As novas ante-salas do poder


Há séculos o exercício do poder é estruturado de maneira a separar os governantes dos governados. O elemento de ligação entre ambos, a ante-sala do poder, fornece ao governante tudo aquilo que ele deve saber para tomar suas decisões. E se encarrega de comunicá-las ao povo.

Local privilegiado com a prerrogativa de selecionar as informações relevantes para o exercício do poder e de moderar decisões que considere perigosas, inadequadas ou inoportunas, a ante-sala do poder pode acabar se transformando no próprio poder. Portanto, além do conflito entre governante e governados, sempre existiu e existirá um conflito aberto ou velado entre a ante-sala do poder e aquele que foi encarregado de exercê-lo.

O poder pode ter sua origem na força bruta, na vontade divina ou no voto popular. Portanto, a ante-sala do poder pode ser predominantemente ocupada por militares, clérigos ou ministros. Desde que surgiu, a imprensa passou a funcionar como uma ante-sala informal do poder.

Numa monarquia absoluta, o rei pode em tese reorganizar a ante-sala do poder como bem entender. Mas ao fazer isso, dependendo da situação, ele pode também enfraquecer sua posição. O rei tem poder para demitir ministros, afastar conselheiros e condená-los ao desterro, mas ele nunca conseguirá transferir para si mesmo a popularidade que eles gozam.

Numa república, não existe poder absoluto ou concentrado. Cada um dos três poderes tem suas próprias ante-salas do poder definidas por Lei. Não falaremos aqui do Legislativo e do Judiciário.

Mesmo que seja comandada por pessoas nomeadas pelo presidente ou pelo primeiro ministro, uma parcela significativa do poder executivo será exercida por servidores civis e militares de carreira que gozam de vitaliciedade. Acostumados a ver os receptáculos temporários do poder chegarem e partirem, esses servidores públicos adquirem uma grande auto confiança.

Em algumas repúblicas, a ante-sala do poder se torna tão eficiente que consegue se tornar invisível proporcionando a estabilidade e a continuidade indispensáveis à gestão dos negócios públicos. Em outras, ela se torna um problema que não pode ser contornado ou resolvido senão mediante algum tipo de ruptura.

João Goulart foi deposto por militares. Nem mesmo os generais que diziam apoiá-lo fizeram algo para defender o sistema constitucional republicado e para garantir o mandato dele. No princípio, a Revolução Francesa aboliu a ante-sala do poder monárquico conservando o rei. Luís XVI somente foi deposto, condenado e executado porque tentou fugir para, com ajuda da Áustria, reaver as prerrogativas reais que considerava ter perdido.

Na França revolucionária, as mudanças que ocorreram na ante-sala do poder e, depois, no próprio poder, possibilitaram uma participação política maior da população. A redistribuição das terras que estavam concentradas nas mãos dos aristocratas teve como efeito minimizar as desigualdades econômicas (ou pelo menos a percepção delas). O golpe de estado 1964 fez exatamente o oposto. O novo regime político brasileiro garantiu um longo período de concentração de renda nas mãos dos empresários e rentistas com a violenta exclusão dos pobres da política.

Após tomar posse, Donald Trump deu um “overlap” na ante-sala do poder que existe nos EUA. Usando o Twitter para comunicar suas decisões e referendar “notícias alternativas”, o presidente dos EUA irritou profundamente o “estado profundo” norte-americano. A reação foi inevitável, mas Trump redobrou a aposta.

O sucesso da diplomacia Twittada no caso da Coréia do Norte, por exemplo, é um fato que não pode ser ignorado. O estrago que os Twitters de Donald Trump provocaram nas relações diplomáticas entre os EUA e Europa obrigaram os europeus a rever suas prioridades. Isso causou uma grande confusão dentro de cada Estado membro da União Europeia e se tornou uma fonte de discórdia permanente entre eles.

Ao fim do seu primeiro mandato, entretanto, Trump começou a enfrentar um novo problema. A conta do presidente dos EUA no Twitter foi suspensa. Após ser restabelecida, a conta dele passou a ser monitorada de perto e tratada de maneira diferente. Sempre que ele posta algo considerado inadequado o Twitter é imediatamente removido.

Donald Trump conseguiu driblar as instituições públicas que funcionavam como ante-sala do poder nos EUA. Ele ignorou a imprensa norte-americana. Entretanto, em virtude de depender da comunicação direta com seus seguidores para fornecer e referendar suas “notícias alternativas”, anunciar decisões e criar as novas crises políticas/diplomáticas que pretende administrar, o presidente dos EUA  possibilitou às redes sociais se transformarem numa nova ante-sala do poder.

