Vidas divorciadas: Demóstenes e Donald Trump, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O que deve prevalecer na vida pública? A argumentação racional bem elaborada ou o ímpeto discursivo voltado para cativar as emoções das pessoas na platéia?

Vidas divorciadas: Demóstenes e Donald Trump

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Comparar dois políticos de civilizações tão diferentes, separados por quase 24 séculos, pode não ter qualquer relevância teórica ou prática ou teórica. Todavia, estou convencido de que fazer isso não causará qualquer dano à imagem de ninguém.

Além disso, por mais absurda que essa comparação possa parecer ela tem pelo menos a vantagem de proporcionar ao leitor a oportunidade de refletir sobre um dilema que é tão antigo quanto a política:

O que deve prevalecer na vida pública? A argumentação racional bem elaborada ou o ímpeto discursivo voltado para cativar as emoções das pessoas na platéia?

A principal característica do presidente dos EUA é a capacidade que ele tem para simplificar assuntos complexos, criar imensas confusões diplomáticas com algumas frases no Twitter e, sobretudo, reforçar os medos, ódios e preconceitos dos eleitores dele.

Donald Trump não é uma dissonância. Ele é um excepcional produtor de ruído num mundo que, em virtude da onipresença da internet, se tornou extremamente ruidoso e impermeável à argumentação baseada em fatos indiscutíveis, princípios democráticos e valorização da ciência.

O presidente dos EUA é o oposto de Demóstenes. O político ateniense se notabilizou pela rejeição consciente da improvisação.

“… Quando ouvia qualquer discurso público, decorava-o e ordenava os pensamentos e os períodos. Aplicava-se em corrigir, em explicar não somente o que os outros lhe tinham dito, mas ainda o que ele próprio havia dito aos outros. Daí a reputação de que ele concebia muito lentamente e de que o seu talento e eloquência não eram mais do que produtos do trabalho. E o que parecia prova manifesta disso era que ninguém ouvira Demóstenes falar sem prévio preparo: muitas vezes mesmo, estando sentado na assembléia e chamado nominalmente pelo povo, recusava-se a usar a palavra, porque não tinha meditado e preparado de antemão o que haveria de dizer. Por isso, a maior parte dos demagogos troçavam a esse respeito. Pythéas disse-lhe um dia, por pilhéria, que os seus raciocínios cheiravam muito a lamparina.

-Pythéas – respondeu Demóstenes com amargor – tua lâmpada e a minha nos alumiam para coisas bem diferentes.” (Plutarco – Vidas dos Homens Ilustres – Demóstenes e Cícero, tradução Sady-Garibaldi, Athena Editora, São Paulo, 1939, p. 16/17)

O debate presidencial provou que a lâmpada que ilumina Donald Trump não é a mesma que iluminou Joe Biden. O candidato democrata foi ao encontro preparado para aprisionar o republicano nos limites de um tipo de discussão que ele simplesmente rejeita. Trump se manteve fiel ao seu estilo. Ele improvisou, fez ataques pessoais, mencionou verdades alternativas e relativizou os fatos apresentados pelo adversário. Ambos provavelmente saíram do debate acreditando que foram vitoriosos.

É difícil dizer quem vencerá a eleição nos EUA. Todavia,se consideramos as circunstâncias em que a disputa está sendo travada, me parece que Trump pode manter e ampliar sua base eleitoral. Afinal, a internet é uma imensa Ágora em que os demagogos astutos e capazes de influenciar emocionalmente a platéia tem mais chance de ver suas propostas aprovadas.

Demóstenes apoiou com fervor as armas gregas “…entusiasmado pela força e pelo ardor das numerosas tropas que não desejavam outra coisa senão marchar contra os inimigos…” (Plutarco – Vidas dos Homens Ilustres – Demóstenes e Cícero, tradução Sady-Garibaldi, Athena Editora, São Paulo, 1939, p. 31). Mas no calor da Batalha de Queronéia ele “… nada fez de honroso, nada que correspondesse à energia dos seus discursos: abandonou vergonhosamente seu posto e arremessou para longe suas armas, sem se envergonhar, diz Pithéas, de desmentir a legenda gravada no seu escudo: A’ boa fortuna.” (Plutarco – Vidas dos Homens Ilustres – Demóstenes e Cícero, tradução Sady-Garibaldi, Athena Editora, São Paulo, 1939, p. 31/32)

Até a presente data, Trump se limitou atacar seus adversários pela internet, estimular a formação e a atuação de milícias e a enviar tropas para interferir nos assuntos de alguns Estados democratas (caso do Oregon, por exemplo). Como ele reagirá se for cercado por uma turba de oponentes violentos e decididos a romper a bolha de segurança criada em torno dele? Se partir para a briga Trump levará seus eleitores ao delírio. Mas se fugir da refrega ele provavelmente cairá em desgraça como Demóstenes.

A comparação entre o grego e o norte-americano é fascinante. O primeiro utilizou toda a sua habilidade retórica ao compor discursos fervorosos e bem organizados em favor da guerra contra Filipe da Macedônia. O outro postou um Twitter para humilhar o “rocket man” ameaçando obliterar a Coréia do Norte com bombas nucleares.

Demóstenes amargou as consequências da derrota e da vergonha de fugir do combate durante a Batalha de Queronéia. Donald Trump colheu os louros do sucesso ao realizar aquilo que nenhum outro presidente dos EUA havia conseguido: uma reaproximação pacífica entre Washington e Pyongyang.

Trump é o agente do caos, sem dúvida. Mas é difícil dizer se ele realmente acredita no caos. Demóstenes acreditava na supremacia da ordem política ateniense e levou sua cidade à uma derrota que provocou o caos no mundo grego e na própria vida dele. O sucesso ou a derrota de uma agenda pública parece não ter qualquer relação com a maneira como o líder político convence o público. Como diria Deng-Xiaoping: Não importa a cor do gato, o importante é que ele pegue o rato.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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