As oportunidades e as crises desperdiçadas pelo Brasil

Antes de começar, peço ao leitor para ler com calma o fragmento de “A felicidade paradoxal” abaixo transcrito:

“Toda a vida das sociedades superdesenvolvidas se apresenta como uma imensa acumulação dos signos de prazer e da felicidade. Vitrines rutilantes de mercadorias nas publicidades resplandecentes de sorriso, do sol das praias nos corpos de sonho, de férias com divertimentos midiáticos, é sob os traços de um hedonismo radiante que se mostram as sociedades opulentas. Por toda parte se erguem as catedrais dedicadas aos objetos e aos lazeres, por toda parte ressoam os hinos ao maior bem-estar, tudo se vende em promessas de volúpia, tudo se oferece como de primeira qualidade e com músicas ambiente difundindo um imaginário de terra da abundância. Nesse jardim das delícias, o bem-estar tornou-se Deus, o consumo, seu templo, o corpo, seu livro sagrado.” (A felicidade paradoxal, Gilles Lipovetsky, Companhia das Letras, São Paulo, 2010, p. 153)

Se levarmos em conta o sucesso planetário do capitalismo, regime cujas virtudes e vícios se expandiram velozmente na Rússia e na China nos últimos 20 anos, é difícil contestar essa afirmação de Gilles Lipovetsky. Até mesmo no Brasil, durante os governos Lula e Dilma Rousseff, uma classe “C” economicamente afluente chegou a acreditar que o consumo era um substituto para a cidadania e que seria possível consumir as mesmas coisas que a classe média tradicional (viagens de avião, estadias no exterior, etc…) sem despertar ressentimentos.

A pandemia acabou com a farra. O corpo humano voltou a ser o que sempre foi: um hospedeiro e retransmissões de doenças infecto-contagiosas fatais. O culto do bem-estar se tornou uma impossibilidade, pois as viagens de avião foram suspensas e o turismo interrompido. O consumo se tornou uma atividade arriscada, pois o vírus pode ser transportado tanto pelo ar quanto na superfície dos objetos comercializados nos Shoppings ou via internet. As delícias proporcionadas pelas sociedades opulentas foram substituídas pelo Lockdown e pelos sentimentos de angústia, incerteza, temor e, nos casos mais graves, dor provocada pela morte de familiares e amigos.

No Brasil a farra já havia acabado. Desde o golpe de 2016 a capacidade de consumo da classe C havia começado a declinar. Quem sentiu mais o impacto da pandemia foi a classe média tradicional. No momento em que os pobres deixaram de viajar de avião as companhias aéreas foram obrigadas a paralisar suas atividades. O consumo de pacotes de turismo no exterior se tornou uma impossibilidade por causa das proibições sanitárias impostas por europeus e norte-americanos.

Os prejuízos econômicos causados pela pandemia empurraram uma parcela da classe média tradicional para baixo. Portanto, no caso brasileiro é impossível deixar de notar um fenômeno curioso e engraçado. A classe média tradicional apoiou o golpe de 2016 porque não admitia ser igual à classe C. Consolidado o golpe, ela empobreceu ou no mínimo foi obrigada a amargar o Lockdown e suas consequências.

A natureza não produz as desigualdades sociais. Mas ela tem o poder de reduzir todos à modesta condição de seres frágeis ou fragilizados.

Nas redes de TV e na internet, o sistema de propaganda descrito por Gilles Lipovetsky, que sustenta o capitalismo glorificando o consumo, tenta se adaptar à pandemia. Durante os telejornais, duas narrativas contraditórias são transmitidas de maneira superposta.

Entre os blocos do telejornal as propagandas arrojadas, alegres e sedutoras de carros, celulares, computadores, motocicletas, etc…, objetos brilhantes e mágicos, capazes de transmitir aos consumidores sensações indescritíveis de prazer, poder, segurança ou superioridade. Durante o telejornal as estatísticas deprimentes das mortes causada pelo COVID-19. A situação econômica piorou, o desemprego não diminuiu, a fome retornou às periferias pobres.

Caminhões tombados e supermercados estão sendo saqueados. A inflação aumentou, as reservas internacionais deixadas por Lula e Dilma Rousseff estão evaporando. Sérgio Moro tentando inutilmente voltar a ser notícia. E para piorar a vida da classe média tradicional brasileira o turismo voltará a ser interrompido na Europa e nos EUA por causa da aceleração do contágio e das mortes nas últimas semanas.

É óbvio que a pandemia não feriu mortalmente o hedonismo. As praias cariocas lotadas provam satisfatoriamente que há algo de podre na cultura brasileira. Todavia, ele se tornou anacrônico. De que adianta ter dinheiro e não poder desfrutar os prazeres do consumo. Os brasileiros que correm riscos para continuar consumindo se defrontam com duas esfinges terríveis. Uma delas é a realidade da pandemia e da morte, que continua dominando a atenção da mídia. A outra é a inevitabilidade do distanciamento imposto pelas pessoas que preferem tomar cuidado ao invés de se aproximar e aplaudir ou invejar os objetos novos que foram comprados.

Quem encontra a felicidade em si mesmo consegue suportar a tensão da anormalidade imposta pela pandemia. Quem só consegue ser feliz porque se sente o centro das atenções de uma platéia certamente está sofrendo em dobro agora que o jardim das delícias está fechado.

A divindade criada pelo capitalismo se voltou contra o consumo. O estrago que a pandemia produzirá na teologia da prosperidade é evidente. Empobrecida uma parcela dos fiéis deixará de pagar o dízimo. As disputas por recursos escassos podem provocar inimizades e violências no interior das igrejas evangélicas. O aumento das desconfianças e das animosidades entre os bispos milionários será inevitável. Eles lançaram milhares de candidatos para compensar a crise avançando nos orçamentos municipais.

O jogo eleitoral é incerto. As apostas são grandes, as derrotas não serão pequenas ou facilmente acomodadas no interior de instituições religiosas obrigadas a conviver com lucros decrescentes. Não gosto de fazer previsões, mas suponho que o desemprego, o desespero e a fome ajudarão bastante os partidos de esquerda. Uma interrupção do projeto teológico-militar-político dos evangélicos seria muito bem vindo.

Na China toda crise é encarada como uma oportunidade. No Brasil todas as oportunidades são desperdiçadas porque os banqueiros, juízes, militares, barões da mídia inventam crises sempre que os candidatos deles perdem as eleições. Lá o autoritarismo tira as pessoas da miséria. Aqui geralmente ocorre exatamente o oposto: as ditaduras são criadas para empobrecer os pobres e reforçar hierarquias sociais e estruturas econômicas arcaicas herdadas do período colonial.

Os comunistas chineses usaram a pandemia para reaproximar o Estado do povo. Os neoliberais brasileiros se esforçam para distanciar o Estado de uma imensa parcela da população. Dessa vez nós não perderemos apenas uma década. O Brasil está criando as condições para entrar num século perdido.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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