Terroristas brasileiros, quem eles são e o que desejam

O coronel do Exército brasileiro Alessandro Visacro, finaliza seu livro com uma advertência que merece ser destacada:

“Muitos estadistas e soldados se portam como o personagem de Cervantes, negando-se a admitir que, talvez, exista ‘algo de novo no front’, isto é, que os conflitos da Era da Informação não possuem necessariamente as mesmas características das guerras promovidas pelas sociedades industriais do século XX. A intransigência revela-se perigosa, pois tem o potencial de transformar as forças armadas em instituições anacrônicas, dispendiosas e ineficazes.” (A guerra na era da informação, Alessandro Visacro, Editora Contexto, São Paulo, 2018 p. 206)

Se considerarmos que os militares tradicionalmente consideram a guerra como sendo a continuação da política por outros meios (Carl von Clausewitz), me parece relevante dizer que, no Brasil, nada pode ser mais perigoso do que o anacronismo político. Afinal, podemos dizer que ele tem sido a causa primeira de todos os conflitos militares e similares que ocorreram em nosso território.

Os índios que defendiam territórios cobiçados pelos colonos foram os primeiros inimigos do Estado colonial implantado em Pindorama. Derrotados os índios, os colonos concentraram seus esforços para destruir os aldeamentos de negros que se recusavam a ser escravos. As primeiras rebeliões populares, que no Brasil foram promovidas por colonos miseráveis, geralmente mestiços, também foram massacradas. Algo semelhante ocorreu no sul do país (Guerra dos Farrapos) e no nordeste (Guerra de Canudos) no século XIX.

A violência governamental contra dissidentes políticos durante o século XX parece ser um desdobramento urbano e anacrônico dos conflitos rurais ocorridos nos séculos anteriores. E assim chegamos na fase atual, em que milícias e forças policiais são mobilizadas e empregadas para reprimir violentamente o Movimento Sem Terra.

A vitória de Jair Bolsonaro aumentou a tensão no campo, pois além de paralisar a reforma agrária o governo faz esforços para desalojar camponeses pobres que foram assentados no passado. Eles são chamados de “terroristas” por políticos, militantes, milicianos e militares bolsonaristas. O próprio presidente tem incentivado a criação de milícias rurais anti-MST e facilitado o comércio de armas e de munição.

Várias tentativas de transformar o Judiciário num instrumento de legitimação da supressão violenta do MST têm sido feitas. O fato de existirem promotores, procuradores, juízes e desembargadores comprometidos ideologicamente (ou economicamente) com o ódio político aos sem terra é uma prova evidente do fracasso do sistema constitucional. As autoridades do Sistema de Justiça não podem aplicar nossa legislação como se a “dignidade humana” e o “direito à vida” fossem princípios inferiores e irrelevantes quando confrontados com o “direito de propriedade”.

Quem não tem propriedade não pode ser desumanizado e exterminado. A vida e a dignidade não podem ser mensurados como se fossem privilégios e não direitos concedidos a todos os brasileiros. Inclusive e principalmente àqueles que se encontram em situação econômica vulnerável (caso dos sem terra não assentados) e que foram abandonados à própria sorte por um Estado neoliberal.

O anacronismo político da imprensa conservadora neofascista, que ataca diariamente o MST, também é evidente. No século XIX, antes da guerra começar os jornais cariocas e paulistas atiçaram o Exército contra Canudos sem se dar ao trabalho de visitar o sertão nordestino para saber o que estava realmente ocorrendo. Os jornalistas que hoje tentam convencer a população brasileira da necessidade de exterminar os sem terras também nunca tiveram a humildade profissional e a coragem humanitária de conhecer um assentamento e/ou pesquisar as contradições sociais que provocaram o nascimento e o fortalecimento do Movimento Sem Terra.

As pessoas que se dizem neoliberais deveriam ser as primeiras a aplaudir o MST. Afinal, aquele movimento faz aquilo que o Estado – dominado pelos interesses mesquinhos de latifundiários improdutivos – se recusa a fazer: organizar uma parcela da população, educá-la e incorporá-la à produção econômica.

