Natureza, sociedade e economia nos domínios de Morfeu


Eis aqui três pesadelos que tive em noites distintas. Procurei descreve-los da maneira mais fiel possivel.

“Tudo o que é necessário para a expedição no deserto foi reunido nas proximidades do imenso avião. Água, alimentos, tendas, máscaras, cobertores e dois pequenos caminhões. Mas um deles está sem o motor. 

Observo os pneus do primeiro caminhão. Eles são estreitos demais. O deserto gosta de largura. Pergunto onde está o motor do veículo com esteiras de tração. Alguém responde que ele será colocado no lugar. 

A aparência do mecânico com a chave de fenda numa das mãos é deprimente. O espaço vazio que ele preencherá me faz lembrar de algo mais importante. Seria impossível navegar no deserto sem aquilo que está no meu bolso. Portanto, nada pode ser mais precioso do que a máquina de café.

Vou ao banheiro. No deserto todas as necessidades fisiológicas são feitas a céu aberto. A cápsula de café tem o tamanho exato do ralo da pia. Ela contém um minúsculo deserto negro que para ganhar vida precisa ser irrigado com água quente sob pressão. A água que sai da torneira da pia também é escura, mas tem um gosto nauseabundo.

O caminhão com esteiras de tração não tem motor. As dunas rapidamente devorarão o veículo com pneus estreitos. Água, alimentos, tendas, máscaras, cobertores não são essenciais. A eletricidade sim. Sem ela o combustível vital da expedição ficará preso dentro do valioso objeto que aprisiona minha atenção.” 

Desperto.

“Caminhando a pé em direção de Osasco acompanhado por um gigante tranquilo e silencioso, cruzei uma ponte próxima ao local onde o Rio Pinheiros deságua no Rio Tietê. Ambos foram desviados, no fundo seco dos rios operários trabalham na escavação de algo precioso.

Tento filmar ou fotografar o que está ocorrendo lá embaixo. Um sujeito se aproxima e começa a me empurrar. 

– Você não pode fazer isso. 

– Não posso a puta que o pariu. 

Empurro o sujeito de volta e consigo fazer algumas fotos. Ele tenta tomar meu telefone. Coloco-o no bolso e resisto. A ponte é inundada por uma confusão. O sujeito que me incomodava submerge numa onda de porradas. Vou embora com minhas preciosas fotos. 

Nas proximidades da prefeitura de Osasco, acompanhado por um homúnculo irritadiço e falador, picho um poema num muro. Escrito de trás para frente o texto não pode ser lido.

Pego carona num caminhão. Ele voa pela avenida. Pouco depois decidi voltar ao local onde o poema foi pichado. Preciso realmente saber o que escrevi. Ao descer do caminhão noto que perdi as preciosas fotos da escavação na calha seca dos Rios Pinheiros e Tietê.”

Durmo

“Algo impensável aconteceu. Atacado por um vírus que se reproduzia e mudava seu próprio código com uma velocidade maior do que qualquer ferramenta criada para detectá-lo e eliminá-lo o sistema bancário entrou em colapso. O vírus transformou a certeza em incerteza ao provocar modificações nos fluxos de dinheiro virtual e a alterar de maneira aleatória os saldos que existiam nas contas-correntes e os valores de quaisquer produtos bancários.

Governos que haviam abandonado ou que estavam em vias de abandonar o uso de papel moeda, como China e Alemanha, entraram em colapso. No Brasil, a emissão e distribuição massiva de dinheiro consegue sustentar o comércio. O resultado econômico é o aumento da inflação levando a impressão de mais papel moeda. O resultado social do aumento da quantidade de dinheiro em circulação é cômico.

Como ninguém pode confiar nos Bancos, cada qual deve levar consigo todo dinheiro que pretende gastar. Nos Shoppings de luxo predominam as pessoas pobres contratados para carregar as sacolas e sacolas de papel moeda que as madames usam para comprar produtos caros.

