Bolsonaro o mito e o sintoma

Através de seu novo livro, Rubens Casara procura compreender e explicar o fenômeno Bolsonaro. Empregando conceitos oriundos da sociologia, da filosofia e da psicologia, ele explica o sucesso do neoliberalismo econômico em virtude de um fenômeno político complexo: aliada à tradição autoritária e à ignorância, o empobrecimento da comunicação construiu um mundo em que a anormalidade se torna paradoxalmente normal.

O livro tem algumas virtudes, mas padece de um defeito fundamental: Rubens Casara se recusa a ver a realidade sob um filtro histórico. E ele se recusa a admitir um fato importante: algumas das coisas que ele considera absolutamente novas são o resultado de tendências que já existiam embrionariamente há décadas.

Quando eu estava na Faculdade de Direito, uma das coisas mais interessantes que chamou minha atenção foi a inusitada dobradinha Lula-Afanásio Jazadji na eleição de 1986.

O candidato do PT foi o mais votado para a Câmara dos Deputados. O do PDS foi eleito com uma votação expressiva para a Assembleia Legislativa de São Paulo. A diferença entre eles (Lula era um candidato de esquerda com uma plataforma de esquerda e Afanásio um candidato de direita com uma plataforma de direita) não foi percebida ou foi simplesmente ignorada pela grande quantidade de eleitores que votaram em ambos.

Suponho que seja preciso pensar melhor sobre aquele fenômeno para compreender o que está ocorrendo na atualidade A maior dobradinha eleitoral daquela eleição não foi organizada pelos partidos. Ela surgiu nas urnas como uma expressão da vontade popular. Uma vontade calculada cuja lógica é ignorada ou simplesmente desdenhada pelos autores que escrevem sobre política.

Uma parcela significativa do povo brasileiro vota em líderes, não em partidos. Ela consegue gostar simultaneamente tanto de um líder de esquerda quanto de um de direita. Isso explica, por exemplo, porque a popularidade de Lula continua alta apesar de Bolsonaro ter sido eleito. Não é impossível encontrar eleitores de Bolsonaro que votariam em Lula se o petista tivesse sido autorizado a disputar a eleição A recíproca provavelmente é verdadeira: eleitores de Lula votaram em Bolsonaro porque se identificaram mais com Bolsonaro do que com Fernando Haddad.

O autor do livro, entretanto, credita o sucesso de Bolsonaro ao sucesso do neoliberalismo e à ignorância.

“A racionalidade neoliberal gerou também o fenômeno de pessoas livres do peso de terem que pensar (em certo sentido, a-sujeitos), na medida em que suas ações são direcionadas por modificações do meio pela manipulação de informações, pela propaganda, pela indústria cultural e, hoje, pelos mandamentos produzidos pelas ‘telas’ (televisores, smartphones, computadores ligados à rede etc.) que funcionam como ‘próteses do pensamento’ adequado ao mercado. Essas pessoas, livres do peso de pensar e despidas de valores como a solidariedade, tornaram-se o alvo preferencial da propaganda bolsonarista.” (Bolsonaro o mito e o sintoma, Rubens R.R. Casara, Contra-Corrente, São Paulo, 2020, p. 42)

“O valor político da ‘ignorância’, que facilita a introjeção de uma normatividade adequada aos interesses dos detentores do poder político e do poder econômico, está ligado à ideia de identidade. É a ignorância que permite uma identificação direta com ampla parcela da população, uma identificação a partir da falta de conhecimentos/informação e da miséria intelectual.” (Bolsonaro o mito e o sintoma, Rubens R.R. Casara, Contra-Corrente, São Paulo, 2020, p. 97)

Segundo Rubens Casara, Bolsonaro encara o “outro” como “amigo” ou “inimigo” e ele explora a ignorância e os preconceitos dos eleitores. Posso perfeitamente concordar com esse argumento. Todavia, ele não é o único político que faz isso. Há, porém, algo mais que pode ser dito sobre as eleições de 2018 e seu resultado.