As empresas privadas estão sujeitas a um controle estatal frágil nos EUA. Donald Trump não conseguirá resolver o problema que criou fazendo ameaças, se dizendo vítima de uma conspiração ou editando decretos para garantir a inviolabilidade do seu espaço nas redes sociais. Se tentar impor qualquer tipo de controle administrativo sobre Twitter, Facebook, etc… a decisão dele será imediatamente contestada e revogada pela Justiça. Até a presente data, o presidente dos EUA não conseguiu driblar, contornar ou ignorar as decisões do poder Judiciário do seu país.

No Brasil, o STF vinha sendo tratado por Jair Bolsonaro como se fosse uma incômoda ante-sala do poder com prerrogativas maiores do que aquelas que foram outorgadas ao presidente. O problema de Bolsonaro é semelhante ao de Trump, mas ao contrário dos EUA o Brasil é um país com uma longa tradição autoritária. Felizmente para nós a incompetência política do mito é infinitamente maior do que a vontade que ele cultiva de se proclamar ditador vitalício com poderes excepcionais.

Existe uma diferença essencial entre Trump e Bolsonaro. O presidente dos EUA tem 84,2 x 106 seguidores genuínos no Twitter. O candidato a ditador brasileiro tem 6,6 x 106  seguidores naquela rede social, mas ninguém sabe ao certo quantos desses seguidores são pessoas de carne e osso.

Uma boa parte dos seguidores de Bolsonaro são robôs controlados pelo “gabinete do ódio”. Essa instituição oficiosa que a familícia criou e tentou transformar numa ante-sala do poder controlada exclusivamente pelo tirano está sendo dinamitada pelo Judiciário. A outra ante-sala do poder construída por Bolsonaro para monitorar seus adversários anti-fascistas também está com os dias contados.

Até a presente data Donald Trump tem sido mais cauteloso do que Bolsonaro. Além de ambos serem homens muito diferentes (Trump nasceu rico e se tornou um empresário bem sucedido; Bolsonaro nasceu numa família pobre e fracassou na carreira militar), existem profundas diferenças culturais e políticas entre o Brasil e os EUA. A democracia brasileira é frágil e sujeita a períodos de interrupção. Os presidentes norte-americanos que tentaram construir um espaço de manobra considerado antidemocrático ou ilegal para burlar a Constituição Americana sofreram consequências desagradáveis. JFK era popular demais e foi assassinado. Richard Nixon sofreu um Impeachment porque transformou a CIA numa instituição criminosa.

Trump quase foi afastado do cargo. Durante o processo de Impeachment ele teve que lutar para conservar seu mandato e não vai colocá-lo em risco criando uma ante-sala do poder parecida com aquela que foi rapidamente construída pela familícia Bolsonaro.

Quando a democracia ateniense foi criada não existiam ante-salas do poder. O povo reunido em assembléia exercia o poder político de maneira direta, decidindo os destinos da cidade, elegendo e destituindo os magistrados e comandantes militares, condenando filósofos e líderes políticos à morte ou ao ostracismo, declarando a guerra ou celebrando a paz.

O abismo que existia a democracia da Atenas de Péricles e nossas democracias indiretas era abissal. Um novo abismo começou a ser aberto no exato momento em que os governantes começaram a utilizar as redes sociais para contornar ante-salas do poder consideradas muito poderosas.

A democracia sofreu uma mutação ao se tornar indireta. Os regimes políticos instituídos pela Constituição Americana e pela Constituição Cidadã não se transformaram em democracias diretas em razão do uso do Twitter e do Facebook por Trump e Bolsonaro. É possível nomear um regime político cuja característica principal é ser elusivo e ilusionista?

Uma coisa é certa: Twitter, Facebook etc conquistaram um poder político que jamais imaginaram. Como essas ante-salas privadas do poder serão utilizadas é algo algo que certamente terá que ser objeto de discussão entre os constitucionalistas.

A comunicação permanente entre governante e governado é algo desejável numa democracia indireta? O poder privado absoluto de interferir na comunicação entre governante e governado é compatível com o regime democrático? Pode o presidente usar uma rede social para governar seus robôs como se eles fossem cidadãos? O governante tem ou não o dever de responder cada mensagem que recebe pelo Twitter? Qual é o verdadeiro status da cidadania num regime político em que a comunicação entre governante e governado é apenas aparente e/ou ilusória?

Fábio de Oliveira Ribeiro

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