Não só isso. Durante a pandemia o MST tem distribuído toneladas e toneladas de alimentos aos desempregados, que não são poucos. O que o Estado fez desde que a pandemia começou? Pagou um benefício emergencial que, além de insuficiente, foi objeto de milhares de fraudes. Empresários, milionários e militares foram os primeiros a receber as parcelas. Quem realmente necessitava do auxílio foi obrigado a correr risco de contágio nas filas quilométricas das agências da CEF.

Se fossem realmente revolucionários frios e desalmados (terroristas, como gostam de dizer alguns lunáticos ligados a Bolsonaro), os sem terra poderiam perfeitamente ter aproveitado a pandemia para deixar a sociedade brasileira explodir. Um detalhe importante: o MST não precisaria fazer absolutamente nada para isso ocorrer. Bastaria os sem terra estocar os alimentos que produziram. O desemprego, o desespero e a fome causariam explosões de violência popular nas localidades que foram abastecidas de graça pelo MST.

Os neoliberais brasileiros são capazes de perceber a ironia? Eles rejeitam enfaticamente a interferência do Estado na economia e defendem a suposta eficiência do mercado e as virtudes das organizações espontâneas criadas pela sociedade civil. Mas quando uma parcela da sociedade civil organizada (os sem terra) age de maneira virtuosa eles vomitam ódio ao invés de aplaudir.

Quem está trabalhando para minimizar a fome causada pela inação estatal não são os neoliberais ou o mercado e sim cidadãos brasileiros pobres do MST que se recusam a deixar seus conterrâneos saquear mercados e supermercados para não morrer de fome. Enquanto Bolsonaro incentiva a violência criminosa dizendo “Quem tem arma de fogo é para usar”, o MST pacificou a sociedade brasileira num momento de extrema tensão econômica. Quem aposta na violência e no caos não é o MST e sim os inimigos dos sem terra.

Em 1896 um juiz criminalizou a existência do vilarejo de Canudos para legitimar o uso do Exército no sertão brasileiro. Substitua o ano de “1896” por “2020” e a expressão “vilarejo de Canudos” por “MST” e você conseguirá entender o que está ocorrendo no Brasil.

Esse ódio irracional que tem sido vomitado contra o MST tem raízes históricas profundas. Ele é histericamente anacrônico.

Tão anacrônico quanto a crença dos paulistas e cariocas cultos (ou supostamente cultos) de que Canudos era um enclave monarquista que colocava em risco a República que havia sido proclamada alguns anos antes de 1896. Desde o golpe de 2016, “com o Supremo, com tudo” como disse um senador de extrema direita, a Constituição Cidadã vem sendo pisoteada e esvaziada.

O que mais os neoliberais, ruralistas, evangélicos, milicianos, policiais e militares bolsonaristas querem? Uma Guerra de Canudos 2.0 contra o MST, sem dúvida. Convém à parcela saudável da sociedade e às Forças Armadas resistir contra esse desejo.

Dizer hoje que os sem terra são terroristas não é apenas uma inverdade (talvez seja uma projeção, pois quem defende a violência política criminosa são os inimigos do MST e não os sem terra) é o mesmo que dizer que os inimigos da Ditadura Militar eram comunistas em 1968. Num passado remoto esses “sem terras” e “comunistas” teriam sido chamados de sertanejos monarquistas, rebeldes farroupilhas, cabanos perigosos, quilombolas temíveis, índios hostis, etc…

O padrão é evidente. Desde 1500 uma parcela da população parece acreditar que tem o direito de discriminar, desumanizar, agredir, escravizar, espoliar e, quando necessário, exterminar aqueles que, em virtude de sua cor, condição social, pertencimento étnico, etc.. são considerados inferiores ou indesejados.

“Brasil ame-o ou deixe-o!” Chega disso minha gente.

Ninguém que tenha nascido no Brasil pode ser privado de sua cidadania. Todos os brasileiros, independentemente de qualquer distinção, tem direito de criar organizações pacíficas para preservar ou conquistar direitos, produzir riquezas e, sobretudo, para dar aos seus filhos uma vida melhor do que aquela que eles tiveram.

Quem são os verdadeiros terroristas? Aqueles que distribuem toneladas e toneladas de alimentos de graça para evitar que proprietários de mercados e supermercados sofram prejuízos decorrente de saques durante a pandemia ou os fanáticos políticos e religiosos que querem de toda começar uma guerra civil em nosso país?

Fábio de Oliveira Ribeiro

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