O PT somente chegou à presidência e a manteve porque empregou a tática de polarizar a eleição contra os tucanos. O fracasso eleitoral do candidato do PSDB no primeiro turno da eleição de 2018 acarretou o fracasso eleitoral de Fernando Haddad no segundo turno? Essa pergunta é apenas retórica. A verdade factual que me parece evidente é que Bolsonaro foi capaz de utilizar a polarização eleitoral em seu próprio benefício com mais eficácia do que Fernando Haddad. Todavia, a população brasileira não foi acostumada à polarização e à simplificação eleitoral da disputapresidencial pelo PSL e sim pelos partidos então hegemônicos (PT e PSDB).

Rubens Casara critica a simplificação do mundo imposta pelo bolsonarismo. Todavia, ele incorre num erro quase semelhante ao transformaro que ele chama de “pessoas livres do peso de terem que pensar” ou “pessoas ignorantes” num grupo homogêneo, um “outro” a ser estudado e submetido pelo discurso impiedoso do cientista social que observa o povo (ou que só consegue observar a imagem que está querendo construir dele).

É óbvio que as pessoas, todas elas sem exceção, são capazes de pensar. Como nós, ao votar elas provavelmente pensam no que é melhor para elas (ou para a família delas). O resultado desse pensar popular produz fenômenos que nós não conseguimos compreender direito (como a dobradinha Lula-Afanásio Jazadji na eleição 1986) ou mesmo aceitar (como a vitória de Bolsonaro em 2018). Mas é um erro projetar nossos preconceitos intelectuais nas pessoas que obviamente pensaram diferente de nós.

As vítimas do bolsonarismo não são robôs teleguiados por telas. Elas são pessoas livres, cuja liberdade de ação não foi tolhida. A liberdade delas pode ter sido mal empregada, mas essa é apenas uma interpretação diferente daquela que elas mesmas deram e/ou dão às suas próprias escolhas. Além disso, me parece evidente que nenhuma interpretação da realidade feita pelos adversários do bolsonarismo será capaz de nos fornecer elementos fáticos importantes sobre a maneira como o próprio povo brasileiro significou suas ambições e proferiu suas decisões nas urnas.

Essas decisões são permanentes? Bolsonaro obviamente acredita que sim, pois ele tem feito tudo para se tornar um ditador. Por razões diferentes, Rubens Casara comete o equívoco de concordar com ele. Isso ocorre no momento em que o autor Bolsonaro o mito e o sintoma de confere ao neoliberalismo o status de realidade permanente e inescapável.

A realidade, tal como ela foi interpretada por Rubens Casara, não existia quando o povo se identificou tanto com Lula quanto com Afanásio Jazadji. E o fato de existirem pessoas capazes de se identificar tanto com Lula quanto com Bolsonaro (algo que parece impensável ou, pelo menos inexplicável) é algo que não se ajusta de maneira perfeita à inevitabilidade do neoliberalismo. Afinal, Lula não é neoliberal. O ex-presidente petista pode não ser de esquerda (como ele mesmo já admitiu), mas ele não é neoliberal.

Há algo mais que precisa ser dito. Não posso deixar de voltar à questão da ignorância tal como ela foi explorada pelo autor do livro.

Eu sou advogado há 30 anos. Há mais de 40 anos sou leitor de obras de sociologia, filosofia, psicologia, história, etc… Observar, essa foi a principal coisa que eu aprendi. Todos os dias eu observo minha própria ignorância.

Posso dizer com segurança que não sei absolutamente nada sobre os processos químicos que, por exemplo, permitem transformar petróleo tanto em combustível quanto em fertilizante ou medicamento. O computador que eu estou usando foi manufaturado com componentes cuja fabricação dependem de processos produtivos que eu desconheço. A tela que eu observo ao digitar essas palavras não revela nada sobre os códigos que permitem ao editor de texto registrar e gravar o que eu digitei no teclado ignorando as linhas de comando do software. Sei que cada informação pode ser decomposta em “Zeros” ou “Uns”, mas em hipótese alguma saberia dizer como todos os “Zeros” e “Uns” foram organizados de maneira a me permitir ver algo diferente de “Zeros” e “Uns” na tela do computador. Todos os dias tomo água filtrada, mas não sei como é escolhido o barro utilizado na fabricação do filtro.

