Fome e canibalismo na Torre da Fome brasileira

Aqui mesmo no GGN fiz uma pequena dissertação sobre um episódio da Divina Comédia https://jornalggn.com.br/noticia/o-que-dante-alighieri-pode-ensinar-a-amb/. Volto ao tema em virtude das notícias que revelam a tragédia dentro da tragédia causada pela pandemia.

Segundo notícia publicada na internet, o COVID-19 já explodiu nas favelas. As pessoas estariam vendendo até seus telefones para comprar alimentos https://revistaforum.com.br/coronavirus/coronavirus-explode-em-favelas-e-moradores-vendem-ate-celular-para-comprar-comida/. Algo semelhante está ocorrendo na África do Sul https://sputniknews.com/africa/202004191079018472-its-war-out-here-riots-sweep-africa-as-covid-19-fallout-triggers-food-shortages/. Isso era previsível. Aqui mesmo no GGN mencionei o que ocorreu em São Paulo em 1924 https://jornalggn.com.br/cronica/pandemia-desabastecimento-e-fome/.

Fome, desespero, violência, e quem sabe até episódios de canibalismo… a temática do poema de Dante Alighieri se tornaram mais atuais.

Ugolino della Gherardesca (1220 – 1289) foi condenado a morrer de inanição na Torre da Fome em companhia dos filhos e netos. No poema, o personagem conta a Dante Alighieri que os filhos se ofereceram para ser devorados por ele

“Dessa carne: ora sirva em teu proveito”

Ugolino afirma que rejeitou a oferenda:

“Contendo-me evitei lance mais triste”

O lance mais triste que Ugolino evitou só pode ser um: o canibalismo. No ensaio que escreveu sobre essa passagem, Jorge Luis Borges afirma que:

“O problema histórico de saber se Ugolino della Gherardesca praticou nos primeiros dias de fevereiro de 1289 o canibalismo é, evidentemente, insolúvel. O problema estético ou literário é bem de outra ordem. Cabe enunciá-lo assim: Quis Dante que pensássemos que Ugolino (o Ugolino do seu Inferno e não o da história) comeu a carne de seus filhos? Eu arriscaria a resposta: Dante não quis que o pensássemos e sim que o suspeitássemos.” (Jorge Luis Borges, Obras Completas, volume III 1975 – 1985, editora Globo, São Paulo, 1999, Nove ensaios dantescos, p. 393/394)

A tese de Jorge Luis Borges é plausível. As palavras de Ugolino – “Contendo-me evitei lance mais triste” – são sinceras ou ele se recusou a admitir que foi obrigado a devorar os filhos na Torre da Fome? É impossível responder essa pergunta, mas sabemos que Dante não explicitou o motivo pelo qual seu personagem foi confinado no Inferno. O Ugolino dantesco mereceu sua punição em razão de ser um traidor do partido dele ou de ter praticado canibalismo?

Da poesia para a realidade. O sucesso da pandemia revela o fracasso do neoliberalismo. O triunfo econômico e político dos ricos significou tanto a precarização dos sistemas públicos de saúde quanto o aumento da vulnerabilidade alimentar de imensas parcelas das populações nos países em que a ideologia neoliberal se instalou.

Os Estados neoliberais se transformaram em imensas Torres da Fome em que centenas de milhões de pessoas foram condenadas a padecer um fim trágico semelhante ao de Ugolino della Gherardesca histórico. Quando começarem a se rebelar por causa da fome eles poderão ser contidos por forças policiais e militares que também estão sendo enfraquecidas pela pandemia?

Ugolino foi condenado a morrer de fome por Ruggieri degli Ubaldini. A vitória dele, porém, foi transitória:

“After Ugolino’s death in 1289, Ruggieri had himself nominated as podestà of Pisa, but was unable to sustain the conflict with the Visconti and had to forfeit the office.”
https://en.wikipedia.org/wiki/Ruggieri_degli_Ubaldini
TRADUÇÃO:

“Após a morte de Ugolino em 1289, Ruggieri foi nomeado podestà* de Pisa, mas foi incapaz de sustentar o conflito com os Visconti e teve que renunciar o cargo.”

A pandemia do COVID-19 seguirá seu curso.Antes de chegar ao fim ela provocará tragédias adicionais e quiçá maiores.

Quanto menos os governos neoliberais investirem para aliviar a fome da população maiores serão as chances de episódios de violência coletiva motivadas pelo desespero. O triunfo político dos ricos pode se transformar num pesadelo dramático. Eles podem se isolar e sobreviver, mas nunca mais eles poderão se sentir seguros num mundo em que uma pandemia e a fome foram transformadas em armas de destruição em massa dos pobres.

A dúvida acerca do canibalismo praticado por Ugolino (o personagem) é um recurso estético empregado magistralmente por Dante Alighieri. As palavras do presidente do Banco Central (reduzir as mortes causadas pela pandemia prejudicará a economia), do novo Ministro da Saúde (os adolescentes têm mais direito de viver do que os idosos; investir dinheiro em equipamentos médicos é um desperdício desnecessário) e de Jair Bolsonaro (é precisa infectar toda a população; alguns vão morrer) e o apoio deles as manifestações de rua para interromper o isolamento social a não deixam espaço para dúvida. Podemos dizer com um elevado grau de certeza que bolsonarismo quer usar a pandemia do COVID-19 para exterminar uma parcela da população brasileira.

O direito à vida e à saúde garantido aos cidadãos está sendo sabotado pelo governo. A segurança alimentar dos pobres não têm sido objeto de preocupação das autoridades federais. Portanto, além de deixar uma parcela da população morrer contaminada, Bolsonaro e seus ministros parecem inclinados a usar violência extrema e letal para conter os motins que inevitavelmente ocorrerão em virtude dos surtos de fome.

Importante salientar que a esmagadora maioria das pessoas que requisitaram o pagamento do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso Nacional estão aguardando a aprovação dos seus cadastros ou não receberam a quantia devida https://fdr.com.br/2020/04/17/sobe-numero-de-pessoas-que-podem-receber-auxilio-emergencial/. A situação de algumas delas é desesperadora e deveria ser objeto de mais atenção por parte da imprensa.

E assim retornamos ao tema do canibalismo. Nos dois primeiros séculos da existência do nosso país, as autoridades coloniais e religiosas lutaram de maneira permanente e persistente contra a antropofagia praticada por algumas tribos indígenas. Como podemos nós desonrar o trabalho dos nossos antepassados admitindo o surgimento e a consolidação de um Leviatã canibal governado por genocidas? Pode esse governo neoliberal condenar uma parcela da população brasileira à fome para devorá-la e vomitá-la nos cemitérios?

* Na comuna medieval italiana a podestà, magistratura única que substituiu o consulado, é o supremo órgão executivo.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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