Diário da Peste 28

Cada um de nós é obrigado a encontrar uma maneira de conviver com o isolamento. A outra opção, sair na rua fazendo de conta que a pandemia não existe ou é inofensiva, está fora de cogitação.

Minha maneira de estruturar a rotina não deixa de ser interessante. Talvez ela possa dizer mais sobre mim do que eu imagino.

Ao acordar ligo a internet e desconecto o celular do carregador. Dou então expediente no Twitter para ver quais são as tendências gerais do dia: o que está sendo discutido e de que maneira?

Café da manhã, dentes escovados, dou asas à imaginação. Quando ela se fixa em algo relevante começo a escrever algo sobre a questão, que pode ou não se relacionar com a tendência do dia. Mas o assunto é invariavelmente penetrado pela pandemia e suas consequências.

Concluído o texto deixo-o descansando e vou dar expediente na sacada. Acredito que trinta minutos de sol por dia são indispensáveis. Acariciado pelos raios solares fico mais tranquilo, consigo até mesmo esquecer os inconvenientes do isolamento.

Uma mulher esfrega vigorosamente a calçada na entrada do prédio em frente ao meu. Outra desce a rua digitando no celular. Ela para no meio da rua. Um carro branco para atrás dela. Da calçada um homem mascarado, provavelmente o esposo dela, grita:

– Você está no meio da rua atrapalhando o trânsito.

Sem parar de digitar a mulher deixa o carro ultrapassa-la. Depois ela retorna ao local em que estava quando foi contrariada. Consciente ou não, o ato dela de voltar a digitar o celular no meio da rua revela uma tensão entre ela o marido. Suponho que se não for dissolvida essa tensão pode levar a uma ruptura.

Hobbes representou o Leviatã como um grande homem composto de homenzinhos pequeninos. Ele parece ter intuído que os Estados estão condenados à não ser muito diferentes das pessoas que o compõe.

Os Estados tendem a retornar ao ponto em que estavam. As rupturas políticas que ocorrem no interior dele também são causadas por tensões que não puderam ser dissipadas. O golpe de estado “com o Supremo com tudo” de 2016 provocou tensões políticas, econômicas e regionais que não podem ser e não serão resolvidas enquanto Jair Bolsonaro for presidente da república.

A pandemia de 2020 também causa algumas tensões. Outras ela irá inevitavelmente reprimir. Nesse momento, o “princípio da realidade” impõe restrições ao “princípio do prazer”. A gratificação será inevitavelmente adiada. Mas apenas aqueles que respeitarem o isolamento sobreviverão à pandemia.

Essa orgia política ensaiada nas ruas em favor do fim da quarentena (e do retorno do AI-5) pode ser considerada uma neurose. Ela será curada de uma maneira ou de outra no momento oportuno. Uma mulher contrariada pode reafirmar sua decisão de ficar usando o smartphone no meio da rua, mas se for atropelada não poderá culpar o marido que a alertou sobre o risco de sua conduta.

O perigo para o Brasil não é a pandemia, mas a certeza neurótica de que ela é inofensiva que tem sido inspirada por Bolsonaro numa pequenina parcela da população. Ele quer o povo na rua porque está com medo de cair, mas certamente cairá se conseguir o que deseja e provocar dezenas de milhares de cadáveres.

Encerro agora a primeira fase do expediente no sofá. Hora de ir revirar as coisas na cozinha para definir o cardápio e preparar o almoço. Antes disso, entretanto, um banho revigorante. A higiene pessoal é uma parte importante e prazerosa do meu trabalho diário.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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