A impossibilidade dos ricos de controlar e contabilizar pessoalmente tudo o que eles têm provoca o aumento da redistribuição da riqueza. As poucas notas  que sumiram caíram da sacola de dinheiro durante as compras foram levadas pelo vento ou foram simplesmente embolsadas pelos carregadores?

Nas praias os banhistas não confiam uns nos outros e não podem confiar nos guardadores de dinheiro. Eles somem no horizonte mais rápido do que o sol se pondo. Os pacotes de papel moeda inadvertidamente enterrados na areia ficam imprestáveis quando a maré sobe. 

Perder dinheiro se torna algo muito comum. Ganhá-lo fica mais fácil.

Sem os Bancos as redistribuições instantâneas e massivas de riquezas se tornaram impossíveis. Coletivamente, os pobres passam a perder menos do que perdiam. Os ganhos individuais dos ricos não podem ser maiores. O retorno do papel moeda provoca um novo equilíbrio na distribuição da riqueza e dos encargos fiscais.

Fardos de dinheiro tem que ser entregues ao Estado pelos empresários. Isso provoca um aumento do frete, da segurança privada para transportar valores e dos acidentes com cargas de dinheiro.

Quando um caminhão cheio de notas de cem capota próximo a uma favela e a carga é levada pelo vento ocorre uma redistribuição de mais valia. O imposto finalmente começa a chegar onde é mais necessário população sem precisar de intermediários.

O crescimento do sistema bancário acarretou uma hipertrofia do Poder Judiciário. No passado, os juízes eram constantemente convocados a julgar os conflitos entre correntistas e os Bancos, entre os próprios Bancos e, quando havia conflito parlamentar, a arbitrar a política para garantir o sucesso da agenda dos banqueiros.

Ao destruir os Bancos o vírus acarreta a obsolescência dos juízes. Coitadinhos, eles ficaram desimportantes. E nunca mais poderão receber presentes dos principais preferenciais da inJustiça…

Para não chamar atenção, um advogado armazena todo seu dinheiro no cofre que adaptou no piso dianteiro do lado direito do carro velho que usa para trabalhar. Quando dá carona a um cliente ele sorri ao ver o sujeito, sem saber, pisar na fortuna dele. Um dia o advogado descobre que seu cofre foi arrancado do veículo junto com o piso. Mas ele não sabe quem deve processar. Ao lembrar que sou advogado, desperto assustado.”

Aparentemente, esses três pesadelos não tem nada em conum.

No deserto todas as adversidades tem que ser antecipadas. A obsessão por qualquer coisa (café, no caso desse pesadelo) pode ser um problema.

Num conflito é impossivel saber quem está disposto a ajudar e quem se esforça para nos atrapalhar. Compreender as mensagens que nós mesmos produzimos é algo tão difícil quanto necessário.

Ninguém foi capaz de perceber como a informatização acarretou a centralidade política dos Bancos aumentando sua capacidade de usar o judiciário para desdemocratizar o país. O sistema todo pode vir abaixo por causa de um vírus de computador. O retorno ao papel moeda seria traumático para aqueles que conseguiram conquistar poder e fortuna em razão de seu desaparecimento.

Nos três pesadelos o tema central é o mesmo: as adversidades (criadas pelo meio ambiente, pela sociedade e pela economia). Cada ser humano está fadado à enfrentar, de uma maneira ou de outra, as barreiras naturais, sociais e econômicas que dificultam sua jornada no tempo e no espaço.

As angústias provocadas pelos limites que nós enfrentamos (ou imaginamos enfrentar) são semelhantes. As imagens que esses sentimentos criam são diferentes. Morfeu é uma divindade ilimitada e generosa. Ele deu forma ao mundo em que nós vivemos e isso talvez explique a sua mais notável característica: a fragilidade.

No detalhe: Morfeu, Jean-Bernard Restout (1732–1797), óleo sobre tela

Fábio de Oliveira Ribeiro

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