Algumas vezes o terror usa farda, outras ele usa toga

A notícia é banal: multado por estar sem máscara, um desembargador do TJSP intimidou o guarda-civil, disse que o decreto que obriga o uso da máscara não é Lei e jogou o auto de infração amassado no servidor municipal https://revistaforum.com.br/noticias/analfabeto-e-otario-sem-mascara-na-praia-desembargador-e-multado-e-agride-gcmm/. Trata-se de uma evidente repetição de um episódio que ocorreu no Rio de Janeiro há alguns anos.

Todavia, naquele caso a servidora que multou o juiz acabou sendo punida pela Justiça http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2014/11/agente-de-transito-e-condenada-por-desacato-ao-multar-juiz-no-rj.html. O fato da agente de trânsito ter agido corretamente e não ter ofendido o juiz foi considerado irrelevante pelo TJRJ. Impossível dizer como o TJSP tratará o caso envolvendo o desembargador Eduardo Siqueira e o servidor municipal. Façam suas apostas? Em razão de minhas experiências pessoais eu não apostaria no guarda-civil.

Num ensaio primoroso, Hannah Arendt disse que:

“A história ensina que o terror, como meio de submeter as pessoas pelo medo, pode aparecer sob uma extraordinária variedade de formas e estar intimamente ligado a um grande número de sistemas políticos e partidários que nos são familiar. O terror dos tiranos, déspotas e ditadores está documentado desde a Antiguidade: o terror das revoluções e contra-revoluções, das maiorias contra as minorias e das minorias contra a maioria da humanidade, o terror das democracias plebiscitárias e dos sistemas monopartidários modernos, o terror dos movimentos revolucionários e o terror de pequenos grupos de conspiradores. A ciência política não pode se contentar em simplesmente estabelecer o fato de que o terror é usado para intimidar pessoas. Deve separar e elucidar as diferenças entre todas essas formas de regimes de terror, as quais atribuem ao terror funções muito diferentes em cada regime específico.” (Compreender – formação, exílio e totalitarismo [ensaios 1930-1954], Hannah Arendt, Companhia das Letras, São Paulo, 2008, p. 320 – texto Humanidade e terror)

Um pouco adiante, falando especificamente sobre o totalitarismo, a autora faz um esclarecimento importante:

“… Para que um governo totalitário atinja seu objetivo de controle total sobre os governados, as pessoas devem ser privadas não só de sua liberdade mas também de seus instintos e impulsos, que não são programados para gerar reações idênticas em todos, mas sempre levam diferentes indivíduos a diferentes ações. O êxito ou fracasso do governo totalitário, portanto, depende em última análise de sua capacidade de transformar seres humanos em animais pervertidos. De modo geral, isso nem sempre é possível, mesmo sob as condições do terror totalitário.” (Compreender – formação, exílio e totalitarismo [ensaios 1930-1954], Hannah Arendt, Companhia das Letras, São Paulo, 2008, p. 327 – texto Humanidade e terror)

É quase impossível ver o momento exato em que um sistema de terror passou a ser uma realidade incontornável e insofismável. Os processos históricos são lentos, no calor dos fatos a percepção deles é quase sempre fragmentada. Em geral, as pessoas vão se acostumando às medidas de exceção até que em algum momento a própria exceção se torna a regra.

A regra num Estado de Direito é clara: todos são iguais perante a Lei, nenhum juiz pode julgar as disputas em que esteja pessoalmente envolvido. Nos dois casos mencionados do início, os membros do Judiciário deveriam acatar as decisões dos servidores que exerciam suas funções de maneira legítima. Somente depois que fossem multados eles poderiam questionar na Justiça a legalidade ou não da multa que receberam.

Ambos preferiram fazer o oposto. Levando em conta exclusivamente uma suposta hierarquia social entre os juízes e as outras pessoas, o juiz cariosa e o desembargador paulista julgaram “em tempo real” a atuação dos servidores públicos como se não fossem suspeitos para fazer isso (o que efetivamente eles eram), presumindo que tinham competência para decidir (algo dificilmente seria o caso se levarmos em conta as regras processuais) e agindo como se estivessem despachando num caso concreto (muito embora ambos não estivessem nas dependências do Judiciário).

O hábito não faz o monge. A toga certamente não tem produzido bons cidadãos.

De certa maneira, a conduta das duas autoridades judiciárias mencionadas lembra muito a de um padre católico que acabou sendo afastado de sua paróquia. Ele foi dar extrema-unção a uma pessoa morta e resolveu tentar ressuscitá-la. Durante a realização do rito os parentes do morto notaram que o padre estava embriagado. O cadáver obviamente não se comportou como Lázaro e o clérigo acabou sendo internado numa instituição psiquiátrica.

Afastamento para tratamento psicopedagógico… Algo semelhante deveria ocorrer com os juízes e desembargadores que cometem abusos como os que foram aqui mencionados? A resposta é SIM. Todavia, no caso isso raramente ocorre no Brasil. O juiz cariosa levou a melhor sobre a servidora que o multou. Dificilmente o TJSP fará mais do que aplicar uma pena de censura sigilosa à conduta do desembargador malcriado incapaz de entender que o uso de máscara é essencial para garantir a saúde dele e, principalmente, das outras pessoas.

O terror a que estão submetidos os advogados, servidores municipais, estaduais e federais brasileiros é evidente. Sempre que fazem algo contra um membro do Judiciário eles correm risco extremo: perda do cargo, responsabilização civil e criminal, etc… Quando julgam a conduta dos seus iguais os juízes raramente são severos. Ao proferir decisões contra os adversários dos seus colegas, entretanto, eles quase sempre são cruéis.

Essa característica predominante do sistema político brasileiro certamente não o iguala ao totalitarismo estudado por Hannah Arendt. Todavia, o que causa mais estranheza é a quase inexistência de juízes e desembargadores brasileiros que não se comportem como “animais pervertidos”.

A missão dos membros do Judiciário não é julgar todos o tempo todo dentro e fora dos Fóruns e Tribunais. Mas a maioria deles faz isso com uma naturalidade que chega a ser bestial. Depois que se tornam inamovíveis e vitalícios, os juízes brasileiros não são privados “de sua liberdade” em virtude da obrigação funcional de cumprir e fazer cumprir com exatidão a legislação e vigor (art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura). Muito pelo contrário, em razão dos privilégios e do corporativismo, eles se sentem estimulados a dar vazão a todos “seus instintos e impulsos” animais, ilegais e até criminosos.

O resultado disso é a existência de um sistema de terror em que os órgãos do Estado encarregados de distribuir Justiça fazem o contrário do que deveriam. Eles distribuem injustiça para garantir a impunidade dos juízes. E nós estamos tão acostumados aos abusos que eles cometem que nos tornamos incapazes de pensar e debater o Judiciário que temos e aquele queremos.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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