milagroso, porque ninguém diz de onde virá ou qual será o seu motor. E que ele continua a ser pensado a olhar para o passado, como se se tratasse de uma simples retoma de um percurso que apenas teria sido interrompido por alguns momentos.
 
Ora, é cada vez mais claro que os dados históricos não permitem sustentar esta perspetiva que vê o futuro como um mero retorno do passado. Thomas Piketty insiste muito neste ponto, ao analisar a evolução das economias de vinte países durante os últimos três séculos. E vale bem a pena reter alguns dados da sua análise, que nunca tinha sido feita. Em primeiro lugar, que a taxa de crescimento da produção por habitante foi em média de 0,8% entre 1700 e 2012, sendo que entre 1700 e 1820 ela foi de 0,1%, entre 1820 e 1912 de 0,9% e entre 1913 e 2012 de 1,6%. E que, se olharmos para a Europa, a mesma taxa de crescimento da produção foi, entre 1820 e 1913, de 1%, e de 1,9% entre 1820 e 2012, enquanto na América ela foi de 1,5% nestes dois períodos.
 
O ponto importante, em que verdadeiramente temos de pensar, é que, como ele diz, “não há nenhum exemplo histórico de um país que se encontre na fronteira tecnológica mundial e cujo crescimento seja duravelmente superior a 1,5%”. E se olhamos para as últimas décadas, encontramos ritmos ainda mais débeis, como o de 0,7% no Japão, de 1,4% nos EUA e de 1,6% na Europa ocidental, entre 1900 e 2012. O que acontece, conclui Piketty, porque “continuamos numa grande medida impregnados pela ideia segundo a qual o crescimento deve ser pelo menos de 3% ou 4%. Ora isto é uma ilusão, tanto em relação à história, como à lógica”.
 
Sobre as desigualdades, que é o tema central do seu trabalho, a sua tese é que, no longo prazo, os rendimentos do capital são extravagantemente superiores, não só aos do trabalho, mas também aos do próprio crescimento económico. O que significa que a dinâmica do capitalismo se revela criadora de desigualdades que não é de todo capaz de corrigir, o que, na situação da economia globalizada dos nossos dias, exige que se pense muito a sério em soluções também globais.
 
É um facto que as guerras do século XX criaram, devido à devastação que operaram, uma espécie de grau zero ao nível patrimonial, suscitando a ilusão de uma progressiva diminuição das desigualdades. O sonho europeu foi em boa parte resultado desta ilusão – é por isso que a Europa só sobreviverá como potência se, como se diz no “manifesto” que atrás referi, assumir mudanças profundas ao nível institucional e político como, por exemplo, uma fiscalidade uniformizada, a criação de um imposto europeu que viabilize um orçamento minimamente capaz para a zona euro, a mutualização da dívida de cada país acima dos 60%, a criação de um Parlamento da zona euro ou o fim do imperativo da unanimidade no Conselho Europeu, com a adoção da regra da maioria.
 
Clamar que a opinião pública está cada vez mais em aceso atrito com a Europa, e não fazer nada para mudar profundamente o seu funcionamento e as suas instituições, é de uma total incongruência, que só agudizará a crise europeia e acelerará a sua saída da história. Mas é esse, infelizmente, o risco que corremos.
Redação

2 Comentários

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  1. Essa apatia é prato cheio

    Essa apatia é prato cheio para a extrema direita. Em que pese alguns revéses, como essae na Holanda, ela cresce assustadoramente. Lembramos que a nazismo e fascismo foram resultados das crises econômicas pós primeira guerra.

    Folha.

    Extrema direita da Holanda sofre revés nas eleições europeias

    AFP 23/05/2014 11p7

    O ultradireitista holandês Geert Wilders sofreu, segundo as pesquisas, um duro revés nas eleições europeias que começaram na quinta-feira na Holanda e no Reino Unido e que prosseguem nesta sexta-feira na Irlanda e República Tcheca. Segundo uma pesquisa de boca de urna IPSOS realizada pela tv pública holandesa NOS, o PVV obtinha 12,2% dos votos (3 cadeiras), contra 17% de cinco anos atrás (5 cadeiras). Os centristas (15,6%) e os democrata-cristãos (15,2%), que obteriam quatro europarlamentares cada um, liderariam a eleição, segundo a mesma fonte. O golpe sofrido pelo Partido da Liberdade (PVV) de Wilders não deve, no entanto, impedir o avanço dos partidos eurocéticos e anti-imigração em escala europeia – principalmente na França e no Reino Unido -, favorecidos pela crise econômica que deixou 26 milhões de desempregados na União Europeia (UE). No Reino Unido, ainda não se sabe qual é a tendência das eleições europeias, mas, nas municipais, que são realizadas ao mesmo tempo, o Partido pela Independência do Reino Unido (UKIP), de Nigel Farage, teve um forte avanço, de acordo com a primeira apuração dos votos divulgada. O partido de ultradireita UKIP prometeu um terremoto político e os primeiros resultados de boca de urna nas eleições locais na Inglaterra e Irlanda do Norte nesta sexta confirmaram sua entrada no establishment político nacional. “O país entrou em uma era de quatro partidos políticos”, sentenciou o chefe da campanha trabalhista, Douglas Alexander. Apesar de até o momento não ter o controle que qualquer município, a representatividade do partido de Nigel Farage aumenta consideravelmente e o faz às custas dos três partidos tradicionais britânicos. Cerca de 400 milhões de eleitores devem votar entre quinta e domingo nos 28 países da UE para designar por cinco anos os 751 deputados do Parlamento Europeu. Os eurocéticos poderão triplicar seu número de deputados, chegando a cem cadeiras. DECEPÇÃO Segundo Wilders, ante seus partidários, os resultados da boca de urna são decepcionantes e também lamentou a baixa participação (37%), que, a seu ver, o prejudicou. A abstenção, que em 2009 foi de 57%, poderá bater recordes nestas eleições, que continuarão nesta sexta na República Tcheca e na Irlanda, no sábado em Letônia, Malta e Eslováquia, para terminar no domingo em outros 21 países do bloco. A Bélgica também colocará em jogo novamente seu destino nas eleições legislativas que serão realizadas concomitantemente no domingo, assombrada por uma crise comparável à que desestabilizou o reino em 2010 e 2011, em que um abismo entre flamengos e valões aparece maior do que nunca.

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