Os anos trágicos da Fórmula 1

Por hugo

Do Grande Prêmio

O herói de Zandvoort

O GP da Holanda de 1973 serviu de pano de fundo para as imagens que talvez sejam as mais tristes da história da F1, pela dramaticidade, pelo desconsolo e pela impotência de David Purley, que não conseguiu salvar seu colega, Roger Williamson, de um fim trágico

FLAVIO GOMES, de São Paulo

Não se trata de uma efeméride, nem de homenagem póstuma. Com o perdão da pretensão, talvez o personagem destas tortuosas linhas seja apenas o ponto de partida para uma reflexão meio fora de época e descompassada. Afinal, faz muito tempo que não morre ninguém na F-1. Senna foi o último, em 1994 — e é bom que se diga, sempre, que muitos pilotos, de todas categorias, devem àquele fim de semana de Imola sua longevidade nas pistas e na vida.

Mas é de David Purley que quero falar. Acabei de assistir ao documentário “The Killer Years”, feito para a BBC em 2010, que está no ar pela ESPN Brasil. Ele pode ser visto no YouTube, também. A impressionante sequência de tragédias que acompanhou o período de maior desenvolvimento da F-1, nos anos 60 e 70, é o tema central. As imagens finais são de Purley tentando salvar seu colega Roger Williamson, cujo carro capotou e pegou fogo em Zandvoort, no início do GP da Holanda de 1973. Falhas na comunicação entre os fiscais e demora para a chegada do socorro mataram Williamson. Purley estacionou ao lado do amigo, tentou desvirar seu carro, pegou um extintor de incêndio das mãos de um comissário, sinalizou para os outros pilotos que continuavam correndo e, ao fim, capitulou. A corrida foi até o fim. Consta que a direção não interrompeu a prova por achar que Purley é que tinha batido, e já estava fora do carro. Se o tivesse feito, um caminhão de bombeiros a 150 metros dali chegaria rápido ao local do acidente, pela contramão. Mas até que o engano fosse percebido, se passaram seis minutos até que outro percorresse a pista inteira, lentamente, para tentar apagar o fogo.

Purley deixa a corrida para resgatar Williamson, preso dentro do carro em chamas (Foto: Divulgação)

Essas imagens são, talvez, as mais tristes da história da F-1, pela dramaticidade, pelo desconsolo e pela impotência de Purley ao perceber que nada mais havia a ser feito. E chego, finalmente, à reflexão: será que a F-1 é um esporte triste por conta de tudo que aconteceu nos anos 60 e 70?

Temos a sensação de que “aquela época” foi a melhor de todas, uma era que teimamos em chamar de “romântica”, e que de fato carregava traços de romantismo, heroísmo, voluntarismo, amadorismo, vários outros “ismos”, mas fundamentalmente era feita de paixão. Tristeza é sentimento intimamente ligado à paixão. Só a paixão sem limites faz com que se enfrente a tristeza com coragem e altivez. A F-1 era triste e apaixonante.

Mas, hoje, talvez seja apenas triste.

Não porque seja vítima de tragédias frequentes. Como já dito, não morre piloto nenhum há 18 anos, quanto a isso há o que comemorar. Ou, ao menos, o que louvar. Tudo que não foi feito pela segurança nas décadas de 60 e 70, e tudo aquilo que se passou a fazer, e que se pensou que era suficiente depois que começou a morrer muita gente — Jackie Stewart à frente, um herói vivo —, foi revisto e aprimorado. Hoje, pistas, carros e procedimentos são, sim, muito seguros, dentro dos limites do aceitável quando se trata de prever o que pode acontecer com foguetes que voam conectados ao asfalto por quatro pedaços de borracha.

Mas acho que daqueles ano, e das imagens de Purley, desesperado, vendo seu amigo morrer queimado diante da aparente indiferença dos outros pilotos, restou uma tristeza sem fim, que contaminou a F-1 e nela se fixou de modo a torná-lo eternamente um esporte condenado a viver à sombra da tragédia. A sensação de que algo muito ruim pode acontecer a qualquer momento, por mais que todos os protocolos de segurança tenham sido estudados e melhorados, paira no ar. E a certeza de que aconteça o que acontecer o show vai continuar, idem. Não há mais heróis, mas possíveis mártires, como foram os dois últimos, Senna e Ratzenberger. E um esporte disputado por 24 mártires em potencial só pode ser triste.

Tristeza que muita gente que ainda está na F-1 carrega desde aqueles “killer years”, porque eram jovens naqueles tempos, destemidos e apaixonados, dentro ou fora dos carros, e já não são mais. Nem jovens, nem destemidos, nem apaixonados. E, assim, convivem diariamente com as lembranças de um passado doloroso, que não querem que se repita. Talvez, hoje, Ron Dennis olhe para Hamilton e se lembre de Bruce McLaren, e tenha muito medo de que algo possa acontecer ao menino. E se culpe por nunca ter abandonado esse mundo violento e potencialmente letal, como fez Purley alguns anos depois daquele GP da Holanda de 1973 — para morrer, ironia do destino, num acidente aéreo idiota, quando fazia acrobacias num biplano. O mesmo talvez passe pela cabeça de Frank Williams. Ou de Luca di Montezemolo. Ou de Peter Sauber. Todos eles, em algum momento de suas longas vidas nas pistas, se encontraram com a tragédia, a morte, a dor.

Purley não suportou a ideia de seguir naquilo que amava de verdade, os carros, porque viu um deles matando seu amigo Williamson. E naquele dia outros carros, como se fossem senhores das vidas de seus colegas pilotos, não pararam para ajudar ou sofrer junto, seguiram em frente indiferentes, nada encerraria aquela corrida, o show tem de continuar, lembram?, e eles, os carros, eram o show. Sem alma ou piedade. Era a cara que a F-1 iria assumir dali em diante, desalmada e desprovida de qualquer traço de compaixão. Um mundo à parte, insensível e inanimado. Triste, enfim.

No documentário, Emerson conta que logo depois da morte de Jochen Rindt, Colin Chapman foi até ele e disse: “Emerson, gosto muito de você, mas não quero que sejamos próximos, íntimos, amigos”. Chapman não queria mais ter amigos na F-1, porque a perda de alguém como Rindt, a quem era tão ligado, o devastou de tal forma que ele não aguentaria mais passar por aquilo de novo. E “aquilo”, a morte, estaria sempre à espreita. A partir dali, frieza, distância e impessoalidade dariam o tom das relações que ele passaria a cultivar.

A F-1, talvez involuntariamente, depois de tanta dor naqueles anos 60 e 70, se transformou nisso: num ambiente frio, distante e impessoal. Talvez seja uma defesa inconsciente de cada um que nela e dela vive. Imagens como as de Purley, o herói de Zandvoort, são duras demais para que não se comova com elas, e a comoção muitas vezes pode destruir uma pessoa por dentro, fazer com que ela desista, simplesmente. Que sejam evitadas, pois, as grandes emoções. Que se crie uma segunda pele, um calo, uma casca, uma cápsula protetora. Mesmo porque se trata de um negócio, corrida, em que mesmo os heróis têm de conviver com fracassos colossais. O heroísmo de Purley não resultou em nada. Williamson morreu. Um esporte em que nem os heróis são capazes de salvar alguém não pode, mesmo, ser dado a muitos sorrisos.

Luis Nassif

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