Pois bem… Existem pessoas que sabem muitas coisas eu não sei (química, farmacologia, fabricação e manutenção de máquinas que produzem componentes eletrônicos, montagem de computadores, designe de softwares, produção de filtros de barro, etc…). Muitas dessas pessoas votaram em Bolsonaro e eu não tenho o direito de chamá-las de ignorantes. Elas sabem algo que eu não sei. Do ponto de vista delas o ignorante sou eu. O fato de eu saber coisas que elas não sabem não me coloca numa posição muito melhor do que aquela em que elas mesmas se encontram.

Portanto, sou obrigado a rejeitar a tese de Rubens Casara. Eu simplesmente não consigo ver a utilidade de reduzir um fenômeno que eu não compreendo ou não aceito (a preferência das outras pessoas por Bolsonaro) à ignorância delas. O conhecimento delas talvez tenha sido mal utilizado, mas essa é uma outra questão.

Uma candidatura vitoriosa não se faz necessariamente com um discurso verdadeiro. Desde que “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel foi publicado a moral, a ética e a epistemologia foram banidas das considerações políticas. O que Bolsonaro fez (mentir e espalhar Fake News) todos os candidatos poderiam ter feito. Alguns obviamente se recusaram a fazer isso, mas o resultado da eleição não pode ser creditado apenas à ignorância ou à incapacidade de pensar dos eleitores.

Porque as pessoas votaram mais em Bolsonaro do que em Fernando Haddad? Talvez Bolsonaro tenha mostrado mais vontade de vencer. Talvez o candidato petista tenha feito propaganda para uma população idealizada que só existe na imaginação dos publicitários contratados pelo PT. A maioria da população brasileira obviamente rejeitou a mensagem de Fernando Haddad. E esse fato, por mais que seja doloroso, não pode ser expulso do debate político mediante artifícios intelectuais.

Como sou um adepto das teses dePaulo Freire, fico extremamente preocupado quando leio coisas que contradizem as teorias dele. Suponho que Rubens Casara não tenha percebido que passou a defender uma pedagogia inadequada ao dizer que:

“Em um clima de indigência intelectual, qualquer personagem saído de um circo de horrores ou de um programa de auditório brasileiro (igualmente horroroso, por explorar a pobreza e a desgraça) pode chegar à presidência da República.” (Bolsonaro o mito e o sintoma, Rubens R.R. Casara, Contra-Corrente, São Paulo, 2020, p. 95)

Desde que se lançou na política, Lula foi muito criticado por ter saído de um sindicato, por ter sido operário de fábrica, em virtude de ter crescer e morar numa periferia pobre… O fato dele ter se tornado um líder respeitado, cuja passagem pela presidência enriqueceu muito o Brasil, não pode ser creditado a sua origem. O sucesso ou o fracasso de um líder não depende de onde ele saiu, mas do que ele faz ou deixa de fazer quando é elevado a um cargo público importante.

O que é válido para os presidentes da república é válido também para os juízes. Muitos deles saíram das famílias mais abastadas e estudaram nas melhores Faculdade de Direito do Brasil. Mas isso não significa que todos eles tenham demonstrado qualquer compromisso especial com a democracia ou um respeito sincero pela Constituição Cidadã (como o próprio Rubens Casara menciona num dos capítulos do livro).

A origem de um líder político ou de um juiz não é tão importante. O que ele faz ou tenciona fazer com a parcela de poder que conquista é que precisa ser objeto de julgamento. O povo vai ter oportunidade de julgar Bolsonaro na próxima eleição. Mas os juízes nunca são julgados pelo povo. Eles são selecionados por concursos e só perdem a vitaliciedade por decisão de seus pares.

Por fim, não posso deixar de recomendar “Bolsonaro o mito e o sintoma”. Apesar dos problemas que apontei aqui (e que dizem respeito especificamente à leitura que eu fiz da obra), o livro de Rubens Casara tem a virtude de problematizar um tema importante.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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